Fato raro entre projetos de pesquisa ocorreu na primeira metade dos anos 90 na Universidade de São Paulo (USP). Um grupo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, liderado pelo professor e cineasta Jean-Claude Bernardet, se propôs a fazer um estudo que contribuísse para resgatar e divulgar o patrimônio cinematográfico paulistano. Tratava-se de estudar a cinematografia sobre São Paulo em dois documentários usando como base filmes que têm a cidade como protagonista ou cenário de determinada história. Ao final de quatro anos, entre 1991 e 1994, ficaram prontos São Paulo – Sinfonia e Cacofonia e São Paulo – Cinemacidade, média-metragens de 40 minutos cada. A pesquisa resultou em duas obras de arte, apresentadas e apreciadas em festivais e mostras de cinema universitário do mundo inteiro.
A idéia original previa apenas um projeto comum de pesquisa a ser desenvolvido e estudado dentro da universidade, que deveria resultar em um catálogo ou livro sobre os filmes de temática paulistana. Mas ganhou uma dimensão maior ao envolver também três arquitetos – dois da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP) e um da prefeitura paulistana – e estudantes da ECA. “Foi quando decidimos apresentar um projeto temático para a FAPESP, com uma proposta mais ampla de pesquisa”, conta Bernardet. O trabalho não seria apenas levantar e fichar os filmes com o tema escolhido, mas fazer algo mais: levar adiante a crítica cinematográfica.
Roteirista, escritor, ensaista e crítico de cinema, Bernardet sabe que a crítica literária permite citar frases e trechos de um livro. Para isso, basta copiar. Ocorre que não se pode fazer o mesmo quando se trata de filmes – só é possível ao crítico descrever uma cena, algo completamente diferente de assisti-la. “Com os nossos documentários, mostramos que é possível fazer uma análise de estilo usando não só texto, mas imagens. Produzimos uma crítica visual de um trabalho cinematográfico”, explica. Esse é um dos méritos da pesquisa, que abriu caminho para algo diferente, não visto até então no Brasil.
Depois que a FAPESP concordou em financiar o projeto da equipe liderada por Bernardet, em 1991, os pesquisadores começaram a catalogar todos os filmes conhecidos em que a cidade de São Paulo tivesse uma forte referência. Começaram puxando pela memória – como quase todos trabalhavam com cinema de uma forma ou de outra, conseguiram lembrar de grande parte dos títulos. Em seguida, partiram para a consulta de catálogos livros e usaram a Cinemateca Brasileira como a principal referência, em razão de a maioria dos filmes nacionais estarem depositados lá. No total, foram fichadas 350 fitas. A equipe assistiu a todas, discutiu uma por uma e selecionou as mais significativas, cujas cenas poderiam ser usadas nos dois documentários que seriam feitos dentro do projeto.
No início, os pesquisadores não tinham um formato pronto. “Pensamos em escolher um ponto de referência da cidade que tivesse sido muito filmado por outros cineastas, como o Vale do Anhangabaú, e realizar outra filmagem para mostrar como está o local hoje”, conta Bernardet. Também cogitaram em utilizar um ator que tivesse trabalhado por muitos anos no cinema paulista, como Gianfrancesco Guarnieri. Mas desistiram das duas idéias. “Por fim, optamos por utilizar, no primeiro documentário, Sinfonia e cacofonia, apenas fragmentos de outros filmes, sem filmagem adicional.”
Em Cinemacidade, também foram usadas cenas de fitas, mas mescladas com tomadas feitas pelos pesquisadores. A decisão mostrou-se acertada. Como a pesquisa era a mesma, se os dois aproveitassem exatamente o mesmo material, não haveria sentido em fazer dois trabalhos, porque eles ficariam muito parecidos. Nesse momento da pesquisa, os realizadores do projeto tiveram de tomar uma decisão. Seria impossível levar o trabalho a termo dentro dos prazos estabelecidos se toda a equipe opinasse no momento de escolher as cenas a serem usadas. Decidiu-se, então, que Bernardet seria diretamente responsável por Sinfonia e Cacofonia, e Aloysio Raulino, também da ECA, por Cinemacidade, junto com as urbanistas Regina Meyer e Marta Dora Grostein.
Os diretores tinham um excelente material à disposição. Os 350 filmes fichados são histórias ficcionais, documentários, noticiários e peças publicitárias e governamentais, que, no conjunto, mostram bem a cidade no século 20. Bernardet diz que São Paulo sempre foi muito filmada.“Há registros sobre a Rua Direita já em 1904”, afirma. “Depois, especialmente nas décadas de 20, 50, 60 e 80, a cidade ganhou uma dimensão cinematográfica muito grande.” Os cineastas que trabalharam sobre o tema viam o espaço urbano não só como pano de fundo para uma ação qualquer, mas também, em muitos casos, como algo que tem vida própria e é a própria razão de ser da ação. “É por isso que fez todo o sentido estudar esse tema e fazer um filme que mostrasse a poética urbana de São Paulo capturada ao longo dos anos por outros diretores.”
Para executar o documentário pelo qual ficou responsável, o pesquisador elegeu cenas de 104 filmes, entre os 350, e decidiu usar uma trilha sonora exclusiva que pudesse unir tantos fragmentos. A preferência recaiu sobre Livio Tragtenberg, compositor de músicas para cinema, teatro, dança, orquestra e grupos instrumentais. Por quatro meses, Bernardet apresentou a ele filmes antigos e amostras da montagem que já vinha sendo feita por Maria Dora Mourão, outra integrante do projeto. Era importante para o músico conhecer as sonoridades usadas em películas de outras épocas para evitar compor uma trilha que tivesse a cara de apenas um tempo. Tragtenberg optou por trabalhar sobre o tema de Claudio Petraglia, do filme São Paulo S/A (1965), de Luiz Sérgio Person, criando uma trilha que incorporou alguns compassos de músicas de outros filmes.
Os autores dos filmes foram procurados por Bernardet e aceitaram ceder as imagens gratuitamente, desde que o documentário não se tornasse um produto comercial. Como o projeto previa, desde o início, sua apresentação apenas em festivais, mostras de cinema universitário e TVs educativas, o pesquisador não teve problemas. Houve apenas duas exceções, que vieram para o bem. O filme rendeu algum dinheiro quando passou no Espaço Unibanco de Cinema e foi exibido pela TV Cultura de São Paulo. “Pedi que a féria da bilheteria e o pagamento da televisão fossem depositados no laboratório para que tivéssemos uma cópia a mais do filme”, diz Bernardet. Foi uma boa providência: uma cópia ficou no Brasil e a outra foi para a Europa.
Sinfonia e Cacofonia ficou pronto no final de 1994, mas Bernardet decidiu datá-lo como uma obra de 1995, ano em que o cinema completou cem anos. “Foi uma maneira de promover o filme, especialmente no exterior”, conta o cineasta. Na Europa, foi apresentado na Itália, França, Alemanha e Espanha; nos Estados Unidos, durante um curso na Universidade do Texas, em Austin; e também no Uruguai e na Austrália. A carreira da fita continua bem-sucedida ainda hoje. Este ano, estão previstas apresentações em institutos culturais, como o Goethe, em São Paulo, e em universidades, como na Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Outro filme feito dentro do projeto temático não alcançou o mesmo sucesso. Enquanto Sinfonia e cacofonia é feliz ao mostrar a São Paulo cinematográfica e inovar ao ser inteiramente feito com imagens de outros, Cinemacidade parece um tanto hermético na tentativa de expor a história da estruturação do espaço urbano do município. “Embora com construções diferentes, os dois trabalhos têm muitas semelhanças”, diz Aloysio Raulino. “Sinfonia é mais uma compilação enquanto Cinemacidade se preocupa em mostrar alguns atributos da cidade.” O diretor usou cenas de 36 filmes – tem 20 minutos de fragmentos e 10 de imagens feitas pela equipe. As cenas antigas são intercaladas com as novas, de acordo com os cinco temas escolhidos pelos idealizadores (transformação, anonimato,multidão, precariedade e dimensão).
Para conseguir realizar os dois documentários, foi necessário comprar equipamento de som digital e uma moviola para montagem. Todos os aspectos técnicos exigidos pelos filmes resultaram em proveitos para os alunos. O material de som, em especial, foi fundamental para que alguns deles se especializassem na área. “Eduardo Santos Mendes, responsável pela sonoridade dos dois filmes, abriu um novo curso na ECA”, diz Bernardet. O material necessário foi adquirido com o financiamento da FAPESP. A Secretaria de Estado da Cultura colaborou com o projeto ao pagar a trilha sonora de Livio Tragtenberg, a reitoria da USP bancou a cópia final e a Riofilme fez a versão dos poucos diálogos para participação nos festivais internacionais.
Na área teórica, os efeitos também foram satisfatórios. Além da filmografia referente à cidade de São Paulo e da catalogação do material iconográfico, o projeto possibilitou um curso regular de pós-graduação sobre a cinematografia paulistana. “Conseguimos fazer um curso em que, a cada aula, tínhamos quatro professores dentro da sala para explicar, assistir a filmes e debater com os estudantes.” Embora sempre enfrentando problemas de agenda para conciliar a presença dos quatro docentes juntos, o curso teve a duração de quatro semestres, com uma aula por semana.
Os projetos temáticos da FAPESP sempre envolvem uma equipe grande: são multidisciplinares e geradores de diversos produtos associados, como cursos, teses e mais projetos. Esse, liderado por Bernardet, teve todas essas conseqüências, mas acabou por ganhar também um caráter muito pessoal. O resultado é o que o jargão cinematográfico chama de filme de autor – aquele que elabora, acompanha e comanda passo a passo todo o processo criativo. A concepção, a produção executiva e a direção de Sinfonia e Cacofonia são de Bernardet. A primeira idéia de fazer um filme sobre São Paulo também é dele. “Além de querer mostrar e divulgar a memória cinematográfica paulistana, sou apaixonado por esta metrópole”, diz o pesquisador, de 66 anos, imigrante francês que chegou a São Paulo aos 12, de Paris. “E a minha sensibilidade em relação à cidade também foi formada pelos filmes feitos aqui.” Por isso, ele classifica o trabalho como um ensaio poético sobre a cidade.O fato de o filme mostrar paisagens e situações ásperas reflete o modo quase sempre tenso com que os cineastas vêem a capital paulista. O aspecto individual não impediu que o projeto caminhasse na direção a que se propôs: fazer filmes e aproveitar essa experiência para aulas, seminários, teses e conferências e usar a infra-estrutura adquirida para treinar alunos e criar novos produtos culturais.
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