Andrey AtuchinO novo dinossauro Mbiresaurus raathi, com a fauna do Triássico ao fundo, onde agora é o norte de Zimbábue: dois rincossauros (direita à frente), um aetossauro (esquerda) e um dinossauro herrerasaurídeo perseguindo um cinodonte (direita, ao fundo)Andrey Atuchin
Um pequeno bípede de cauda longa, com cerca de 2 metros (m) de comprimento e peso estimado entre 10 e 30 quilos, é o dinossauro mais antigo encontrado na África. O esqueleto quase completo do animal, provavelmente um herbívoro, foi achado em 2017 no Zimbábue, no sul daquele continente. O fóssil é descrito em artigo publicado hoje (31/8) na versão on-line da revista científica Nature por uma equipe internacional de paleontólogos, com a participação do brasileiro Max Langer, da Universidade de São Paulo (USP), do campus de Ribeirão Preto, e reforça a hipótese de que os dinossauros surgiram no hemisfério Sul.
Denominada Mbiresaurus raathi, a nova espécie viveu há cerca de 230 milhões de anos, durante o estágio Carniano, que faz parte do período geológico Triássico. Seu nome científico faz referência ao distrito em que o fóssil foi encontrado e a uma antiga dinastia Xona que governou a região, ambos chamados de Mbire, e ao paleontólogo sul-africano Michael Raath, que foi o primeiro a explorar a localidade. Mbiresaurus raathi foi contemporâneo dos mais antigos dinossauros conhecidos, que englobam uma dúzia de espécies descritas na literatura científica, todas encontradas em rochas do Carniano de sítios paleontológicos do sul do Brasil e do norte da Argentina. A Índia tem uma única espécie de dinossauro do Carniano, mas a preservação do fóssil é ruim e a natureza desse registro é alvo de controvérsias.
A localização dos ossos do dinossauro africano se deve ao trabalho de campo do paleontólogo norte-americano Christopher Griffin, que faz atualmente estágio de pós-doutorado na Universidade Yale e é o autor principal do estudo. “A descoberta do Mbiresaurus raathi preenche uma lacuna geográfica crítica no registro fóssil dos mais antigos dinossauros”, diz ele, em entrevista por e-mail a Pesquisa FAPESP.
Segundo os pesquisadores, a anatomia do Mbiresaurus raathi é bastante similar à dos primeiros sauropodomorfos sul-americanos. Um traço característico dos dinossauros da linhagem dos sauropodomorfos é o pescoço alongado. “Ele se parece bastante com a espécie Saturnalia tupiniquim, proveniente da região de Santa Maria, no Rio Grande do Sul”, comenta Langer. No artigo científico, o brasileiro, cujas pesquisas contam com financiamento da FAPESP, ficou encarregado de fazer as comparações anatômicas entre o dinossauro africano e as espécies sul-americanas do Carniano.
A descoberta de Mbiresaurus raathi não foi um golpe de sorte. Foi uma aposta racional feita a partir do cruzamento de uma série de informações, sobretudo da análise da distribuição geográfica dos raros registros de dinossauros que viveram há cerca de 230 milhões de anos. Naquela época, todos os continentes atuais estavam unidos em um único antigo supercontinente, a Pangea. A parte norte desse supercontinente é denominada Laurásia, um bloco de terra que se dividiria mais tarde e daria origem à América do Norte, Europa e Ásia setentrional. A porção situada no hemisfério Sul é chamada de Gondwana e englobava América do Sul, África, Índia, Madagascar, Antártida e Austrália.
Nesse cenário longínquo, desponta um dado crucial para um caçador dos primeiros dinossauros: todas as espécies achadas em rochas do Carniano provêm de sítios paleontológicos localizados no Gondwana perto do antigo paralelo 50° sul (a latitude atual dos continentes é diferente). Esse é o caso dos dinossauros oriundos das formações Santa Maria, no Brasil, Ischigualasto, na Argentina, e Maleri, na Índia. No Gondwana, a América do Sul era colada à África, que era unida à Índia. Na prática, essas três áreas atuais eram parte de um território contíguo. Como já tinham sido descobertos dinossauros em rochas sul-americanas e indianas do Carniano, faltava verificar se fósseis desses répteis extintos não poderiam existir também na África, em algum sítio com depósitos geológicos de aproximadamente 230 milhões de anos.
Zach MurphyMandíbula parcial de Mbiresaurus raathiZach Murphy
Com o apoio de colegas africanos, Griffin decidiu em 2017 escavar num ponto específico da formação geológica Pebbly Arkose, no norte do Zimbábue, que tem rochas do Carniano. Parecia uma aposta improvável, visto que, até então, poucos fósseis tinham sido ali encontrados. “Descobrimos o local em nossa primeira viagem para a região”, conta o paleontólogo norte-americano, que nem tinha completado o doutorado quando fez a incursão inicial ao campo africano. “Usamos fotos aéreas do Google Earth para encontrar o local onde as rochas estavam expostas e, em seguida, apenas andamos [sobre elas] e procuramos por afloramentos com fósseis.”
Nessa primeira viagem a campo, Griffin e colegas do Zimbábue e Zâmbia se depararam com o esqueleto de Mbiresaurus raathi. Com exceção de alguns ossos da mão e do crânio, todas as demais partes do animal foram recuperadas. Em 2019, os pesquisadores voltaram novamente ao sítio paleontológico. Juntando as duas incursões, além de 90% do esqueleto de Mbiresaurus raathi, os paleontólogos encontraram fósseis de mais um dinossauro, ainda não descrito, de cinodontes (precursores de mamíferos), de aetossauros (parentes distantes de jacarés) e de rincossauros (répteis arcaicos). Essa fauna é semelhante à encontrada em rochas do Carniano da América do Sul e Índia.
No estudo, os paleontólogos também desenvolveram uma hipótese para explicar por que os primeiros dinossauros conhecidos estariam restritos, segundo o registro fóssil disponível, ao paralelo 50° sul da Pangea, ou seja, a uma zona bem delimitada da parte meridional do Gondwana. Essa área estava dentro de um cinturão de clima temperado úmido, que deve ter sido adequado à diversificação desses répteis. Ao norte dessa zona mais amena, haveria uma grande faixa tropical quente e desértica, que funcionaria como um obstáculo natural para a dispersão dos primeiros dinossauros para o restante da Pangea.
Zach MurphyOsso da canela (tíbia) de Mbiresaurus raathi sendo preparada sob estereomicroscópioZach Murphy
“Nossa hipótese é de que os dinossauros se originaram ao sul da Pangea, no Gondwana, e permaneceram com sua distribuição original até que um aumento global de umidade permitiu sua dispersão pelo mundo”, explica Griffin. O chamado Evento Pluvial do Carniano, ocorrido por volta de 230 milhões de anos atrás, provocou enormes mudanças no clima, que se tornou mais chuvoso e menos quente. Depois dessa alteração, segundo os autores do estudo, os dinossauros e outras formas de vida que estavam confinados a uma latitude específica da Pangea se espalharam pelo globo.
“A ideia de que uma zona de aridez tenha limitado a dispersão dos primeiros dinossauros do Gondwana é realmente interessante e plausível”, comenta o paleontólogo Rodrigo Temp Müller, diretor do Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia da Universidade Federal de Santa Maria (Cappa/UFSM), que não participou da equipe que fez o trabalho publicado na Nature. “O novo registro fóssil de dinossauro no Zimbábue e o conjunto de outros achados dão suporte a essa hipótese.” De acordo com os autores do artigo científico, antes do Evento Pluvial do Carniano, havia duas outras faixas de clima temperado, uma no centro e outra no norte da Pangea, além da que existiu em torno do paralelo 50° sul. No entanto, nessas latitudes não há registro fóssil de dinossauros com mais de 230 milhões de anos.
Projeto
Explorando a diversidade dos dinossauros do Cretáceo Sul-Americano e suas faunas associadas (nº 20/07997-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Max Cardoso Langer (USP); Investimento R$ 2.848.262,44.
Artigo científico
GRIFFIN, C. T. et al. Africa’s oldest dinosaurs reveal early suppression of dinosaur distribution. Nature. On-line. 31 ago. 2022.
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