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Entrevista

Fernando Novais: As esferas da existência

Professor da USP e da Unicamp fala de sua trajetória, do lugar da história no quadro das ciências sociais e da crise do sistema colonial que levou à Independência do Brasil

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Em 89 anos de vida e mais de 60 de carreira, Fernando Antonio Novais cumpriu trajetória singular na historiografia brasileira. No clássico Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), fruto de sua tese de doutorado defendida em 1973, ele relaciona a colonização com a formação do capitalismo comercial e as transformações ocorridas em seu centro e sua periferia. Também ilumina o conjunto de relações políticas e econômicas estabelecidas entre a metrópole lusitana e sua Colônia na América do Sul, mostrando como ambas, embora cada uma a seu modo, foram impactadas pelas transformações do capitalismo na virada do século XVIII para o XIX, mas atingiram o ponto de inflexão que conduziu à Independência do Brasil em condições peculiares na comparação com a de outros países do Novo Mundo.

Idade 89 anos
Especialidade
História do Brasil
Instituição
Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Formação
Graduação (1958) e doutorado (1973) na USP
Produção
Autor de livros como Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), coordenou a coleção História da vida privada

Historiador de formação marxista, ele coordenou nos anos 1990 a coleção História da vida privada, da Companhia das Letras, recortada segundo figurinos da chamada Nova História, um movimento surgido nos anos 1980 que se contrapôs à influência da teoria marxista da história. Novais não vê nisso uma contradição, pois considera compatível estudar a história por temas, como preconiza o movimento, e ao mesmo tempo adotar um referencial teórico consolidado. Graduado em 1958 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (atual FFLCH) da USP, lá lecionou História Moderna e Contemporânea de 1961 a 1986, quando se transferiu para o Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aposentando-se em 2003. Atuou ainda como professor ou pesquisador visitante em universidades de Portugal e dos Estados Unidos, além de ministrar cursos em instituições da França e da Bélgica.

Na entrevista a seguir, ele relembra sua trajetória, esboça suas inquietações com a posição da história no quadro das ciências sociais e fala da crise do capitalismo que levou à Independência do Brasil.

 Como escolheu a carreira de historiador?
Minha família não era de intelectuais, mas meu pai era uma pessoa muito estudiosa. Ele era diretor de grupo escolar. Nasci em Guararema, perto de São Paulo. Meu pai foi removido para Colina, no norte do estado, onde vivi até os 7 anos. Depois fomos para São José do Rio Preto. Com 15 anos, vim para São Paulo e nunca mais saí. Sempre fiz escola pública, que, naquela época, era a melhor. Fui para o Colégio Roosevelt, na Rua São Joaquim, para fazer o curso clássico. A escolha entre o clássico e científico já indicava que eu iria para as humanidades – não tinha mesmo jeito para as ciências exatas. Eu gostava muito de literatura, mas tinha a ideia de que, para ensinar, eu precisaria saber línguas e teria que aprendê-las. No Roosevelt, tive uma professora de história excepcional. Chamava-se Maria Simões, conversava muito comigo. Quando chegou no fim do curso, eu já não tinha muita dúvida de que iria estudar geografia e história, porque eram juntas naquela época, como na França.

E por que preferiu se tornar pesquisador na área de história?
No primeiro ano na Faculdade de Filosofia, as melhores disciplinas eram de geografia. História da Grécia era dada pelo professor Pedro Moacyr Campos [1920-1976]. Fui falar um dia com ele e perguntei sobre a bibliografia de um assunto que ele tinha tratado na aula. Ele me perguntou: “O senhor sabe alemão?”. Respondi que não. “Pois só existe bibliografia em alemão.” Me deu as coisas e foi embora. Eu, evidentemente, fui estudar alemão. Era melhor em francês. Naquele ano, o professor Pierre Monbeig [1908-1987], que havia ficado 11 anos como professor de geografia na Faculdade de Filosofia, voltou para dar um curso, Géographie de la colonisation, e fui assistir. Eu entendia a metade do que ele falava. Havia estudado francês em um cursinho do grêmio da faculdade. No segundo ano, encontrei o professor de História Moderna, Eduardo d’Oliveira França [1917-2003], que me influenciou profundamente. Com ele, fiz toda a minha carreira na Faculdade de Filosofia. Me considero seu discípulo até hoje.

Não existe história aplicada. Fazer previsão de história é inconcebível. E a história é assim porque trata de todas as esferas da existência

Como foi esse primeiro contato com o professor França?
Ele dava um curso na Maria Antônia, na quarta-feira, para uma classe pequena, sobre Renascimento na Itália, a Florença no século XV. No primeiro dia, chegou atrasado e começou a aula dizendo assim: “Senhores, vamos trabalhar juntos nesse semestre, precisamos nos entender. Em primeiro lugar, quem quiser sair da classe tem que pedir autorização. E vão se acostumando, porque eu não sou muito pontual. Aliás, a pontualidade é uma característica dos medíocres. Um professor que não tem nada a dar aos seus alunos, oferece a pontualidade”. Depois de uma hora e meia, os alunos estavam fascinados pela aula. Ele pertenceu à segunda turma formada na USP e foi um aluno privilegiado do historiador Fernand Braudel [1902-1985], um dos professores estrangeiros que vieram para a USP em sua fundação. A partir daí, eu fui para o lado da história. Assistia às aulas à tarde. À noite, ia bisbilhotar os cursos de filosofia, literatura, ciências sociais.

O que mais lhe interessava?
No primeiro ano, fiz o curso de antropologia da professora Gioconda Mussolini [1913-1969] e ela me dizia: “Fernando, você vai ser historiador e precisa assistir a alguns cursos de sociologia, são muito importantes. Recomendo o curso do Antonio Candido [1918-2017], sobre organização social, e o do Florestan Fernandes [1920-1995], sobre métodos”. Na terça-feira, procurei o Antonio Candido: “Professor, sou do curso de história, mas queria assistir ao seu curso”. Ele disse: “Ah, sim, fico muito contente. O senhor viu o programa e a bibliografia? O senhor não veio ver se gosta, não é?”. Eu disse: “Absolutamente”. Na quinta-feira, tive a mesma conversa com o Florestan. Ele me olhou e perguntou: “O que o senhor leu de sociologia?”. Respondi que tinha lido o manual do Armand Cuvillier. Ele disse: “É pouco, o senhor não vai entender nada. Assista ao curso de introdução à sociologia e no ano que vem o senhor volta”. E fechou a porta na minha cara. Fui assistir ao curso do Florestan no ano seguinte e entendi 50%. No curso ele pressupunha conhecimento em Durkheim, Weber e Marx e fazia uma reflexão sobre os três. Já nessa época, comecei a refletir sobre algo que me inquieta até hoje, que é a posição da história no quadro das ciências sociais. Eu conversava muito sobre isso com os professores.

Qual era o foco da discussão?
A história não se distingue das ciências sociais por estudar o passado e elas, o presente, como se dizia. A antropologia, a sociologia, a economia podem estudar o passado, assim como há a história contemporânea e mesmo a história imediata. Se não é isso que distingue, o que é? Ninguém tinha resposta. Discuti isso várias vezes, em conversas com o professor França. Um ponto importante é que cada uma das ciências sociais tem como objeto uma esfera da existência, enquanto a história trata de todas elas ao mesmo tempo. Das ciências humanas, a que tem mais clara essa divisão é a economia. A economia é a esfera da existência que diz respeito à produção e consumo de bens econômicos, isto é, objetos materiais ou não, que são úteis e escassos. O desenvolvimento da economia, da sociologia ou da antropologia tem ligação com a consolidação do capitalismo e a revolução industrial. A sociologia está ligada ao surgimento de uma sociedade urbano-industrial, que exigiu uma compreensão diferente da sociabilidade. A antropologia tem a ver, historicamente, com a partilha da África e a necessidade de compreender culturas chamadas primitivas. A economia é a mais formalizada das ciências sociais e consegue fazer previsões. Com a história, ocorre o oposto. Não existe história aplicada. Fazer previsão de história é inconcebível. E a história é assim porque trata de todas as esferas da existência. O objeto do discurso do historiador é ilimitado. É todo o acontecer humano. Em epistemologia, em filosofia da ciência, em lógica, a definição de ciência estabelece duas características. A primeira é o recorte rigoroso do objeto. A segunda é um método adequado àquele objeto. Com esse critério, a história nem sequer poderia ser uma ciência, já que seu objeto não é delimitado.

E como a história se relaciona com as ciências sociais?
Ainda não havia capitalismo, nem burguesia, nem imperialismo, nem partilha da África, nada disso, quando na Alta Idade Média o Venerável Beda [c.673-735] escrevia a Historia ecclesiastica gentis anglorum. Muito antes disso, na Grécia, a pólis por algum motivo passou a exigir um discurso que narrasse os acontecimentos. Isso fez com que o discurso historiográfico se descolasse do discurso mitológico. Quando as ciências sociais surgiram, ao longo do século XIX, a história já existia, mas passou a ser influenciada por elas. Os historiadores começaram a querer ser cientistas. Não bastava narrar os acontecimentos, era preciso explicá-los. Um dos efeitos é que passaram a escrever mal, em contraste com o texto literário dos cronistas que os antecederam. A história para ser moderna – ao mesmo tempo narrativa e explicativa – tem que usar os conceitos das ciências sociais. Quais são eles? Os conceitos das ciências sociais relativos ao setor que você está estudando. Se você está estudando a educação infantil no século XVII, é preciso pegar os conceitos de pedagogia, educação, psicologia. Mas isso precisa ser historicizado. E o que é ser historicizado? Significa ver como esses conceitos funcionavam na época.

O senhor participou a partir de 1958, na Faculdade de Filosofia, dos seminários para estudar O capital, que reuniam nomes como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, o filósofo José Arthur Giannotti (1930-2021) e o crítico literário Roberto Schwartz. Alguns deixaram de ser marxistas. O senhor se define como um historiador marxista como naquela época?
A maior parte dos integrantes do grupo de leitura de O capital deixou de ser marxista. Eu comentei outro dia com o Roberto Schwartz: somos os últimos que se mantêm. Sou e pretendo ser um historiador marxista. Quando eu me aposentei e fiz 80 anos, meus orientandos publicaram pela editora Cosac Naify um volume de ensaios, chamado Aproximações, estudos de história e historiografia. A obra teve o prefácio de um orientando, o Pedro Puntoni, e a orelha do livro foi escrita por uma orientanda, a Laura de Mello e Souza, ambos caríssimos colegas. Os dois falam que eu sou um historiador marxista, porém não dogmático, e isso é comum nos escritos dos dois. Só que um, o Pedro, toma o lado marxista. E a Laura toma o lado não dogmático. Gosto muito dos dois.

Nos anos 1990, o senhor coordenou a coleção História da vida privada, tida como um exemplo da chamada Nova História, uma corrente que se contrapôs à análise marxista da história. Houve, de fato, uma contradição?
Quando eu fui dirigir a coleção na Companhia das Letras, várias pessoas me perguntaram: você é um historiador marxista que dirige uma publicação tipicamente da Nova História? A Nova História se apresenta como sendo a superação do marxismo, mas eu não vejo oposição entre as duas. Os anos 1970 e 1980 foram marcados pela chamada crise dos paradigmas, que é o abandono das grandes teorias pelo recorte rigoroso de temas mais restritos. Ciências sociais e história reagiram de forma diversa. Os cientistas sociais, aprofundando o debate teórico; os historiadores, mudando de assunto. Esse abandono correspondeu ao abandono da visão geral do marxismo, que é uma teoria da história. Por isso, a Nova História aparece como uma superação do marxismo. A Nova História, em vez de aprofundar a discussão teórica, prefere mudar de assunto. O historiador pode mudar de assunto simplesmente, já que o objeto da história é indelimitado. Mas por que, ao mudar de assunto, não se deve usar conceitos antigos? A história deve voltar a ser só narrativa, como era na época dos cronistas? Acho isso um equívoco.

Portugal dependia de alianças e fez todas as concessões que poderia fazer: só não abria mão do território do Brasil

Voltando aos seminários de Marx, como era a convivência entre os participantes?
O Giannotti foi fundamental na formação do grupo, que era composto por pessoas avançadas politicamente, de esquerda, não reacionárias, mas que não suportavam o marxismo soviético. Na biografia que escreveu sobre Marx, o José Paulo Netto, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assinala que os textos de Marx e Engels foram sendo elaborados e discutidos pouco a pouco. Outra obra, o Dicionário do pensamento marxista, do sociólogo Tom Bottomore [1990-1992], mostra que existem posições diferentes do marxismo em quase todos os verbetes, desde alienação até violência. Eu acrescentaria que, na experiência soviética, os textos de Marx e Engels viraram um cânone – todos os rascunhos foram publicados. Dadas essas características, os adversários do marxismo tomam eventuais contradições como base para a sua refutação. Já nas discussões internas do marxismo, diferentes correntes sempre encontram citações para sustentar suas posições, como acontece com a Bíblia, citada por ortodoxos e heterodoxos. O Giannotti dizia: nós precisamos ver se existe uma ontologia inerente, latente no Marx. Temos que descobrir se existe e qual é. No Brasil, havia duas vertentes que inovavam a respeito dos problemas do marxismo. Uma em economia, por meio da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], e a outra vertente era um professor: o Florestan Fernandes. Por isso, o Florestan não foi convidado a participar do grupo, uma vez que era um objeto de discussão. Há uma entrevista do Florestan para uma revista, em que ele fala do esforço para implantar a sociologia moderna no Brasil e diz: “As novas gerações não colaboravam. Começavam a pulular conventículos para ler O capital, Lukács e quejandos. Naturalmente, não fui convidado. Não me ralei, tinha mais o que fazer”. Eu me lembro de dizer ao Florestan: “Professor, o senhor deu uma paulada em todos nós”. “Vocês ficaram chateados? Ótimo, é isso o que eu queria”, ele respondeu.

O que se discutia nos seminários?
O pensamento marxista entra de uma maneira para os sociólogos, antropólogos, psicólogos, psicanalistas, e de outra para os filósofos. A obra do Giannotti logo depois foi sobre Marx. Ele dizia: é preciso ler O capital como um texto de filosofia. O que é ler um texto de filosofia? Ele respondia: “Um texto de filosofia requer a conversão, você só entende um filósofo se você pensar como ele, nos termos dele. Você não pode lê-lo e criticá-lo ao mesmo tempo”. Ele trata disso em vários livros e conclui que existe uma ontologia do marxismo, mas que ele não consegue fechar. Dentro do grupo, havia duas alas. Uma, que era liderada pelo Roberto Schwartz, em torno do [filósofo húngaro György] Lukács [1885-1971] e da Escola de Frankfurt. A outra, do Bento Prado [1937-2007], que é [o filósofo francês Jean-Paul] Sartre [1905-1980]. Isso aparecia nos debates entre o Bento e o Giannotti e era muito divertido. Eu ficava muito tímido no começo, mas depois comecei a ver que o pessoal não sabia muito de história. Falavam da Rússia no século XII; não havia Rússia no século XII. Aí eu comecei a ficar mais à vontade. São todos muito amigos. Em 1964 veio o golpe. O Fernando Henrique teve que ir para o Chile. As cassações começaram no início de 1969. O período de 1964 a 1969 foi terrível, decisivo.

Falando de sua carreira como pesquisador. Qual é a importância para o historiador de descobrir documentos?
É um dos encantos da pesquisa histórica. O historiador tem de chegar ao evento e narrá-lo e isso pode mudar com a descoberta de textos. Tive uma experiência pessoal com a descoberta de documentos, mas terminou em frustração. Minha pesquisa era sobre a política colonial de Portugal sobre o Brasil no fim do século XVIII e começo do século XIX, de 1777 a 1807, após o período do marquês de Pombal até a vinda do regente dom João para o Brasil. Eu estava pesquisando no Arquivo Ultramarino, em Lisboa. Um dos personagens fundamentais para minha tese sobre Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial era dom Rodrigo de Sousa Coutinho. Ele foi ministro do Ultramar, depois uma espécie de primeiro-ministro, e morreu em 1812, já no Brasil. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho foi o principal estadista depois do Pombal. Pois eu encontro no Ultramarino uma memória dele sobre domínios na América. Fiquei encantado e desesperado. Como eu vi que era importantíssimo, mandei xerografar tudo. Quando voltei ao Brasil, para completar as pesquisas, encontrei uma revista de literatura chamada Brasília. Bati a revista do primeiro ao último número e encontrei lá “Rodrigo de Sousa Coutinho, Memórias sobre os melhoramentos dos nossos domínios na América”. O texto já tinha sido encontrado por um professor pouco conhecido de história da literatura. Depois eu vi que havia uma terceira edição de um brasileiro, esse mais autodidata, Marcos Carneiro de Mendonça, do Rio de Janeiro. Ele publicou um livro sobre um outro estadista dessa época, na qual ele publica, com um outro título, o mesmo manuscrito que estava na biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Qual foi o impacto de seu trabalho na tese de doutorado sobre Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial?
A repercussão, em geral, foi boa. Recebi críticas de autores marxistas, como o Jacob Gorender e o Ciro Flamarion Cardoso, a respeito, por exemplo, da definição do que era escravismo colonial. Também fui criticado por historiadores não marxistas, historiadores modernos da Nova História, mostrando que a economia brasileira não se formou voltada para o exterior. Minha tese diz que o sistema colonial é contraditório. Para explorar a colônia é preciso desenvolvê-la. Ao desenvolvê-la criava-se o mercado interno. Está escrito lá. Muitas vezes a pessoa quer pegar a sua pesquisa e mostrar que ela é explicativa onde ela não é.

Qual é a principal contribuição da obra?
O problema é situar, na formação do capitalismo, qual era a posição do Brasil na gestação do centro e da periferia. E comparar essa posição com a dos Estados Unidos, da América espanhola, dos outros países. Quando o capitalismo se completa com a revolução industrial, o sistema todo é redefinido.

Pedro I é uma figura quixotesca. Foi expulso da nação que proclamou independente e acolhido pelo país natal, que abandonara

Falando do processo de Independência, qual era a posição do Brasil na ruptura entre colônias e metrópoles?
Parte da minha tese discute como o Brasil emerge na crise do sistema colonial. O marxismo tem uma maneira de historicizar os conceitos: o sistema colonial acompanha a formação do capitalismo, na Europa e na Colônia portuguesa aqui. São processos integrados. Portugal não se desenvolveu por motivos extremamente complexos. Dependia de alianças com outras metrópoles e fez todas as concessões que poderia fazer: só não abria mão do território do Brasil. Se Portugal perdesse a Colônia, o que ele teria a oferecer para a Inglaterra em troca de apoio militar para se defender da Espanha, que queria anexar Portugal? Vamos tomar o ano de 1640, quando começa a guerra de restauração portuguesa e a guerra de independência da Catalunha. A guerra em Portugal dura 28 anos. Só em 1668 a Espanha reconhece os Bragança. Na Catalunha, dura 15 anos. A Catalunha não se tornou independente, embora seja uma região maior que Portugal, com unidade geográfica e cultural, e uma língua própria tão distinta do castelhano como o português. A Catalunha tinha a aliança com a França que estava ao lado. Portugal tinha aliança com a Inglaterra. O que Portugal tinha que a Catalunha não tinha? O Brasil. Com a Colônia, podia comerciar e receber proteção em troca. Isso ajuda a entender por que o processo de independência aqui foi muito específico.

Como foi diferente?
A crise na formação do capitalismo ocorre no centro e na periferia, entre 1750 e 1850. No centro e na periferia, reforma e revolução são modos de enfrentamento da crise. As metrópoles fizeram reformas, reduzindo a exploração colonial, os canais de acumulação primitiva. Portugal foi mais longe que as outras metrópoles e é isso o que eu estudo no meu livro, por isso a figura do Rodrigo de Sousa Coutinho é fundamental. Em Portugal as reformas procuram harmonizar o desenvolvimento da Colônia com o da metrópole. Na França, houve a revolução, que levou à abolição da escravidão nas colônias. Onde as reformas foram mais longe, as tentativas revolucionárias foram fracas: no Brasil, a Inconfidência Mineira, em 1789, e a Baiana, em 1798. Na mineira, há o charme dos poetas e Tiradentes foi enforcado. Na baiana, os seus líderes são todos populares. Quatro foram enforcados no largo da Piedade e pouca gente lembra o nome deles. Qual é a diferença? É que a abolição da escravidão era uma coisa vaga na Inconfidência Mineira e na baiana era imediata. Quando Napoleão invade Portugal, a Corte veio para cá, protegida pelos ingleses, e salva-se a Coroa. A posição da elite dominante no Brasil era exatamente igual à do senhoriato em todo o Novo Mundo: desejava a separação, a independência, porém queria manter a dominação social. Mas, quando vem a família real, inverte-se a situação política, aqui passa a ser o centro. Quando eclode a revolução em Portugal, em 1820, as Cortes exigiam a volta do rei, mas o rei quer ficar. É uma situação curiosíssima, pois o Estado estava à frente da classe dominante, e o senhoriato se aproxima do príncipe. Foi uma revolução para conservar o que já tinha, uma revolução conservadora. Por isso está errada a perspectiva “marxizante” de interpretação econômica da história que dizia: “Nós trocamos a dependência de Portugal para a Inglaterra”, como se fosse a mesma coisa. A Independência é importantíssima. E os que fizeram a Independência, como o José Bonifácio, perceberam que era preciso manter a escravidão. Sem escravidão, não ia haver a Independência. Como se resolve o problema? “Ah, aos poucos, vamos integrando”. E até hoje não integrou a população na sociedade, no Estado.

Em uma palestra recente, o senhor sugeriu que, se o Brasil tivesse sido colonizado pela Inglaterra e não por Portugal, poderia ter tido outra trajetória, mas não a dos Estados Unidos. Poderia ser uma imensa Jamaica. Por quê?
As 13 colônias da Inglaterra na América do Norte tiveram um tipo de colonização de imigrantes, em que a economia é organizada para o próprio consumo. Não foram colônias de exploração como no Brasil e na América espanhola. Um outro extremo da colonização da Inglaterra são as Antilhas, com a Jamaica. Ali, houve situação em que se importava tudo, ovo, galinha, porque o foco era exclusivamente fazer açúcar. Quanto mais morriam escravos, mais aumentava o tráfico, era uma situação limítrofe. Entre os extremos, temos a América espanhola e o Brasil, os dois tendentes mais para colônias de exploração do que de imigração, mas sem impedir o desenvolvimento local. Se o Brasil fosse colonizado pela Inglaterra, tenderia a ser uma imensa Jamaica. Vale a mesma coisa com relação aos holandeses. Se tivessem prevalecido no Nordeste, poderíamos ser um imenso Suriname. O fato de termos sido colonizados por Portugal importa, mas não é isso que explica que o Brasil seja mais ou menos desenvolvido hoje. E o tipo de colonização que foi criado naquele momento.

Como avalia as comemorações do bicentenário?
Há avanços de novos temas, como a participação de mulheres, aspectos regionais do processo (o que aparece nas datas, 7 de setembro ou 2 de julho), biografias de personagens, como Tiradentes. Independência não é um tema da Nova História. Deveríamos ampliar a análise da historiografia da Independência, enriquecer biografias como a de Pedro I, que é uma figura quixotesca. Ele faleceu no quarto em que nasceu, no Palácio de Queluz, e o nome do quarto é Dom Quixote. Foi expulso do país que ele proclamou independente. E foi acolhido pelo país natal, que abandonara. Mas ele é amado pelos brasileiros que o expulsaram e desamado pelos portugueses que o acolheram. Por que não se discute isso? Dom Pedro tem uma boa biografia, não por acaso de um brasileiro, o Octavio Tarquínio de Souza. Dom João VI é outra figura de quem os portugueses não gostam muito, têm pena. Aqui tem certa familiaridade. Uma coisa curiosa é que o Brasil festeja a Independência junto com Portugal. Isso não ocorre em nenhum país do Novo Mundo. Citei isso quando dava aula na Unicamp e perguntei a uma aluna argentina, que depois se tornou professora de história econômica: “Você imagina em Buenos Aires o presidente da República comemorar a Revolución de Mayo e convidar o rei da Espanha?”. Ela respondeu: “Impensable”.

O que há de peculiar na relação entre brasileiros e portugueses?
Nossa relação com Portugal tem alguma coisa de briga de família. Fazemos piadas de português, mas não toleramos que estrangeiros façam piadas de português na nossa frente.

Os laços se mantiveram?
Quando o Mario Soares [1924-2017] foi presidente de Portugal, entre os anos 1980 e 1990, o embaixador brasileiro em Lisboa foi o José Aparecido de Oliveira [1929-2007], um político de Minas Gerais. O historiador Francisco Iglésias [1923-1999], que era amigo do José Aparecido, me contou que a amizade entre o embaixador e o presidente levou Mario Soares a decretar Tiradentes como um herói nacional, que lutou pela liberdade. Isso é impensável em outros países.

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