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Experimentação constitucional fomentou criação de Poder Moderador

Carta de 1824 cristalizou ideia de Benjamin Constant para garantir o equilíbrio de forças políticas

Charge publicada no jornal O Mequetrefe, em 1878, critica o sistema parlamentarista brasileiro no qual a Câmara de Deputados se submetia ao Imperador

Biblioteca Nacional

Ao final do período de revoluções e guerras que caracterizaram a virada do século XVIII para o XIX, os recém-emancipados países da América e os antigos Estados europeus se viram diante da necessidade de criar estruturas de governo, marcando a transição do Antigo Regime ao constitucionalismo e do colonialismo à independência. Os arquitetos da nova ordem se inspiraram em fontes antigas e modernas: de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e Políbio (c.200 a.C.-c.118 a.C.) a John Locke (1632-1704) e Montesquieu (1689-1755). Um dos principais problemas com os quais as lideranças e pensadores políticos se confrontaram estava materializado em uma passagem do poeta satírico romano Juvenal (c.55-c.127), em que se lê: “Quis custodiet ipsos custodes?”, traduzida como “quem vigia os vigias?” ou “quem controla os controladores?”.

“Uma coisa é teorizar sobre a separação em três poderes, como lemos em Montesquieu. Outra coisa é colocar em prática”, observa a historiadora Monica Duarte Dantas, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). “Aí surgem os problemas, porque um poder pode tentar assumir as atribuições de outro. Não era possível antever todas as questões que iriam aparecer, até porque havia assuntos que diziam respeito a mais de um poder. Na prática, era preciso definir a quem competia o quê. Essas questões emergiram rapidamente nos séculos XVIII e XIX, quando se tentou colocar em prática a separação de poderes.”

Alguém que acompanhasse os trabalhos de elaboração de textos constitucionais no início do século XIX não necessariamente apostaria que, ao final desse período, estaria consolidado um modelo de organização do Estado em que o poder se desdobraria em três partes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, conforme apresentado pelo filósofo francês Montesquieu em O espírito das leis (1748). Havia projetos com quatro, cinco ou até mais poderes. Na França, o filósofo político franco-suíço Benjamin Constant (1767-1830) imaginou meia dezena: o Judiciário, o Executivo, dois poderes representativos, correspondentes ao Legislativo – o da opinião (Câmara Baixa) e o da tradição (Câmara Alta) –, e um poder “neutro”, exercido pelo monarca. O revolucionário venezuelano Simon Bolívar (1783-1830) chegou a formular a ideia, em 1819, de um “poder moral” que deveria cuidar, sobretudo, de educação.

As mesmas preocupações estavam na cabeça dos deputados na primeira Assembleia Constituinte do Brasil, em 1823. Até que, em novembro, o conflito de poderes se concretizou: tropas enviadas pelo imperador dom Pedro I (1789-1834) dissolveram a assembleia. Em março do ano seguinte, quando o imperador outorgou a primeira Constituição brasileira, ela se afastava pouco do projeto elaborado em 1823, segundo Dantas, mas continha uma diferença crucial: os poderes eram quatro e incluíam um Moderador.

A historiadora Cecilia de Salles Oliveira, do Museu Paulista da USP observa que Benjamin Constant e dom Pedro I se corresponderam ao longo do período do Primeiro Reinado (1822-1831). O monarca da América do Sul chegou a pedir conselhos sobre seu retorno a Portugal. Assim, não chega a ser surpreendente que a obra do pensador francês inspirasse a Constituição brasileira. “Constant acreditava que o poder do rei não deveria ser apenas simbólico. Deveria ter alguma ingerência na dinâmica da política, para dirimir os conflitos entre os demais poderes. Ele modificou um pouco a teoria de pesos e contrapesos, de Montesquieu”, afirma Oliveira.

Dessa forma, orientado por um Conselho de Estado, o monarca deveria ter a possibilidade de rever decisões dos outros poderes, sobretudo as tomadas pelo Legislativo. “Havia uma grande preocupação em evitar que as assembleias legislativas ou câmaras de deputados saíssem de controle e assumissem o poder como um todo, tanto de legislar quanto de executar. Para isso, não bastava o Judiciário ou um monarca simbólico. Essa foi a inspiração para o Brasil e Portugal”, prossegue Oliveira.

O jurista José Reinaldo de Lima Lopes, da Faculdade de Direito da USP, ressalva que, embora o Poder Moderador derive das ideias de Benjamin Constant, ele se insere em um contexto com diversas outras iniciativas que visavam moderar o poder das populações e as instabilidades momentâneas do sistema político, que poderiam crescer e colocá-lo em risco. “Essas iniciativas foram tentadas e aplicadas em toda parte em que se fizeram constituições nessa época”, diz. “O exemplo mais interessante talvez seja o dos Estados Unidos. Lá, a Suprema Corte teve um papel semelhante ao do Poder Moderador.”

Wikimedia CommonsBenjamin Constant, que também escreveu sobre modelos de organização do Estado, se correspondeu com dom Pedro I durante o Primeiro Reinado (1822-1831)Wikimedia Commons

Entretanto, só em dois países esse quarto poder chegou a ser formalmente inscrito no texto constitucional, como uma instituição em separado. O Brasil, com o título 5o da Constituição de 1824, e Portugal, em 1826, com a Carta Constitucional outorgada também por dom Pedro – em Portugal, IV, e não I –, no breve período de seis dias em que acumulou a coroa de ambos os países. Segundo o cientista político Christian Lynch, do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), não é preciso que a função do chefe de Estado como poder arbitral esteja expressa como quarto poder na Constituição. “A ideia é que o monarca na verdade não governa, porque quem faz isso é o ministério. Mas o chefe de Estado é um árbitro nas crises entre os demais poderes”, diz.

“A doutrina do Poder Moderador é uma interpretação do papel do monarca constitucional no estado de direito”, resume Lynch. “Benjamin Constant faz uma interpretação liberal do papel do monarca, ao procurar maneiras de manter a França estável depois da queda de Napoleão Bonaparte [1769-1821]. Ele se refere à Carta francesa de 1814, que não previa o Poder Moderador.”

As funções do Poder Moderador, tanto na doutrina de Constant quanto na Constituição brasileira, guardam semelhanças com algumas das funções que hoje cabem às cortes supremas – no Brasil, ao Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se de garantir que a atuação dos poderes, seja na formulação de leis, seja na administração pública ou no julgamento de casos, não se choque com as normas constitucionais. Outras funções do Poder Moderador eram a nomeação de senadores, a dissolução da Câmara dos Deputados e a suspensão dos magistrados sob suspeita.

O artigo 98 da Constituição de 1824 diz: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. Um dos poderes a harmonizar também estava a cargo do imperador, que era chefe do Executivo. Mas este último era exercido por intermédio do ministério, enquanto o Moderador era um poder direto. “Se compararmos o que estava em discussão em 1823 com o que apareceu na carta de 1824, veremos que grande parte das competências do quarto poder já estava prevista, mas atribuída ao Executivo”, observa Dantas.

De acordo com Lopes, o estabelecimento do Poder Moderador no Brasil se insere no esforço para instaurar um “governo misto” no país. O conceito tem origem com o historiador grego Políbio, considerado o precursor da ideia de separação de poderes. O princípio é que, para conseguir que a administração do Estado seja estável, é necessário incluir nela elementos das três formas de governo: monárquico, aristocrático e democrático. No início do século XIX, quando as nações das Américas se tornavam independentes e os países europeus restauravam suas monarquias em novas bases, ao fim das guerras napoleônicas, essa estabilidade era muito prezada, já que o trauma da era revolucionária do fim do século anterior estava muito vivo na memória dos arquitetos do Estado moderno.

“Para muitos, a ideia de governo misto estava encarnada no governo inglês, que ainda não tinha se convertido no sistema parlamentarista atual. Havia o rei, a Câmara dos Comuns e a Câmara dos Lordes. A experiência norte-americana contava com elementos aristocráticos, como o Senado, que era eleito indiretamente e por um mandato superior ao da Câmara dos Deputados, além do Judiciário vitalício. E tinha elementos moderados, como a estrutura federal, que limitava muito os poderes da União. Na Colômbia e na Venezuela, Simon Bolívar havia proposto um Senado não só vitalício, como hereditário”, enumera Lopes.

No governo misto adotado no Brasil imperial constava uma magistratura vitalícia, mas também um júri popular escolhido por sorteio e composto por homens com as mesmas qualificações dos eleitores. A Câmara dos Deputados era eleita, embora indiretamente, e o Senado era vitalício. O Poder Moderador era exercido pessoalmente pelo imperador. “O arranjo era muito delicado. O exercício desse poder era controlado apenas em parte: cada vez que fosse exercê-lo, o imperador era obrigado a consultar o Conselho de Estado, que gozava da garantia da vitaliciedade”, prossegue o professor da USP.

Metropolitan Museum of ArtEscultura de Montesquieu, autor que teorizou sobre a necessidade de separação das estruturas de governo em três poderesMetropolitan Museum of Art

Conforme o artigo 142, a consulta deveria ser feita ao conselho composto de até 10 membros vitalícios nomeados por ele mesmo. Na prática, o Conselho de Estado precedeu a Constituição, tendo sido criado por dom Pedro I quando dissolveu a Assembleia Constituinte. A carta de 1824 foi elaborada por esse conselho, dos quais seis eram ministros, e outorgada pelo imperador.

Em 1834, durante a regência, o Conselho de Estado foi extinto por reforma constitucional, mas foi recriado após o chamado “regresso conservador”, em 1841. Sua consulta, porém, seria apenas facultativa. O monarca não era obrigado a ouvir os conselheiros quando decidisse usar das atribuições do moderador. Mais tarde, o diplomata Joaquim Nabuco (1849-1910) diria, no livro autobiográfico Minha formação, ter sido o conselho o verdadeiro “cérebro da monarquia”. “Ele passa a ser mais do que um órgão consultivo. É ao mesmo tempo um órgão político e jurídico, a cúpula da justiça administrativa”, explica Lynch. “O Conselho de Estado teve um papel constitucional muito importante. Aconselhava o imperador segundo regras constitucionais. Seu arquivo contém um acervo impressionante de interpretações da Constituição, uma verdadeira jurisprudência constitucional do Império, que, hoje, pouca gente consulta”, observa Lopes.

Segundo Lynch, por ter sido formalizado na primeira Constituição pós-Independência, o Poder Moderador se tornou uma presença forte no imaginário político do país. “Mais do que se fosse algo não escrito, ele entrou no imaginário como uma espécie de último representante da soberania da nação”, explica. Nas décadas seguintes, duas interpretações se desenvolveram ao longo do período imperial: a conservadora e a liberal.

Na primeira, que prevaleceu até a década de 1860, caberia ao imperador, imbuído desse poder, “tutelar um sistema representativo que, na verdade, era muito precário”, segundo os termos de Lynch. A interpretação liberal, ao contrário, considerava que o monarca deveria se limitar à atuação como árbitro em momentos de disputa. Essa segunda visão ganhou impulso nas últimas décadas do império, quando o Estado nacional já estava consolidado e os políticos de inclinação liberal adquiriam influência na sociedade civil.

“Em Portugal, nunca houve a imagem do Poder Moderador com essa função de tutela, somente de árbitro. Por quê? Porque era um país que já tinha Estado nacional. No Brasil, o Estado nacional foi construído em torno da figura do imperador. Hoje, em Portugal, que é uma república parlamentarista, há quem diga que o papel de um presidente é o de árbitro, como no Poder Moderador”, diz Lynch.

Embora tenha sido responsável pela presença do quarto poder na Constituição brasileira, o único ato de dom Pedro que corresponderia a uma das mais controversas prerrogativas do Moderador ocorreu quando ainda não havia Constituição: o fechamento da Assembleia Legislativa, em novembro de 1823. Depois disso, até sua abdicação em 1831, não houve mais ocasiões semelhantes.

“Dom Pedro I sofria muitas resistências e, desde que a Assembleia Constituinte assumiu, começou um conflito entre ela e o imperador. Havia um desejo de romper com o absolutismo e o despotismo, então uma das primeiras decisões adotadas dizia que os dispositivos aprovados pela assembleia não passariam pelo crivo do imperador. Em resposta, o imperador, ajudado por alguns grupos da própria assembleia, adotou uma estratégia de força”, resume Salles. “Mas a reação foi de tal ordem, com um custo político tão alto para o imperador, que ele nunca mais teve condições de fazer isso.”

Conforme Lopes, o equilíbrio do sistema era delicado. Dom Pedro I foi rapidamente visto como autoritário e despótico, indispondo-se com os poderes locais. “Já seu filho, dom Pedro II, que reinou entre 1840 e 1889, foi acusado de sistematicamente manipular o sistema por cooptações ou formas sutis de gerenciar as disputas políticas. Na verdade, ao contrário de seu pai, Pedro II movimentou-se dentro das instituições e manobrou politicamente o quanto pôde”, diz Lopes. Lynch acrescenta que as correntes políticas mais liberais acusaram o Poder Moderador de ser um resquício absolutista, por ser exercido diretamente pelo imperador, sem precisar da assinatura de seus ministros. A partir da década de 1870, com o fortalecimento de liberais e, pouco a pouco, de republicanos, as críticas se intensificaram. Com a proclamação da República, em 1889, o Poder Moderador foi abolido.

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