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Biblioteconomia

Exposição comemora 10 anos da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

Mostra na USP traz um recorte do acervo, que vem se desdobrando em pesquisas

Prédio (à esquerda) que acolhe a biblioteca no campus da Cidade Universitária, no bairro do Butantã

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Entre 1929 e 1931, a escritora e militante Patrícia Galvão (1910-1952), a Pagu, escreveu um caderno em que registra a relação com o companheiro, o escritor modernista Oswald de Andrade (1890-1954), o nascimento do filho desse relacionamento, Rudá de Andrade (1930-2009), suas convicções políticas e percepções sobre o entediante cotidiano burguês. O original dessa obra, O romance da época anarquista, integra a exposição Uma biblioteca viva ‒ BBM 10 anos, que fica em cartaz até o dia 15 de setembro no prédio da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da Universidade de São Paulo (BBM-USP). “A ideia da exposição é chamar a atenção para o acervo da biblioteca, que, como sabemos, tem potencial para se desdobrar em pesquisas”, afirma Hélio de Seixas Guimarães, vice-diretor da BBM e professor de literatura brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. “Muita gente dentro da própria USP não sabe o que há no prédio da BBM.”

Inaugurada em junho passado, a exposição oferece um recorte do acervo da biblioteca, que comemora uma década em 2023, sobretudo por meio de quatro eixos temáticos. Um deles, Literatura, abriga produções do período modernista, publicações para crianças e as primeiras edições das obras de Machado de Assis (1839-1908). Outro eixo reúne as edições originais de obras de viajantes que exploraram o Brasil no século XIX, também agrupadas na plataforma interativa Atlas dos viajantes no Brasil. No bloco Livro-objeto podem ser vistas obras de editores que privilegiaram o caráter artesanal do ofício, a exemplo de Elvino Pocai (1881-1956), responsável pela edição de Há uma gota de sangue em cada poema (1917), livro de estreia de Mario de Andrade (1893-1945). Ou então dos poetas Geir Campos (1924-1999) e Thiago de Mello (1926-2022), que à frente da editora Hipocampo, de Niterói (RJ), publicaram títulos como Com o vaqueiro Mariano (1952), conto de Guimarães Rosa (1908-1967). Por fim, o bloco Uma coleção em processo exibe, por exemplo, os originais com marcas manuscritas de Torto arado, emprestados à biblioteca por Itamar Vieira Junior, autor do romance lançado em 2019 pela editora Todavia.

Uma das principais brasilianas do país, a biblioteca conta com cerca de 32 mil títulos e 60 mil exemplares reunidos ao longo de oito décadas. Mais de 4 mil documentos, entre livros, periódicos e mapas, já foram digitalizados e estão disponíveis para consulta on-line. O projeto de digitalização começou em 2007 e contou no início com apoio da FAPESP. Antes de ser doada à USP em 2005 pelo empresário e bibliófilo José Mindlin (1914-2010) e sua mulher, Guita (1916-2006), a coleção era explorada por pesquisadores na residência do casal, em São Paulo, onde ocupava dois andares subterrâneos da construção. “A dinâmica era da pesquisa individual: a pessoa batia à porta da casa deles para fazer pesquisa e era acolhida pelos donos”, conta Alexandre Saes, atual diretor da biblioteca e professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP. “Agora, a BBM vem criando uma política institucional para atrair pesquisadores, como editais com vagas para residentes, além de apoiar a realização de exposições e publicação de livros e artigos.”

Em 1986, a historiadora Ana Luiza Martins encontrou Guita Mindlin por acaso no Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp), quando investigava sobre os gabinetes de leitura paulistas do século XIX, tema de sua dissertação de mestrado em história social, realizada com bolsa da FAPESP e defendida em 1990 na USP. Na ocasião, Guita convidou a jovem para ir à sua casa, no bairro do Brooklin. Na antiga biblioteca dos Mindlin havia o “quarto do caos”, apelido dado a um cômodo em que eram guardadas obras que ainda não estavam catalogadas. Martins descobriu nele alguns números de revistas raras, como O Patriota (1813-1814), em que o público do fim do período colonial lia de poesias e prosas românticas a manifestos políticos. “A partir de análise do que era publicado nesses periódicos é possível estudar, por exemplo, aspectos do processo de Independência do Brasil ou do movimento republicano”, afirma a pesquisadora.

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP Exposição com parte do acervo da biblioteca fica em cartaz até 15 de setembroLéo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Martins também localizou na biblioteca um conjunto de revistas publicadas nas regiões Norte e Nordeste do Brasil oitocentista, onde havia uma efervescência editorial ainda pouco conhecida pelos pesquisadores na década de 1980. “Com o predomínio da cultura cafeeira, na virada do século XIX para o XX, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro passaram a dominar a edição de periódicos”, explica. Sua tese de doutorado, que resultou no livro Revistas em revista (Edusp/FAPESP, 2008), analisou as publicações ilustradas editadas entre 1890 e 1922 e, segundo a historiadora, só foi possível ser realizada graças ao acervo da biblioteca e do “quarto do caos”, que hoje se encontra conservado na BBM – assim como parte significativa dos periódicos impressos no Brasil nos últimos dois séculos.

Aposentada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) paulista, Martins continua atuando como pesquisadora residente na BBM. No momento, estuda a trajetória da imprensa brasileira de 1890 a 1945, o que inclui a década de 1920, quando surgem as publicações modernistas no país. “Muito jovem, Mindlin ficou amigo dos primeiros modernistas, e desde cedo colecionou revistas de vanguarda”, conta Martins. Entre as coleções da BBM, diz a pesquisadora, estão títulos como Klaxon, Festa e Terra Roxa e Outras Terras.

Livros para crianças
Outro acervo relevante da biblioteca é o de livros infantis. Gabriela Pellegrino Soares, professora de história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, também pesquisava na antiga biblioteca da casa dos Mindlin e hoje é pesquisadora associada da BBM. Sua tese de doutorado sobre a história da formação de leitores no Brasil e na Argentina entre 1915 e 1954 baseou-se, em parte, no acervo de livros infantis dos Mindlin e resultou no livro Semear horizontes (UFMG, 2007).

De acordo com a historiadora, graças ao acervo da BBM – que também conta com obras e correspondências de pensadores modernistas, como Mário de Andrade (1893-1945) e Câmara Cascudo (1898-1986) – ela conseguiu compreender como o modernismo exerceu grande influência na literatura infantil da primeira metade do século XX. Soares lembra que os modernistas, interessados em retratar o Brasil profundo, produziram uma literatura que dialogou com formas de expressão marcadas pela oralidade. “Esses autores escreviam de uma maneira menos rígida, mais próxima da linguagem falada, e assim estabeleceram uma ponte com as crianças leitoras”, explica. “Isso fez surgir uma literatura infantil muito vibrante no Brasil, na primeira metade do século XX, enquanto na Argentina o gênero ficou muito preso aos padrões escolares”, compara a historiadora.

A seção de títulos para crianças presente na exposição dos 10 anos da BBM é uma reformulação de outra exposição, de 2017, chamada Livros infantis velhos e esquecidos, organizada por Soares e pela historiadora Patrícia Tavares Raffaini, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, cuja pesquisa de pós-doutorado sobre a história dos livros infantis teve apoio da FAPESP. A exposição deu origem a um livro homônimo, publicado em 2022. Entre as preciosidades do acervo infantil da BBM encontram-se coleções publicadas na segunda metade do século XIX pela editora francesa Garnier, que editava no Brasil o mesmo catálogo oferecido na França. “A Garnier publicava literatura infantil com espaço para o humor”, diz Soares

Primeiras edições e manuscritos
De acordo com Saes, Mindlin tinha predileção pela literatura e pelas primeiras edições das obras. A BBM reúne as primeiras edições das 25 obras publicadas em vida por Machado de Assis (1839-1908). Digitalizados, os livros podem ser consultados on-line. Mas também há uma amostra deles na exposição comemorativa.  Além das primeiras edições, Saes relata que a BBM tem um conjunto de manuscritos que permitem entrever o processo criativo de autores ao longo dos séculos, o que inclui o poeta Gregório de Matos (1636-1696) e a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003). O acervo abriga ainda datiloscritos de Graciliano Ramos (1892-1953), além de provas editoriais de Vidas secas (1938) – o livro ganhou o título conhecido hoje apenas depois da última prova, quando ainda era chamado de O mundo coberto de penas.

Professor aposentado de literatura brasileira da USP e pesquisador associado da BBM, João Roberto Faria utilizou as primeiras edições de peças de teatro que abordaram a escravidão ao longo do século XIX no Brasil, presentes no acervo. Seu foco era descobrir o papel da dramaturgia brasileira no processo de emancipação de escravizados (ver Pesquisa FAPESP nº 325). O historiador encontrou na biblioteca as primeiras edições de textos de dramaturgia como Mãe e O demônio familiar, de José de Alencar (1829-1877), Sangue limpo, de Paulo Eiró (1836-1871), Gonzaga ou A revolução de Minas, de Castro Alves (1847-1871), além de O escravocrata, de Artur Azevedo (1855-1908) e Urbano Duarte (1855-1902). Segundo Faria, a peça da dupla, chamada originalmente de A família Salazar (1882), foi proibida de subir em cena por abordar a relação entre um escravizado e sua senhora, uma mulher casada. “A proibição gerou um movimento de solidariedade entre escritores, que publicaram o texto em 1884, e este acabou tendo grande repercussão mesmo sem ser encenado”, conta o pesquisador.

A própria história da BBM
O historiador Thiago Nicodemo, diretor do Arquivo Público do Estado de São Paulo e professor no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), estudou como foi construída nas décadas de 1930 e 1940 a própria concepção de brasiliana: uma coleção de livros e outras publicações que falam sobre o país e cujo conjunto funciona como uma espécie de reserva intelectual nacional.

Segundo Nicodemo, num contexto em que bibliotecas inteiras foram parar no exterior, intelectuais dos círculos de Mário de Andrade e Sergio Buarque de Holanda (1902-1982) começaram a projetar uma política cultural voltada para a pesquisa e ensino, criando e mantendo acervos. Um desses nomes foi o historiador e bibliófilo Rubens Borba de Moraes (1899-1986). A brasiliana que depois faria parte da biblioteca dos Mindlin e, mais tarde, da BBM começou a ser construída por ele. Por muitas décadas, Borba de Moraes foi amigo de José Mindlin, com quem dividia a paixão por colecionar obras raras. Ao longo dos anos, Mindlin comprou coleções inteiras do amigo, a quem também vendia obras que lhe interessavam.

Em 2017, Nicodemo estudou a história da BBM a partir dos próprios arquivos da biblioteca. A parte inicial dessa história foi narrada num artigo publicado no ano seguinte. Ele conta que, desde o final da década de 1970, os dois amigos bibliófilos elaboraram um projeto de criação de uma biblioteca-museu, com prédio próprio, aberta a todos. “Eles chegaram a ter um compromisso, registrado em cartório, de que quem morresse por último ia tornar a biblioteca um instituto público de pesquisa.” A história termina – e dá início a outra – com a BBM aberta ao público em 2013.

Artigo científico
NICODEMO, T. L. A invenção das brasilianas no século XX: Alguns capítulos da história da Coleção Guita e José Mindlin. Revista BBM. São Paulo, n. 1, p. 168-77. jul./dez. 2018.

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