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COVID-19

Estratégia de combate

Pandemia mobiliza a criação de redes de pesquisa que procuram estreitar a interlocução com o poder público

 Edmur Azevedo Pugliesi e Raul Borges Guimarães (Unesp)

Em busca de respostas à crise sanitária, social e econômica que se instalou no país com a chegada da pandemia de Covid-19, pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e instituições de ensino superior têm estabelecido, desde março de 2020, redes de trabalho para ampliar a interlocução com o poder público, contribuir na tomada de decisões e na formulação de políticas públicas. Pesquisa FAPESP mapeou ao menos 20 iniciativas nesse sentido, que envolvem desde análises do impacto do vírus Sars-CoV-2 entre populações vulneráveis até o desenvolvimento de metodologias que permitem rastrear e antecipar a dinâmica de disseminação de distintos vírus e que podem apoiar os gestores na elaboração de medidas de contenção.

“No último ano, observamos uma disseminação de grupos e associações que começaram a produzir análises e a buscar dados precisos sobre a pandemia, como forma de aumentar a transparência das informações fornecidas pelos governos”, afirma o sociólogo Glauco Arbix, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Exemplo desse movimento é a Rede de Pesquisa Solidária, criada por pesquisadores da área de humanidades da USP com a proposta de colaborar com o aperfeiçoamento das políticas públicas de combate à pandemia elaboradas pelos governos federal, estadual e municipal (ver “Caçadores de dados”, entrevista com Lorena Barberia, no site de Pesquisa FAPESP). A rede é apenas uma dentre as diversas iniciativas criadas por pesquisadores da USP para colaborar com o combate à pandemia. Hoje ela congrega mais de 100 especialistas, entre cientistas políticos, sociólogos, médicos, engenheiros, economistas e antropólogos. “Produzimos 26 notas técnicas, que foram divulgadas em boletins semanais distribuídos a mais de 10 mil pessoas”, observa Arbix.

Entrevista: Glauco Arbix
00:00 / 21:54

Além de influenciar o debate público, a rede abriu canais de diálogo com formuladores de políticas, com a realização de reuniões com integrantes dos poderes Executivo e Legislativo dos estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul, e audiências com os governadores da Bahia e do Maranhão. “A Secretaria de Saúde de Mato Grosso do Sul solicitou análises sobre testagem à rede, que a ajudaram a planejar medidas de contenção para os municípios”, informa. Além disso, o grupo organizou seminários internacionais – um deles contou com a presença dos secretários de governo de Buenos Aires, na Argentina, e de finanças de Bogotá, na Colômbia, e foi assistido virtualmente por mais de 3 mil pessoas.

Miguel Schincariol / Getty Images Prioritários nas políticas de vacinação, profissionais da saúde recebem dose do imunizante no Hospital das Clínicas da USP, no início de janeiroMiguel Schincariol / Getty Images

Em relação ao acesso ao conhecimento produzido nas universidades, Victor Borges, presidente da Rede Nacional de Consórcios Públicos dos Municípios, que congrega cerca de 2,7 mil cidades de todo o país, explica que, desde março de 2020, a organização de seminários on-line envolvendo pesquisadores e gestores públicos constitui uma das principais ferramentas para apoiar as prefeituras na tomada de decisão de combate à pandemia. “O acesso a resultados de estudos qualificados permite melhorar a formulação de políticas públicas”, sustenta.

Boa parte dos pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária trabalha de forma voluntária. Com o aporte de recursos de instituições como o Instituto Betty e Jacob Lafer, o Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento (Cebrap), as fundações Ford e Tide Setúbal e várias empresas privadas, foram concedidas cerca de 20 bolsas a estudantes de iniciação científica e pós-graduação, que passaram a atuar no projeto. Este ano, por meio da oferta de um curso de pós-graduação sobre pandemias, que espera contar com a participação de mil alunos, e com recursos liberados pelas quatro pró-reitorias da USP, o grupo pretende se concentrar em análises sobre vacinação, educação e sustentabilidade, com debates previstos para acontecer na Câmara Municipal de São Paulo. Ao defender a prioridade dos trabalhadores da saúde na estratégia de vacinação, o primeiro boletim publicado neste ano identificou quem são e onde estão esses profissionais no país, por meio de análises de bancos de dados como o Sistema de Contas Nacionais e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), ambos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), além do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e de informações de conselhos profissionais (ver infográfico abaixo).

Se por um lado a Rede de Pesquisa Solidária procura atuar de forma abrangente, com a expectativa de incidir na formulação de políticas em diferentes regiões do país, por outro, redes interdisciplinares de pesquisadores foram constituídas com o intuito de apoiar gestores públicos de regiões específicas. O médico Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (FM-Unesp), campus de Botucatu, por exemplo, faz parte de um grupo multidisciplinar integrado por geógrafos da saúde, matemáticos, cientistas da computação e cartógrafos para estudar a pandemia e propor soluções para o interior paulista. No primeiro semestre de 2020 o grupo criou o Radar Covid-19, voltado para análise e mineração de dados e rumores, no Twitter, referentes à disseminação do novo coronavírus pelo interior paulista. “Durante o último ano, monitoramos citações sobre a Covid-19 na rede social, identificando possíveis casos antes que fossem oficialmente notificados nos sistemas de vigilância”, explica Fortaleza. Depois o grupo relacionou esses relatos com dados oficiais e buscas realizadas no Google, para elaborar representações cartográficas indicando possíveis surtos e linhas de disseminação da doença no interior do estado. “Constatamos que quando a Covid-19 chegou à Grande São Paulo, transmitiu-se como um tsunami para a metrópole ampliada, incluindo Campinas e a Baixada Santista, em decorrência do movimento pendular que seus habitantes fazem entre as cidades da região”, conta Fortaleza. O grupo identificou ainda que a doença se disseminou pelo interior paulista por meio de suas principais rodovias, atingindo primeiramente capitais regionais, como Ribeirão Preto, Araçatuba e Presidente Prudente, para depois chegar a municípios altamente conectados, seguidos dos pouco conectados e, por fim, nas áreas rurais. “Ao identificar a ordem de disseminação da doença, mostramos que sua propagação pelo estado aconteceu de acordo com a hierarquia de tamanho existente entre as cidades”, detalha. “Os dados foram apresentados em reuniões entre nossa equipe e membros do governo estadual. As análises influenciaram a política de contenção elaborada para o interior paulista”, informa Fortaleza, integrante da equipe que assessora o governo do estado de São Paulo na elaboração das diretrizes do Plano de Contingência, voltado ao combate da pandemia. Nesse sentido, ele menciona as estratégias adotadas pelo governo para restringir o controle da doença em cidades-polo, como forma de proteger os municípios menores.

Os resultados do estudo conduzido por Fortaleza e outros pesquisadores da Unesp foram apresentados para gestores municipais em um seminário organizado pela Rede Nacional de Consórcios Públicos dos Municípios, no primeiro semestre de 2020. “Ao mostrar as rotas de disseminação da Covid-19 por São Paulo, as análises indicaram que o esforço de combate à pandemia deve acontecer em rede, não bastando que apenas um município isolado tome medidas de precaução. Essa informação orientou os planos de contenção de diferentes cidades”, destaca Borges, da Rede Nacional.

Da experiência pioneira desenvolvida na Unesp surgiu um projeto maior. “Por meio de técnicas de mineração de dados, agora pretendemos monitorar, em âmbito global, sinais precoces de situações pandêmicas. A ideia é identificar se grandes aumentos de citações da palavra febre, por exemplo, ou da busca por antitérmicos, em determinada região, são indícios do início de algum surto”, explica Fortaleza. A iniciativa pretende fornecer dados para orientar ações globais de vigilância epidemiológica. “A identificação de possíveis surtos epidêmicos em regiões com grandes malhas aéreas, por exemplo, permite emitir alertas sobre o risco de a doença se disseminar rapidamente pelo mundo”, observa o pesquisador.

A exemplo da Rede de Pesquisa Solidária, o projeto de pesquisadores da Unesp começou há um ano como iniciativa voluntária e, em 2021, passou a ser apoiado por instituições privadas como a empresa de alimentos JBS e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Com esses recursos, equipamos com computadores potentes, capazes de minerar dados do mundo todo, laboratórios gêmeos da Unesp em Botucatu e Presidente Prudente”, conta Fortaleza.

Fernando Meller, gestor do programa social Fazer o Bem Faz Bem, da JBS, explica que a companhia doou R$ 50 milhões para financiar 39 pesquisas científicas em 15 estados, voltadas ao combate da Covid-19. “Montamos um comitê de profissionais do meio médico e científico para definir os critérios dos investimentos. Os projetos contemplados são ligados a universidades públicas, institutos de pesquisa ou entidades de saúde”, comenta, ao afirmar que a pandemia tem mobilizado a união de acadêmicos, empresas e gestores públicos. “O mundo passa por uma crise sem precedentes e enfrentá-la requer o envolvimento de todos. Desde o início da pandemia, a JBS vem se dedicando a atender questões críticas nos países em que atua, buscando deixar um legado para as comunidades”, afirma.

Jorge Guimarães, diretor-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), avalia que o Brasil não tem se preparado para enfrentar situações emergenciais. Para ele, na pandemia, essa falta de preparo se fez evidente, por exemplo, no setor de biofármacos. “No segmento de fármacos, 95% dos componentes de medicamentos fabricados localmente são importados. Ao mesmo tempo, o Brasil tem o sexto maior mercado consumidor de remédios do mundo”, compara. “A pandemia escancarou um problema histórico, que é o afastamento das empresas do setor do desenvolvimento da pesquisa aplicada e da inovação”, lamenta, ao apontar a incapacidade do país de produzir insumos para produção de vacina própria, a curto prazo, e destacando, por outro lado, sua competência científica, tecnológica e empresarial. Marcio de Miranda Santos, diretor-presidente do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), também considera que o diálogo entre a academia e o setor público enfrenta desafios, de forma que nem sempre o processo de tomada de decisão no âmbito da saúde pública se baseia nos achados da ciência. Por outro lado, ele enxerga o contexto de pandemia como um momento único para o fortalecimento do papel da ciência na sociedade. “Nunca vimos a produção científica em todo mundo se desenvolver tão rápido como agora”, pondera.

Pedro Vilela / Getty Images Mulher com cesta básica em Belo Horizonte (MG), entregue em ação organizada por uma empresa de crédito bancário: pandemia mobilizou envolvimento do setor privado na gestão da crisePedro Vilela / Getty Images

O secretário de Estado de Políticas Públicas do Maranhão, Marcos Pacheco, explica que em março de 2020 uma das primeiras medidas do governo foi criar um comitê de assessoramento técnico, formado por cientistas. “Fomos a primeira capital do país a decretar lockdown, por sugestão do comitê”, conta. Ele explica que a Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema) lançou um edital e contratou 100 estudantes da área da saúde para atuar nas unidades de atendimento realizando a triagem dos pacientes com sintomas de Covid-19. “Esse processo de estratificação dos riscos de cada paciente, antes da internação, foi fundamental para evitar tumultos e superlotação nos hospitais”, afirma. Outra medida tomada com base em orientações do comitê foi investir na criação de leitos em hospitais já existentes, em vez de criar hospitais de campanha. “Com isso, quando a pandemia arrefecer, esses leitos poderão ser utilizados para tratar outras doenças, ou mesmo pacientes com sequelas da Covid-19”, diz.

Também com apoio da iniciativa privada, a antropóloga Denise Nacif Pimenta, do Instituto de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte, e Clare Wenham, da London School of Economics (LSE), na Inglaterra, participam da coordenação conjunta da rede Gender & Covid-19, grupo de pesquisa internacional voltado à análise de questões de gênero envolvendo a pandemia em contexto global. “O grupo foi formado por causa de uma demanda da Fundação Bill & Melinda Gates, abrangendo estudiosos de nove países, incluindo Inglaterra, Japão, Estados Unidos, Bangladesh, África do Sul, Brasil, entre outros”, explica Pimenta. De acordo com ela, o tema despertou a atenção da fundação depois da publicação de um artigo, assinado por pesquisadores britânicos, canadenses e norte-americanos, em março de 2020 na revista científica The Lancet, mostrando que apesar de a mortalidade por Covid-19 ser mais alta entre os homens, os impactos econômicos, sociais e de saúde atingem de forma mais intensa as mulheres. Com base em resultados preliminares obtidos pela rede de pesquisadores, foi publicado, em fevereiro deste ano, um documento com recomendações sobre como considerar questões de gênero na formulação de políticas públicas de saúde.

Para Arbix, da USP, a falta de articulação entre o governo federal, estados e municípios na divulgação de informações e no desenvolvimento de estratégias de combate à pandemia mobilizou não apenas pesquisadores, como também o setor empresarial. “No último ano, muitas empresas criaram ações de filantropia e passaram a apoiar a elaboração de pesquisas de benefício público, em um movimento inédito no país”, destaca, citando como exemplo a doação de R$ 1 bilhão feita pelo Itaú para financiar as atividades do Todos pela Saúde, que conta com a participação de pesquisadores da USP e da Fiocruz.

Reprodução Plataforma digital Info Tracker, que sistematiza dados sobre a disseminação da doença, apoia gestores públicos do interior paulista no desenvolvimento de estratégias de contençãoReprodução

Dedicada a sistematizar dados sobre a dinâmica de disseminação da doença, a Info Tracker é uma plataforma digital criada em abril de 2020 por cinco matemáticos e cientistas da computação da Unesp, USP e Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), sendo três deles vinculados ao Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) na área de inteligência computacional apoiados pela FAPESP. A plataforma informa a taxa de espalhamento do vírus, seu número de reprodução e a velocidade de transmissão no estado de São Paulo e em cinco regiões do Brasil. “Desenvolvemos uma metodologia para fazer cálculos matemáticos mediante o uso de inteligência artificial, baseados em informações coletadas nas prefeituras”, explica o matemático Wallace Correa de Oliveira Casaca, do campus Experimental de Rosana, da Unesp. Pesquisador do CeMEAI, Casaca explica que uma das missões do centro é colaborar com a resolução de problemas práticos. Sediado no campus da USP em São Carlos, o centro desenvolve trabalhos articulados com as demandas da prefeitura da cidade. A interlocução com gestores de outros municípios expandiu-se durante a pandemia. A equipe da plataforma tem sido procurada por gestores de Limeira, Franca e Presidente Prudente, também no interior paulista, em busca de apoio para interpretar dados e compreender melhor a situação epidemiológica.

A sistematização de dados e a produção de análises para mensurar a intensidade de disseminação da pandemia no país também é o objetivo do Observatório Covid BR,  que reúne 81 pesquisadores, entre médicos, biólogos, matemáticos, entre outros. Por meio de modelos matemáticos e a coleta de dados oficiais, o projeto desenha cenários de proliferação da doença, com a pretensão de colaborar com o planejamento de políticas públicas.

Em resposta a um chamado feito pela coordenação da Rede de Geógrafos da Saúde, que abarca pesquisadores de todo o Brasil, o geógrafo Rivaldo Mauro de Faria, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), por sua vez, desenvolveu projeto para mapear os locais do município gaúcho em condições precárias e, portanto, mais suscetíveis à proliferação do vírus. A ideia é propiciar à administração da cidade acesso a informações estratégicas, que permitam o combate à pandemia em um contexto de desigualdade social. “Em conjunto com infectologistas e epidemiologistas, passamos a monitorar, com o uso de softwares de geoprocessamento, a proliferação da Covid para estabelecer, em tempo real, a localização dos casos e mortes confirmados”, conta Faria. Diferentemente dos projetos mencionados anteriormente, a iniciativa em Santa Maria está sendo desenvolvida em conjunto com a Secretaria da Saúde. Ou seja, os dados levantados embasam as ações da vigilância epidemiológica do município. No começo, o projeto trabalhava com a hipótese de que no Rio Grande do Sul a mortalidade seria mais alta, em comparação com o restante do país, pelo grande número de habitantes idosos. A projeção não se confirmou. “A mortalidade da Covid-19 está mais ligada a condições de vida da população, como a existência de doenças prévias e formas precárias de vida”, afirma o geógrafo, que vê o trabalho em rede como fundamental para identificar as especificidades da pandemia no Rio Grande do Sul.

Léo Ramos Chaves Populações vulneráveis: idosos…Léo Ramos Chaves

A abertura de editais e chamadas públicas também tem propiciado a criação de redes de trabalho. Formada a partir dos recursos de uma encomenda feita pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), a Rede Covid-19 Humanidades MCTI conta com mais de 90 pesquisadores, majoritariamente antropólogos e sociólogos, de 14 estados brasileiros, investigando os impactos sociais da pandemia em diferentes populações. Coordenador do projeto, o antropólogo Jean Segata, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que, nesse momento, a equipe trabalha na coleta de dados para, em 2022, elaborar recomendações à formulação de políticas públicas em distintas regiões do Brasil, dirigidas a públicos específicos.

Entre as populações que fazem parte do escopo do estudo estão profissionais da saúde, idosos, artistas, motoristas e entregadores de aplicativos e trabalhadores de frigoríficos. “A pandemia tem mostrado que políticas públicas voltadas à saúde em um país tão diverso e desigual como o Brasil precisam levar em consideração as especificidades locais”, sustenta Segata. Como exemplo, menciona a recomendação de lavar as mãos e usar máscaras, que permitem combater a disseminação do vírus, mas são praticamente inviáveis para grupos que não têm acesso a saneamento ou dinheiro para adquirir sequer uma cesta básica. Outro exemplo é a política de distanciamento social e a recomendação de permanecer em casa que, apesar de configurar uma das mais eficazes ferramentas de combate à Covid-19, tampouco é válida para trabalhadores de serviços essenciais. “Nos primeiros seis meses da pandemia, quando o distanciamento social foi mais intenso, registramos cerca de 6 mil casos de pessoas contaminadas em frigoríficos, considerados serviço essencial”, informa o antropólogo. Os casos representaram 33% das contaminações no Rio Grande do Sul, naquele período. “Detectamos que a indústria da carne foi responsável pela interiorização do vírus no estado, algo que com a adoção de políticas específicas para o setor de frigoríficos poderia ter sido evitado”, argumenta.

Ao lembrar que a base do trabalho de antropólogos é desenvolver pesquisa de campo, Segata diz que, pela necessidade de distanciamento social, a equipe envolvida com o projeto está realizando essa parte do estudo por intermédio de plataformas de comunicação on-line. “Esse aspecto tem constituído um enorme desafio. As metodologias que estamos criando trarão novas perspectivas de atuação para estudos antropológicos, nos próximos anos”, prevê.

Divulgação / JBS …trabalhadores de frigoríficos …Divulgação / JBS

Assim como ocorreu com a indústria da carne, o antropólogo conta que o projeto pretende mapear experiências de populações específicas com o vírus, de forma a colaborar com a elaboração de políticas públicas para populações vulneráveis. “O vírus sozinho não faz uma pandemia, que só se realiza a partir de condições materiais e práticas políticas que favorecem sua proliferação”, observa. Fazem parte da rede, além de estudiosos da UFRGS, pesquisadores da Fiocruz, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de Brasília (UnB), do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (Unidavi) e das universidades federais de Santa Catarina (UFSC) e Rio Grande do Norte (UFRN). “A investigação em rede viabiliza respostas mais rápidas e é fundamental para questões relacionadas à pandemia, que demanda ações multidisciplinares”, afirma, contando que o projeto dispõe de R$ 2 milhões de financiamento, provenientes da encomenda do MCTI, e tem duração prevista até julho de 2022.

Outro projeto contemplado em um edital do ministério faz o mapeamento epidemiológico da Covid-19 a partir de análises da rede de esgoto, em Santo André, no ABC paulista. Coordenador da iniciativa, o biólogo Rodrigo Bueno, do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (Cecs-UFABC), revela que estão sendo monitorados pontos na rede de esgoto, incluindo regiões de maior vulnerabilidade socioeconômica; áreas de classe média e alta; setores com maior concentração de hospitais de referência para tratamento da doença e zonas que apresentam precariedade habitacional. Previsto para durar até junho de 2022, o projeto pressupõe a criação de um Sistema de Alerta Precoce (SAP) tanto para a Covid-19 quanto para outros patógenos. “Dados recentes do estudo mostram que, na região do ABC, o número de infectados é duas a três vezes maior, se comparado com os valores notificados oficialmente pelo sistema de vigilância. A diferença pode ser explicada pelo fato de o mapeamento também captar os casos assintomáticos”, destaca. Ele explica que o mapeamento é feito por meio de coletas semanais na rede de esgoto dos pontos estabelecidos, que incluem desde estações de tratamento de esgoto até estruturas localizadas em bairros específicos. “O RNA do vírus da Covid-19 é eliminado nas fezes de indivíduos infectados, inclusive os assintomáticos”, esclarece. Segundo Bueno, uma rede com pesquisadores de 12 instituições está sendo formada com o objetivo de realizar monitoramento permanente da rede de esgoto. “Pretendemos trabalhar de forma articulada com companhias de saneamento, secretarias e o Ministério da Saúde”, prevê Bueno.

Léo Ramos Chaves … e entregadores de aplicativos são acompanhados em pesquisa que pretende embasar a formulação de políticas públicasLéo Ramos Chaves

Como parte de um edital aberto pela universidade para financiar projetos de intervenção no cenário desencadeado pela pandemia, a socióloga e advogada Alessandra Teixeira, também do Cecs-UFABC, coordenou um estudo para mapear os serviços e órgãos voltados ao combate da violência contra a mulher, em municípios do ABC. “A rede de enfrentamento à violência de gênero é deficitária e heterogênea. As informações sobre a existência, em cada município, de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher [Deam], casas de abrigo e centros de referência e juizados específicos são dispersas e difíceis de ser acessadas”, comenta Teixeira. Como resultado da parceria envolvendo cinco pesquisadoras da universidade, estudantes de graduação, pós-graduação e organizações da sociedade civil, o projeto elaborou material didático com informações sobre todas as instituições que fazem parte dessa rede em cada um dos sete municípios do ABC. “Além de ajudar as mulheres a compreender o fluxo de atendimento, realizamos o diagnóstico das redes em cada cidade, identificando onde há problemas e propondo melhorias”, explica a socióloga. Desde o final do ano passado, o material didático está disponível nas instituições que prestam esses serviços e nas sedes de organizações da sociedade civil.

Redes de pesquisadores também foram formadas para analisar políticas públicas de combate à pandemia. Coordenado pelas universidades Cornell e Harvard, nos Estados Unidos, um estudo está comparando as respostas governamentais de 16 países, entre eles do Brasil, relacionadas à saúde pública, economia e política durante a pandemia. Financiado pela National Science Foundation (NSF) e pelo Schmidt Futures, instituição privada norte-americana que busca aproximar cientistas da política pública, o projeto contou com a participação de Marko Monteiro e do pesquisador de pós-doutorado Alberto Urbinatti, do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IG-Unicamp). Com proposta similar, a Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp-FGV) realiza pesquisa para analisar o padrão de resposta de países e sistemas de saúde para controlar a Covid-19. No caso do Brasil, estão sendo analisados os planos de contingência adotados por estados e municípios e seus impactos nas estruturas de assistência à saúde.

Vitor Mazuco / Wikimedia Commons Mapeamento epidemiológico da Covid-19 a partir de análises da rede de esgoto em Santo André (SP) permite identificar casos assintomáticosVitor Mazuco / Wikimedia Commons

Por fim, Borges, da Rede Nacional de Consórcios Públicos dos Municípios, aponta áreas que demandarão parcerias entre gestores públicos e a academia, entre elas os tratamentos para doenças que ficaram represados por conta da atual crise sanitária. “Será fundamental contar com estudos que ajudem os municípios a organizar o planejamento e o fluxo de tratamentos para essas enfermidades”, informa. Outra área é a de educação. “A ausência de aulas presenciais afetou principalmente estudantes de regiões carentes, com pouco acesso à internet. Precisamos da academia para entender como compensar a aprendizagem deficitária desses alunos”, conclui.

Projeto
CeMEAI – Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (nº 13/07375-0); Modalidade Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável José Alberto Cuminato (USP); Investimento R$ 40.636.964,70.

Artigo científico
WENHAM, C. et al. Covid-19: The gendered impacts of the outbreak. The Lancet. p. 846-8. mar. 2020.

Documento
ROSSER, E. N. et al. How to create a gender-responsive pandemic plan: Addressing the secondary effects of Covid-19. Gender and Covid-19 Project.

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