DANILO VOLPATOEu as vejo pelo espelho retrovisor, crianças todas, sentadas recatadamente, enquanto o novo dia estala lá fora além dos vidros, e posso captar em cada uma, de rosto a rosto, o mesmo estremecimento. Foram alçadas bruscamente do sono, mesmo se com um beijo ou umas palavras amenas, Acorda, filho; Está na hora, querida!, e saltaram da cama, serelépidas algumas, sonolentas a maioria. Pegaram logo suas vidas, como as mochilas, e, com os olhos ainda sujos de espanto, saíram à rua e entraram na van escolar, onde seguem comigo. Se o mundo nos agride – a nós que vivemos em vigília e temos veneno nas unhas, facas na voz -, é um susto para elas desligar os sonhos e acender a realidade, é um torpor silencioso como o de uma febre alta. Mas, por esses milagres que fazem as flores suportarem temporais, eis que vão aos poucos despertando novamente, de volta à sua condição ensolarada, de meninos e meninas. Já posso ouvir um resmungo tímido aqui, uma risada ali, e, a cada quarteirão percorrido, outros ruídos faíscam delas, fraturando o barulho monótono do motor, como se testassem com cautela, em doses mínimas, as poderosas descargas de felicidade que vão eletrizar seu dia. Pressinto se estão bem ou não quando passam pela porta da van e me dizem Oi, não porque eu tenha aprendido a ler seus gestos ou a reconhecer em cada oi o timbre de seu humor, mas porque se abrem inteiras, pedem em silêncio para que a gente as folheie, nos põem nas mãos novamente lápis coloridos. A vida é aos trechos, e eu só as conduzo, nessas manhãs, por um curto trajeto, umas ruas caladas que desembocam em avenidas estridentes, até que alcancemos os portões do colégio. Lá dentro, no pátio ou nas salas de aula, vão enfrentar outros deslocamentos e aprender, a sós, onde estão os sinais verdes e vermelhos, onde há valas perigosas, onde o asfalto se esfarela e não percebemos senão quando já derrapamos. Mas estamos a meio caminho e vamos tranqüilos, o dia se espreguiçando devagar, quase esqueço que envelhecemos aos poucos, eu mais do que elas, muitos trechos ainda têm pela frente, já vejo o sorriso nascer na face de uma – o vazio dos dentes que caíram lhe dá um aspecto comovente -, a língua a despontar na careta de outra; em minutos os assuntos, só delas, vão rebentar e fluir como um manancial. Quem nos vê nessa van não pode imaginar senão um mundo de levezas, uma margem que é ela mesma um rio de águas translúcidas, um território que corre à parte, como as nuvens sobre a cidade, alheias ao frenesi das pessoas dentro da pele, da roupa, do veículo que as leva, ora rápido ora lento, aos seus compromissos. Não há razão para ninguém se afligir pensando, de súbito, que um momento turvo poderá vir ao nosso encontro. Contudo, não há quem, diante da beleza, resista ao ímpeto, mesmo se inconsciente, de destruí-la. Agora ouço a voz de um garoto que se cruza com a de outro, e ambos vão tecendo sem pressa um desenho cujas formas não distinguo, só eles sabem dar contornos suaves às conversas – aí está algo que desaprendi -, e, aos relances, observo os cabelos loiros da menina lá no fundo, iguais aos da mãe que vem me entregá-la todos os dias; os olhos daquele garoto tão verdes como os do pai; a forma semelhante dos lábios de dois irmãos, o mistério das combinações que passam desse para aquele as mesmas manias, o mesmo jeito de olhar, a mesma duração da viagem. Como se trocasse a lente dos óculos, vejo pelo retrovisor o futuro na face delas, o fim do percurso, que em mim se encurta, e os trechos que venci se misturam em minha lembrança formando um mapa que nem mesmo eu sei mais decifrar. Enveredamos por um longo viaduto, acelero forte para enfrentar a subida, e, lá adiante, há um cruzamento, sairei à esquerda e avançando mais alguns metros estaremos no colégio. Já percebo a luz amarela do semáforo, vou freando com delicadeza, mas só aí percebo que um ônibus a toda velocidade vem em nossa direção e, por um instante, vejo-o chocar-se estrondosamente na lateral da van, onde está a maior parte das crianças com suas lancheiras, seus game boys, suas bonecas, seus cadernos e estojos escolares. Fecho os olhos, mas a buzina de um carro atrás me obriga a abri-los e sacode essa cena da minha imaginação. Aliviado com a normalidade à minha frente, o acidente apenas no reino das hipóteses, arranco às pressas, como se pudesse evitar, para sempre, o que um dia sucederá a elas. Como ainda não sucedeu, e a manhã segue iluminada, e todas já se agitam, enfim, falantes e felizes, sorrio e digo Estamos chegando, crianças, e nesse sorriso, eu bem sei, é que se esconde a minha lição de vida.
*João Anzanello Carrascoza é escritor, autor de Dias raros e O volume do silêncio, entre outras obras.
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