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COVID-19

O esperado efeito das vacinas

Aplicação em massa de imunizantes permitirá saber se, além de proteger contra a doença, eles também serão capazes de evitar a infecção pelo Sars-CoV-2

Alexandre Affonso

A vacinação contra Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, avança no mundo, aproximando-nos da superação da atual crise sanitária. O progresso da imunização permitirá conhecer melhor a ação das vacinas aprovadas. Entre outras coisas, ficará claro se serão capazes de proteger contra a doença e, também, de impedir a infecção pelo Sars-CoV-2. Estudos clínicos sobre as formulações em uso revelam que elas são eficazes na prevenção da enfermidade, reduzindo os sintomas e evitando quadros graves, mas não se sabe ainda se também conseguem impedir que o vírus invada as células humanas e inicie o processo de replicação. Vacinas que evitam tanto a doença quanto a infecção induzem o que os médicos chamam de imunidade esterilizante.

Há uma diferença sutil, mas importante, entre barrar a infecção e, consequentemente, a doença, e proteger somente contra a enfermidade. As vacinas que previnem contra o aparecimento da Covid-19 não impedem necessariamente que as pessoas imunizadas continuem a se contaminar e a transmitir o novo coronavírus, mesmo que não apresentem sintomas e estejam se sentindo bem. Já as formulações que bloqueiam totalmente a infecção, proporcionando a imunidade esterilizante, aniquilam o vírus, interrompendo a cadeia de contágio.

A virologista britânica Sarah Caddy, pesquisadora clínica do Cambridge Institute for Therapeutic Immunology and Infectious Disease (Citiid) da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, afirma que o ideal seria que todas as vacinas impedissem a infecção pelo patógeno, mas, na prática, não é o que acontece. A maioria dos imunizantes existentes confere proteção contra o surgimento da doença. É o que ocorre, por exemplo, com as formulações contra influenza, hepatite, sarampo, tuberculose e rotavírus.

“Mesmo sem bloquear a infecção”, afirmou Caddy a Pesquisa FAPESP, “é possível cortar a transmissão e interromper a pandemia de Covid-19”. Isso porque uma pessoa vacinada, se for infectada pelo novo coronavírus, terá uma carga viral mais baixa do que alguém que não foi imunizado, ficou doente e apresentou sintomas – os infectados assintomáticos, indicam os estudos, também têm baixa carga viral. Dessa forma, explica a especialista, os inoculantes ajudam a reduzir a taxa de circulação do vírus. “Mesmo sem induzir a imunidade esterilizante, a vacina pode controlar a doença na população.”

Para a infectologista Raquel Stucchi, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), as vacinas existentes contra a Covid-19 podem fazer com que se atinja a imunidade coletiva, situação em que a disseminação do vírus é contida por haver pouca gente suscetível a contraí-lo. “É possível conseguir a imunidade coletiva contra o novo coronavírus mesmo sem ter o controle total de sua transmissão. O que precisamos, nesse caso, é vacinar um contingente maior da população”, diz Stucchi. “Claro que ajudaria muito se contássemos com uma vacina que também impedisse a transmissão, mas ela não é indispensável. Temos hoje no nosso portfólio vários imunizantes que, mesmo não sendo esterilizantes, conseguem  controlar a doença para a qual foram desenvolvidos.”

Anticorpos neutralizantes
A dificuldade em formular vacinas com potencial esterilizante reside no fato de que elas precisam estimular nosso sistema imune a produzir grandes quantidades de um tipo específico de anticorpo, conhecido como neutralizante. Esses anticorpos têm a capacidade de se ligar a pontos-chave das proteínas situadas nas superfícies virais que, normalmente, são as mesmas regiões que o patógeno usa para entrar na célula do hospedeiro ou onde há a promoção dos mecanismos de ingresso do vírus na célula.

“Anticorpos que se liguem especificamente em sítios-chave dessas proteínas de adesão ou em proteínas acessórias que medeiam a entrada do vírus na célula acabam neutralizando a infecção viral, impedindo que o vírus passe do líquido extracelular para o interior da célula”, explica o virologista Fernando Spilki, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e professor da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo (RS). “Com isso, inibem completamente a replicação viral. Em consequência, promovem uma imunidade que é efetivamente esterilizante, pois evitam que a infecção se dissemine no organismo e sejam produzidas partículas virais em grandes quantidades, o que está associado à doença e ao contágio.”

No caso da Covid-19, destaca Caddy, para promover a imunidade esterilizante as vacinas deveriam induzir a produção de anticorpos neutralizantes que se liguem à proteína da espícula viral (as projeções que revestem o microrganismo), também conhecida como proteína S (de spike), e principalmente, complementa Spilki, a um ligante denominado RDB (receptor binding domain ou domínio de ligação ao receptor). “Esse objetivo, embora difícil de se alcançar [bloquear o RDB e conferir imunidade esterilizante], está na base do desenho das vacinas de vetores adenovirais, da AstraZeneca, e de mRNA, da Pfizer e Moderna”, ressalta o pesquisador da Feevale.

Em junho de 2020, a equipe do imunologista brasileiro Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller, em Nova York, nos Estados Unidos, publicou um artigo na revista Nature mostrando que nem todos os doentes de Covid-19 analisados no estudo conduzido por seu grupo produziram os mesmos anticorpos, e que aqueles conhecidos como neutralizantes eram raros e achados em maiores quantidades apenas em algumas pessoas. O estudo concluiu que uma vacina eficiente seria a que estimulasse a produção desses anticorpos.

Sob o ponto de vista estrutural e de classificação, anticorpos neutralizantes integram as mesmas classes e subclasses das imunoglobulinas IgG, IgM, IgA, IgE e IgD, que compõem nossa imunidade humoral (ver Pesquisa FAPESP n° 294), mas pertencem principalmente à classe IgG e, em menor quantidade, à IgM.

Especialistas comentam que também seria importante que as vacinas induzissem a produção de anticorpos neutralizantes do tipo IgA, encontrados nas superfícies das mucosas das vias respiratórias, portas de entrada do vírus no organismo. “Para ter uma resposta mais robusta e bloquear a infecção, provavelmente vamos precisar de diferentes classes de anticorpos com capacidade de reconhecer o vírus”, conclui a pesquisadora de Cambridge.

Artigo
ROBBIANI, D. F. et al. Convergent antibody responses to Sars-CoV-2 in convalescent individuals. Nature. 18 jun. 2020.

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