Com uma trajetória intelectual de mais de 60 anos, José Arthur Giannotti construiu pontes entre a filosofia da lógica e da linguagem contemporânea e vertentes mais tradicionais da filosofia, como o marxismo e a fenomenologia, propondo interpretações e extraindo consequências originais das obras de autores como Karl Marx (1818-1883) e Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Para além do legado filosófico, desempenhou papel central na estruturação de uma das mais importantes instituições de pesquisa na área de ciências humanas, formou gerações de pesquisadores e participou ativamente do debate público sobre temas políticos e culturais relevantes para a sociedade brasileira. Professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), morreu no dia 27 de julho, aos 91 anos. Deixou um filho e dois netos.
Giannotti nasceu em São Carlos, no interior de São Paulo, em 25 de fevereiro de 1930 e, aos 9 anos, mudou-se com os pais e dois irmãos para a capital paulista. Próximo do cineasta e escritor Rudá de Andrade (1930-2009), que encontrava em suas idas à Biblioteca Municipal, atualmente chamada Mário de Andrade, foi por intermédio dele que conheceu seu pai, o escritor Oswald de Andrade (1890-1954), incentivador de seu ingresso na USP. Em 1950, passou a cursar graduação em filosofia na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, então localizada na rua Maria Antônia. Seis anos mais tarde, obteve uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para estudar na Universidade de Rennes, na França, com o filósofo Gilles-Gaston Granger (1920-2016), que orientou sua tese de doutorado, intitulada “John Stuart Mill: O psicologismo e a fundamentação lógica”. Em Paris, na mesma época, tornou-se amigo do filósofo Claude Lefort, que o levou a participar de reuniões do grupo político Socialismo ou Barbárie, de orientação marxista, mas contrário ao regime da então União Soviética.
De volta ao Brasil, em 1958 começou a lecionar filosofia da lógica na USP e coordenou um grupo multidisciplinar de estudo sobre O capital, de Marx, que ficou conhecido como Seminário Marx. Participavam, entre outros, os sociólogos Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni (1926-2004) e Leôncio Martins Rodrigues (1934-2021), a antropóloga Ruth Cardoso (1930-2008), o economista Paul Singer (1932-2018), o crítico literário Roberto Schwarz, o historiador Fernando Novaes e o filósofo Bento Prado Júnior (1937-2007). “Nesses seminários, Giannotti se apoiou em sua experiência de leitura sofisticada de textos clássicos da filosofia para trazer uma compreensão da obra de Marx que ia além de seu uso político”, relata o filósofo João Carlos Salles, reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Em 1966, Giannotti prestou concurso de livre-docência na USP, apresentando uma tese que resultou em seu primeiro livro, Origens da dialética do trabalho – Estudo sobre a lógica do jovem Marx. Em 1970, ele e outros professores da USP foram aposentados compulsoriamente, por razões políticas, pela ditadura militar. No mesmo ano, sua mulher, a poeta e tradutora Lupe Cotrim Garaude, mãe de seu filho, Marco, morreu de câncer. Devido à perseguição política, recebeu convite para lecionar na França, mas decidiu ficar no Brasil. Com a demógrafa Elza Berquó, Cardoso e outros fundou um centro de pesquisa, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), apoiado inicialmente pela Fundação Ford. Foi no Cebrap que Giannotti consolidou sua trajetória intelectual como filósofo, professor e polemista.
Além de seu primeiro livro, Giannotti dedicou ao pensamento de Marx outros trabalhos, como Marx, vida e obra (L&PM, 2001) e Certa herança marxista (Companhia das Letras, 2001). Outros livros de destaque foram Exercícios de filosofia (Vozes, 1977), Trabalho e reflexão: Ensaios para uma dialética da sociabilidade (Editora Brasiliense, 1983), Apresentação do mundo (1995), O jogo do belo e do feio (2005), Notícias no espelho (Publifolha, 2011) e uma seleção de artigos de sua autoria. Alguns de seus livros foram traduzidos para o francês e o espanhol. Em 2020, aos 90 anos, Giannotti lançou Heidegger/Wittgenstein: Confrontos (Companhia das Letras). “Nessa obra, ele repensa Heidegger e Wittgenstein a partir de uma perspectiva própria e se posiciona em relação à filosofia contemporânea, questionada a partir dessas duas referências”, explica Luciano Codato, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), orientado por Giannotti da iniciação científica ao doutorado.
A simbiose entre história da filosofia e pensamento filosófico original é considerada uma das marcas características de seu pensamento. “Valendo-se de seu conhecimento amplo da história da filosofia, Giannotti produziu uma obra filosófica original e consistente”, diz Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, membro das coordenações adjuntas da Diretoria Científica da FAPESP e interlocutor constante de Giannotti durante mais de meio século. “De um modo ou de outro, ele sempre buscou obsessivamente nos autores clássicos elementos para dar forma à sua ideia seminal, vislumbrada em Origens da dialética do trabalho, desenhada com nitidez em Trabalho e reflexão e redesenhada, sob o impacto da obra de Wittgenstein, em Apresentação do mundo e em seu último livro, Heidegger/Wittgenstein: Confrontos. É a ideia de que a trama de conceitos que baliza nosso contato racional com o mundo não está fundada em visões intelectuais ou atos de consciência, mas na esfera da vida prática, em que se formam e estabilizam certas regularidades básicas das ações e comportamentos humanos.”
Outra marca do pensamento de Giannotti é a ousadia. “Ele tinha muita admiração pelo Oswald de Andrade. Ele era um intelectual que tinha esse lado vanguardista e para ser vanguardista tem que ser um pouco iconoclasta”, afirma Vinicius Berlendis de Figueiredo, professor no Departamento de Filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), orientando de Giannotti na iniciação científica, mestrado e doutorado. De acordo com Figueiredo, em depoimento à Agência FAPESP, foi essa característica que o fez ser capaz de ir a fundo em várias questões, sem muito receio de contrariar certas correntes de pensamento. O filósofo Marco Zingano, da FFLCH-USP, destaca que, em seus textos, “Giannotti não apenas mostrava o estado da arte de determinadas questões filosóficas, mas ia além, identificando novos problemas e abrindo clareiras de reflexão”.
Para o filósofo Marcos Nobre, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que atualmente preside o Cebrap, Giannotti representa uma geração que profissionalizou a filosofia no Brasil, colaborando com os debates sobre a modernização da universidade brasileira. “Ele tinha um nível extraordinário de conhecimento filosófico, que mobilizava em suas participações no debate público”, diz. “Como mestre e amigo, ele era provocativo e não deixava ninguém se acomodar. Nenhuma pretensa verdade passava sem ser examinada, inclusive aquelas que ele próprio formulava.” O apreço pelo debate é lembrado pelos pares. “Da mesma forma que era um crítico ácido dos colegas e amigos, ele aceitava críticas como ninguém e, inclusive, adorava recebê-las. Ele tinha o gosto pela polêmica e acreditava que apenas pelo diálogo era possível aprender. Ele tinha um forte compromisso moral com a honestidade intelectual, acima da vaidade. E instilou esse compromisso em várias gerações de pesquisadores”, relatou Lopes dos Santos à Agência FAPESP.
Codato conta que o último texto de Giannotti, ainda inédito, descreve sua trajetória intelectual em apenas quatro páginas e foi concluído em seus últimos dias de vida. Ele lembra que em maio deste ano o pesquisador foi indicado ao prêmio da Fundação Berggruen para filosofia e cultura, que anualmente concede US$ 1 milhão “a pensadores cujas ideias têm moldado profundamente a autocompreensão humana e contribuído para o progresso em um mundo em rápida transformação”. “Ciente das dificuldades da premiação de um filósofo do Brasil, autor de livros em português e fora do circuito internacional, afirmou que iria receber o prêmio nos Estados Unidos a nado”, recorda Codato. As regras da premiação não contemplam homenagens póstumas.
Formação de quadros
Como presidente do Cebrap, Giannotti contribuiu para diversificar o campo de atuação do centro. Esther Hamburger, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e membro das coordenações de área da Diretoria Científica da FAPESP, recorda que em seus primeiros anos o Cebrap se concentrou em áreas como economia política, conjuntura econômica e sociologia, com destaque para estudos sobre demografia, religião, questões urbanas e movimento sindical. “Giannotti assumiu a presidência da instituição em meados dos anos 1980, com o projeto de ampliar e atualizar o escopo de pesquisas para incluir temas caros a pensamentos pós-estruturalistas, como a cultura e os movimentos sociais”, relata. Além disso, ele criou uma área dedicada a cultura e política, que foi dirigida durante cerca de uma década por Ruth Cardoso, e convidou o historiador e crítico de arte Rodrigo Naves para editar a revista Novos Estudos Cebrap.
Em 1986, Giannotti concebeu e coordenou, no Cebrap, um programa multidisciplinar para formação de quadros, com dois anos de duração. Alunos de pós-graduação de diferentes áreas enviavam currículo e eram selecionados em entrevistas. “Muitos pesquisadores que são hoje de ponta nas áreas das humanidades passaram por esse programa. Todos aprenderam com Giannotti a valorizar a pesquisa interdisciplinar. Ele tirava as pessoas de suas zonas de conforto. Todo mundo tinha pânico dele e ao mesmo tempo o amava”, sublinha Lopes dos Santos, que colaborou com Giannotti na iniciativa.
A antropóloga Maria Filomena Gregori, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) integrou a primeira turma. “Em uma tarde de fevereiro ou março de 1986, na mesa quadrada de uma sala no porão do Cebrap, aos 20 e tantos anos, eu respirei fundo para me apresentar a Paul Singer, Guillermo O’Donnell, Ruth Cardoso e José Arthur Giannotti. Uma seleção não convencional para um programa de bolsistas inovador: aos cinco minutos de uma fala sobre objeto, objetivos e hipóteses de pesquisa, fui interrompida pelo Giannotti… ‘Já entendi… qual foi o último filme que você assistiu? Comente!’”, lembra Gregori, à Agência FAPESP.
Giannotti foi membro do Conselho Nacional de Educação (CNE) durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Pediu demissão do cargo em 1997, por discordar de decisões do conselho que julgava terem apenas motivação político-partidária. Cardoso e o filósofo foram amigos durante mais de 70 anos. Em sua conta no Twitter, o ex-presidente lamentou a morte de Giannotti: “Filósofo e grande leitor dos clássicos. Amigo como poucos, desses que são raros. Deixa saudades e gratidão”.
Salles recorda que desde a década de 1980 Giannotti esteve inúmeras vezes na Bahia e em outros estados, ministrando cursos e conferências, situações em que ele “atuava como uma espécie de embaixador de um certo padrão de qualidade do trabalho filosófico”. “Por considerar que seus textos eram difíceis e poucos eram capazes de efetivamente compreendê-los, Giannotti brincava dizendo que era um filósofo municipal. No entanto, na realidade, ele teve uma importância estruturante na filosofia em todo o Brasil”, avalia. “Ele provocava emoções fortes em seus colegas. Participou de bancas difíceis e tomou decisões que desagradaram pessoas. Mas sempre fez isso defendendo um certo rigor no pensamento, qualquer que fosse a inclinação filosófica”, diz Salles. O filósofo João Carlos Brum Torres recorda que o conheceu “há 49 anos, em meio e graças a uma discussão polarizada, técnica e profunda sobre a teoria do valor de Marx, debate que o surpreendeu e selou a amizade de uma vida inteira”. Aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor na Universidade Caxias do Sul, Brum Torres enfatiza que Giannotti jamais deixou de “pensar sobre nós mesmos, sobre o nosso país e sobre o que devemos fazer por ele”. “O prof. Gianotti foi um gigante intelectual. Contribuiu como poucos para fazer do Brasil um local mais educado e mais culto. Além da enorme contribuição à filosofia e à política, estimulou o debate sobre a boa universidade pública, sempre elevando seu nível e valorizando o papel social do bom ensino superior”, afirma o engenheiro e físico Carlos Henrique de Brito Cruz, vice-presidente sênior de Redes de Pesquisa da Elsevier e diretor científico da FAPESP entre 2005 e 2020.
Amigos há 50 anos, a cientista política Lourdes Sola, professora aposentada da FFLCH-USP, salienta que Giannotti procurava pensar filosoficamente a realidade política brasileira. “Conversávamos semanalmente, por telefone ou em encontros presenciais, que reuniam vários amigos”, diz. De acordo com Sola, recentemente ele manifestava interesse em debater as relações entre política e economia. “Há um mês, já fragilizado de saúde, se ofereceu para preparar uma pasta em minha casa, para rever dois amigos com quem mantínhamos conversas regulares”, relata Sola ao apontar, também, as habilidades culinárias do filósofo. Em sua residência ampla no bairro do Morumbi, em São Paulo, onde gostava de receber os amigos, Lopes dos Santos lembra que “Giannotti cozinhou para muitos expoentes da filosofia francesa, como Gilles-Gaston Granger, Claude Lefort, Michel Foucault, Gérard Lebrun, Francis Wolff”.
A força da influência exercida por ele sobre seus colegas e alunos é salientada pela socióloga Ângela Alonso, da FFLCH-USP, ex-presidente do Cebrap e membro das coordenações adjuntas da Diretoria Científica da FAPESP. “Giannotti foi uma força da natureza, pela personalidade, e da cultura, pela obra. Foi também um mestre exigente, não aceitava as ideias feitas, nem os raciocínios fáceis e era contundente em suas críticas. Mas era também generoso, capaz de conversar por horas sobre o texto de um iniciante, sugerir novas leituras, ângulos, abordagens. Sobretudo, ensinava pelo exemplo, jamais se dobrando aos modismos. Uma figura ímpar, uma perda sem tamanho.” Para Sola, Giannotti era um “pensador generoso não só com as várias gerações que ajudou a formar, mas também com os adversários: um construtor de pontes entre a filosofia e as ciências sociais. Que seu compromisso com o pluralismo político e rigor intelectual nos sirva de amparo – e não só de exemplo – nesses tempos”, afirmou à Agência FAPESP.
Responsável pela edição de seu último livro, a editora e tradutora Heloisa Jahn conta que o processo de edição foi difícil, estressante e entusiasmante ao mesmo tempo. “Às vezes, eu propunha mudanças em algumas frases, que ficavam mais compreensíveis do ponto de vista sintático, mas da perspectiva conceitual se tornavam imprecisas. Ele me dizia que minhas sugestões deixavam o texto mais elegante, mas que ele perdia matizes que só um filósofo pode compreender”, relata.
A influência de Giannotti extrapolava os limites da academia. Jahn lembra um comentário que Caetano Veloso fez no ano passado, durante uma live. “Malhar é muito chato. Eu prefiro ler José Arthur Giannotti falando de Heidegger”, disse o cantor, na ocasião. Depois do episódio, os dois, que se conheceram na Europa nos anos 1970, chegaram a trocar e-mails planejando um encontro, que acabou não acontecendo.
Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.
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