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Entrevista

Luiz Vitor de Souza Filho: Articulador das altas energias

Físico da USP de São Carlos é eleito presidente do conselho da colaboração científica internacional que constrói o maior observatório de raios gama

Grupo do brasileiro desenvolveu "braço" para posicionar câmera no telescópio de médio porte do CTA

Léo Ramos Chaves

Em 15 de dezembro de 2021, o físico brasileiro Luiz Vitor de Souza Filho foi eleito chair (presidente) do conselho da colaboração científica internacional que coordena os trabalhos do Cherenkov Telescope Array (CTA), empreendimento de € 350 milhões liderado pelos europeus que está construindo o maior observatório astronômico de raios gama do mundo. O pesquisador do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) vai comandar as reuniões periódicas do conselho, uma espécie de assembleia com representantes de 80 instituições de 25 países (incluindo Brasil) que fazem parte do CTA. “Essa assembleia é o órgão supremo e toma as principais decisões científicas do projeto”, diz Souza Filho, que coordena projetos financiados pela FAPESP no âmbito do CTA desde 2011.

O observatório prevê contar com uma rede de cerca de 100 telescópios do tipo Cherenkov distribuídos em dois sítios, um no Cerro Paranal, no Chile, e outro nas Ilhas Canárias, da Espanha. O CTA vai estudar os fenômenos mais extremos e energéticos do Universo, como explosões de raios gama, colisões da misteriosa matéria escura (que representa 27% do Universo), buracos negros supermassivos no centro de galáxias e violações da constância da velocidade da luz. Os telescópios geram imagens a partir da observação de chuvas de partículas de luz altamente energizadas. Eles estão sendo construídos em três tamanhos distintos: 8 de 24 metros (m) de diâmetro, 40 de 12 m e 70 de 4 m. Nesta entrevista, Souza Filho, cujo grupo de pesquisa em São Carlos criou e patenteou o braço usado para posicionar a câmera nos telescópios de porte médio, fala sobre sua nova função no CTA e o desenvolvimento do observatório.

Por que decidiu concorrer ao cargo e como foi sua eleição?
Países de grande importância no projeto do CTA, como a Alemanha, França e Itália, contam com uma dúzia de representantes no conselho. O Brasil tem três membros: Elisabete Dal Pino, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas [IAG] da USP, Ulisses Barres de Almeida, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas [CBPF], do Rio de Janeiro, e eu. Os grandes parceiros do projeto têm representantes próprios. Os pequenos se juntam e escolhem um representante em comum. Sempre fui membro do conselho como representante do conjunto de instituições científicas brasileiras associadas ao projeto temático que coordeno, como o Instituto de Física do campus de São Paulo da USP, a Universidade Estadual Paulista [Unesp], as universidades federais de São Paulo [Unifesp], de São Carlos [UFSCar], do ABC [UFABC], do Paraná [UFPR] e do Rio Grande do Norte [UFRN], além do próprio IFSC. O processo de eleição começa com um comitê de busca do conselho que recebe indicações de nomes para o cargo de chair. Os indicados são contatados e, se realmente tiverem interesse, se tornam candidatos.

Quantos candidatos participaram da sua eleição?
Dois, um polonês [Tomasz Bulik, da Universidade de Varsóvia] e eu. Aparentemente houve uma concentração de indicações em torno desses dois nomes. Ficou claro para o comitê de busca que esses eram os candidatos com chance de ganhar. A eleição foi por e-mail e os representantes tiveram duas semanas para votar. Ganhei por muito pouco, foi bem apertado. Tive 53% dos votos e o polonês 47%. Meu mandato deve ser de dois anos, com possibilidade de haver alguma extensão de tempo e de reeleição. Meu antecessor, o alemão Jürgen Knödlseder [da Universidade Paul Sabatier, na França], permaneceu nove anos no posto, mas foi reeleito uma vez e acabou ficando por mais tempo em razão da eclosão da pandemia.

CTA Desenho artístico mostra os três tamanhos dos telescópios que compõem o projeto CTACTA

Como funciona o conselho?
Ele se reúne ordinariamente duas vezes por ano. O observatório tem duas sedes administrativas, uma em Bolonha, na Itália, e outra em Berlim, na Alemanha. Antes da pandemia, essas reuniões eram presenciais. Agora, têm sido feitas on-line, remotamente. Temos esperança de, em maio, voltar a fazer uma reunião presencial. Quando aparece alguma questão importante para ser decidida ou comunicada ao longo do ano, também pode ser convocada uma reunião extraordinária. Ultimamente têm havido várias reuniões extraordinárias porque vivemos um momento importante do experimento. Estamos saindo da fase de fazer protótipos dos telescópios para entrar na de produção em série das antenas e de sua instalação nos sítios. Tivemos ao menos três reuniões extraordinárias em 2021.

Qual seu papel como chair do conselho?
Ser uma espécie de mediador, um diplomata, como o presidente do Congresso Nacional, em Brasília, por exemplo. É alguém que negocia com as diferentes partes, recebe solicitações de vários lugares e tem de gerenciar as demandas. Ele coloca um tema em votação quando percebe que há um consenso, um caminho a ser seguido. Burocraticamente, por exemplo, é quem gerencia a aceitação de novos membros e instituições no consórcio e qual será seu papel no CTA. Ao lado de outros dois representantes do CTA, o porta-voz e coporta-voz do observatório, o chair é uma das três pessoas que, juntas, negociam verbas para o projeto com as agências de fomento.

Questões de ordem científica também passam pela mediação do chair ou seu papel se restringe mais a temas administrativos?
Sua atuação se reflete em todas as esferas, administrativa, política e científica. Decisões de caráter científico, como quanto tempo de observação do experimento vai ser alocado para medir cada alvo de pesquisa e quais pesquisadores serão os líderes de cada tarefa, passam por ele e pelos porta-vozes. Esses líderes são indicados, mas sua aprovação tem de ser aprovada pelo conselho. Uma vez por mês, o chair e os porta-vozes conversam com os líderes para acompanhar como as tarefas estão andando e se algo precisa ser corrigido.

O CTA já era para ter sido inaugurado. Como está a construção dos sítios que vão abrigar os telescópios?
Estamos começando a construção definitiva do sítio em La Palma, nas Ilhas Canárias, onde já tem um telescópio grande em funcionamento. Decidimos construir o protótipo desse tipo de telescópio, que é caro e muito grande, no próprio sítio de observação. Não fazia sentido montar o protótipo em outro lugar e só depois levá-lo para lá. Já o sítio no Chile deve estar liberado para o início da construção do observatório daqui a um ou dois anos. Muito provavelmente, o sítio norte estará completo e passará a operar em sua plenitude antes do observatório no Chile. Como ocorreu com boa parte dos projetos científicos, a pandemia atrasou ainda mais nosso cronograma.

Por que o CTA vai ter dois sítios distintos e telescópios de três tamanhos?
Os objetos que podemos observar de um lugar são diferentes dos que podem ser vistos de outro. Não vemos o mesmo céu no Chile e na Espanha. No hemisfério Sul, podemos ver bem o centro da Via Láctea, algo impossível de fazer do hemisfério Norte. Podemos dizer que o sítio sul do CTA é otimizado para observar eventos energéticos que estão na nossa galáxia enquanto o do norte tem como prioridade medir objetos fora da Via Láctea. Os três tamanhos distintos de telescópio têm como objetivo observar a radiação gama em um intervalo de energia bastante grande, entre 20 gigaelétron-volt (GeV) e 300 teraelétron-volt (TeV). Em linhas gerais, os maiores telescópios se destinam a captar os fenômenos que produziram energias menores, de pouca luz, dentro desse intervalo. Os menores telescópios cumprem a função contrária, de observar eventos extremamente energéticos e luminosos. Os de tamanho intermediário são essenciais para o CTA e fazem a ponte entre os dois extremos. Em princípio, é o único tipo de telescópio que estará simultaneamente nos dois sítios.

O CTA vai trabalhar com ciência fundamental, e quer entender como a natureza se comporta em eventos extremos

Como assim?
Na primeira fase de construção, no sítio de La Palma, estão programados 13 telescópios, quatro grandes e 9 médios, com foco na observação de eventos mais energéticos. No do Chile, deverá haver 51 telescópios, 37 pequenos e 14 médios, otimizados para registrar eventos muito luminosos. No futuro, se houver dinheiro, é possível que algum telescópio grande também seja instalado no hemisfério Sul.

Como é a participação dos grupos brasileiros na construção desses telescópios?
O grupo da professora Dal Pino, do IAG, participou do desenvolvimento de um dos três protótipos do telescópio de pequeno porte. Eles fizeram parte de uma iniciativa italiana. Meus colegas do CBPF participaram do desenvolvimento de parte do sistema de alinhamento dos 200 espelhos que compõem o telescópio grande. O projeto que coordeno é voltado para a instrumentação do telescópio médio. Desenvolvemos e construímos, com uma empresa de São José dos Campos, a Orbital Engenharia, o protótipo da estrutura metálica usada para posicionar a câmera do telescópio médio. Essa espécie de braço da câmera foi aprovada pelo CTA e incorporada ao projeto final do telescópio. A USP, a UFABC e a Orbital são os detentores da patente dessa estrutura. Foi um projeto concebido e executado todo aqui, com empresas nacionais.

Esse braço do telescópio médio será construído no Brasil?
Tenho financiamento garantido, cerca de R$ 5 milhões, para construir essa estrutura para nove telescópios e uma ex-aluna, a física Rita de Cássia dos Anjos, hoje professora na UFPR, e nosso colaborador Jaziel Goulart, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), conseguiram verba da Fundação Araucária para fazer mais um braço. Então, temos dinheiro garantido para 10 estruturas. Na verdade, é mais do que só construir. Temos de fabricar a peça, instalá-la no telescópio, fazer uma série de medições e garantir para o CTA que tudo está funcionando a contento. Estou tentando conseguir mais financiamento para produzir o braço para cerca de 25 telescópios. Imagino que se não conseguir, em dois anos, todo o dinheiro no Brasil, alguma instituição do exterior terá de pagar por isso. Trabalho para que, independentemente de onde venha o dinheiro, a construção da estrutura seja feita pela indústria brasileira. Ainda não há garantia disso, mas seria uma decisão lógica, visto que desenvolvemos e construímos o protótipo e sabemos como fabricar a estrutura.

Quando o CTA deverá gerar os primeiros trabalhos científicos?
Diria que daqui a uns três anos os primeiros resultados devem sair. O CTA é um experimento que tem como objetivo produzir descobertas científicas. Não é de caráter incremental, que tem como meta obter uma pequena melhoria na qualidade de algum tipo de medida ou parâmetro específico que já conhecemos hoje. O observatório vai trabalhar com ciência fundamental, básica, e quer entender como a natureza se comporta em eventos extremos – extremos de massa, de energia, de tamanho, que só podem ser observados em detalhes na radiação gama. Enfim, em vários tipos de extremo que se possa imaginar. Esperamos que, em no máximo cinco anos, consigamos produzir alguma descoberta. Nenhum outro observatório de raios gama terá a capacidade de realizar medições de eventos tão extremos, tão energéticos, como o CTA. Por isso, achamos que não teremos concorrentes. No projeto de pesquisa que coordeno, temos muito interesse em trabalhar com medições sobre a natureza da matéria escura que, dentro do CTA, atrai vários grupos internacionais.

Que outros temas serão alvo das observações do CTA?
Esse ambiente de extremos, das altas energias, está na fronteira do entendimento da natureza. Esperamos poder entender melhor, por exemplo, a natureza das chamadas explosões de raios gama, os eventos mais energéticos e luminosos do Universo, que já foram observadas em galáxias distantes. Ou como um buraco negro, do qual nem mesmo a luz escapa, funciona. Ou ainda medir efeitos desconhecidos da gravidade newtoniana ou talvez da gravidade quântica.

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