Modelos computacionais concebidos e rodados por astrofísicos do Brasil e do exterior reproduziram a geração de raios cósmicos de altíssimas energias por um mecanismo de aceleração magnética associado à atividade de blazares. Esse termo é usado pelos astrofísicos para descrever galáxias com núcleos ativos que emitem um jato intenso de plasma (gás ionizado) na direção da Terra. No centro desses blazares, há um buraco negro com massa equivalente à de milhões ou bilhões de sóis. Ao consumir a matéria atraída para seu interior, o buraco negro produz, na direção perpendicular a seu eixo de rotação, uma corrente de partículas subatômicas com carga elétrica – o tal jato de plasma. Esse fluxo de matéria ionizada pode cruzar o espaço a velocidades próximas à da luz, de cerca de 300 mil quilômetros por segundo.
Raios cósmicos acelerados nesses ambientes são as partículas mais energéticas do Universo. Determinar que tipos de corpos celestes e quais processos podem levar à sua produção são objetivos perseguidos por alguns físicos de altas energias. “Em nossas simulações, conseguimos acelerar prótons de baixa energia que estavam no interior de um jato turbulento por um mecanismo conhecido como reconexão magnética e produzir raios cósmicos com energias da ordem de 1018 a 1020 elétron-volt [eV]”, diz Elisabete de Gouveia Dal Pino, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), coordenadora do grupo que realizou as modelagens computacionais no âmbito de um projeto financiado pela FAPESP. “Esses resultados reforçam a hipótese de que os blazares podem ser uma das fontes dos raios cósmicos mais extremos.” Os dados dos estudos foram apresentados em dois artigos publicados em 2021 no periódico Astrophysical Journal e devem ser detalhados em novos papers neste ano.
A expressão raios cósmicos se refere a partículas eletricamente carregadas (prótons, elétrons e núcleos de átomos) e neutras (neutrinos, nêutrons e fótons) que são produzidas em objetos celestes extremos, viajam pelo Universo e eventualmente chegam à Terra. As menos energéticas, como o vento solar, são mais abundantes e devem provavelmente sua origem a fenômenos que ocorrem dentro da Via Láctea. À medida que se tornam mais energéticas, ficam cada vez menos frequentes e provêm de maiores distâncias. As mais energéticas são produzidas fora da Via Láctea, como já foi verificado pelo Observatório Pierre Auger, na Argentina, financiado por agências internacionais, FAPESP e CNPq (ver Pesquisa FAPESP nº 260).
Em 2005, o astrofísico norte-americano Alexandre Lazarian, da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, e Dal Pino propuseram o mecanismo de reconexão magnética como um dos possíveis caminhos que poderiam levar à produção de raios cósmicos de altíssimas energias. Esse processo é caracterizado pela quebra rápida e reconexão (daí o termo) das linhas dos campos magnéticos de um gás ionizado, como nos jatos de partículas produzidos por buracos negros no centro de galáxias, inclusive nos blazares. O mecanismo converte energia magnética em térmica (calor) e cinética (acelera as partículas do plasma), resultando frequentemente em explosões. Fenômenos como os flares solares (erupções repentinas na superfície do Sol) e até as auroras nas regiões polares do planeta ocorrem em razão da reconexão rápida das linhas de campos magnéticos. Nos casos dos raios cósmicos, não se sabia ainda se o mecanismo seria suficientemente forte para explicar a produção das mais energéticas partículas do Universo.
Os estudos do grupo de Dal Pino sugerem que, ao menos nos jatos de plasma produzidos pelos blazares, a reconexão magnética parece ser capaz de produzir raios cósmicos extremamente energéticos. Em suas modelagens numéricas computacionais, a equipe de Dal Pino gera um sistema que emula o comportamento de um jato de plasma, como os produzidos por buracos negros nos blazares, e provoca instabilidades que levam ao processo de reconexão magnética rápida e turbulenta. Nos cálculos computacionais, que podem se estender por centenas de horas, os pesquisadores observam se algumas partículas conseguem ganhar velocidade suficiente para ser consideradas raios cósmicos de altíssima energia. De acordo com os trabalhos do grupo, a resposta é sim. “Nas simulações, injetamos de centenas a milhares de prótons de baixa energia que são acelerados pelo mecanismo de reconexão magnética no fluido turbulento do jato”, explica a física peruana Tania Elizabeth Medina Torrejón, que faz estágio de pós-doutorado no IAG e é uma das autoras dos artigos. “Com o passar do tempo, vemos um crescimento exponencial da energia dessas partículas.”
Em 2018, o Observatório de Neutrinos IceCube, situado nos arredores do polo Sul, na Antártida, observou a primeira fonte documentada de neutrinos de alta energia associados a blazares, um tipo de partícula que só pode ser produzido por prótons de energias extremas. As partículas superaceleradas vieram do blazar denominado TXS 0506+056, a cerca de 5,7 bilhões de anos-luz da Terra, com um buraco negro que produz um jato de plasma na direção da Terra (ver Pesquisa FAPESP nº 270). “Esse blazar também gera fortes emissões de raios gama e de neutrinos. Recentemente, reconstruímos essas emissões com o modelo de aceleração por reconexão magnética”, comenta o astrofísico mexicano Juan Carlos Rodríguez-Ramirez, outro pós-doutor do grupo do IAG. A produção de raios gama poderá ser estudada em detalhes pelo Cherenkov Telescope Array (CTA), projetado para ser o maior observatório astronômico terrestre desse tipo de radiação. O CTA é um empreendimento de € 350 milhões, liderado pelos europeus e com participação de astrofísicos do Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 312).
Projeto
Investigação de fenômenos de altas energias e plasmas astrofísicos: Teorias, simulações numéricas, observações e desenvolvimento de instrumentação para o Cherenkov Telescope Array (CTA) (nº 13/105595); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Elisabete de Gouveia Dal Pino (USP); Investimento R$14.836.626,42. 17/12188-5.
Artigos científicos
MEDINA-TORREJÓN, T. E. et al. Particle acceleration by relativistic magnetic reconnection driven by Kink instability turbulence in poynting flux-dominated jets. Astrophysical Journal. v. 908, n. 2. fev. 2021.
KADOWAKI, L. H. S. et al. Fast magnetic reconnection structures in poynting flux-dominated jets. Astrophysical Journal. v. 912, n. 2. mai. 2021