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Entrevista

Gabriel Liguori: Um coração bioartificial no horizonte

Criador da startup TissueLabs conta como tem buscado superar os desafios para a construção de tecidos e órgãos humanos em impressoras 3D

Liguori: expectativa de começar testes clínicos com corações bioartificiais dentro de 10 a 15 anos

Tácia Liguori

O ano de 2020, cheio de imensos desafios provocados pela pandemia do novo coronavírus, foi também um tempo de conquistas para o médico, pesquisador e empreendedor paulista Gabriel Liguori, de 31 anos. Seu trabalho na TissueLabs, startup criada por ele e pelo engenheiro da computação Emerson Moretto em 2019, rendeu frutos e alcançou reconhecimento internacional.

Em dezembro passado, Liguori foi apontado como um dos jovens mais inovadores na América Latina pela revista MIT Technology Review, publicada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. Ele foi incluído na categoria Visionários da lista que reúne jovens de até 35 anos com ideias inovadoras.

Sua empresa, que teve apoio da FAPESP, é especializada no desenvolvimento de órgãos e tecidos artificiais construídos a partir de células-tronco e biomateriais. Em 2020, a TissueLabs mais do que triplicou de tamanho e, segundo Liguori, já é líder no país da área de bioimpressão 3D, disputada por cerca de meia dúzia de empresas nacionais e estrangeiras. Vislumbrando a possibilidade de começar os testes clínicos com corações bioartificiais dentro de 10 a 15 anos, ele explica nesta entrevista concedida a Pesquisa FAPESP por que decidiu migrar da academia para a iniciativa privada a fim de alcançar esse objetivo. E conta de que forma um problema de saúde congênito acabou definindo o seu futuro profissional.

Sua presença na  lista de jovens inovadores do MIT o surpreendeu?
De certa forma, sim. O processo é um pouco mais longo do que eles simplesmente mandarem um e-mail avisando que você foi escolhido. Primeiro, identificaram o meu perfil – não tenho ideia como – e depois entraram em contato pelo LinkedIn pedindo informações sobre a empresa e meu trabalho. Respondi, ainda sem saber se a inclusão do meu nome na lista já era certa ou se eles ainda estavam no meio da seleção. Depois de uns meses, recebi um e-mail dizendo que havia sido selecionado como um dos 35 empreendedores mais inovadores da América Latina, na categoria dos visionários, de jovens que têm projetos futuros ambiciosos. O primeiro contato foi uma surpresa; depois, eu já esperava uma resposta, positiva ou negativa.

O reconhecimento se deu por sua ambição de criar um coração artificial usando células-tronco impressas tridimensionalmente. Como está o projeto?
De fato, esse é o foco e foi a razão do prêmio. Fabricar órgãos artificiais, em particular um coração para transplante, é o objetivo da nossa empresa, a TissueLabs, no longo prazo. É difícil, porém, trabalhar exclusivamente no desenvolvimento científico por muito tempo sem ter que promover rodadas de investimento com alguma frequência. Como é um projeto de 10 a 15 anos, precisamos gerar uma fonte de renda para que a empresa seja sustentável. Para isso, criamos um modelo de negócios que chamamos de dual business model, no qual, ao mesmo tempo que fazemos pesquisa a fim de fabricar em alguns anos órgãos e tecidos para aplicação clínica, boa parte do que é desenvolvido por nós é colocada no mercado na forma de produtos. Para conseguir fabricar o primeiro coração artificial, precisamos desenvolver tecnologias em diversas áreas que precedem a fabricação do coração em si.

Por exemplo?
Quando falamos de bioimpressão 3D, nos referimos a uma bioimpressora 3D que
usa um biomaterial para construir tecidos tridimensionais. Precisávamos de uma impressora e de materiais que estivessem de acordo com o que entendíamos ser ideal para a fabricação desses órgãos e tecidos. Com apoio do programa Pipe [Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas], da FAPESP, desenvolvemos em escala industrial os hidrogéis – os biomateriais para a fabricação de órgãos e tecidos –, algo que já havíamos feito em escala-piloto. Hoje produzimos hidrogéis na escala de litros, uma grande quantidade. Em 2020, também recebemos um investimento-anjo, de R$ 1,5 milhão, que permitiu a ampliação dos nossos horizontes. Com isso, colocamos no mercado nosso segundo produto, a bioimpressora 3D TissueStart. Além de vendermos aos pesquisadores interessados, ela é usada internamente em nossos projetos.

Sempre me interessei por cirurgia cardiovascular. Nasci com uma cardiopatia congênita e fui operado aos 2 anos

Quão distantes estão de finalizar o coração artificial?
Muito. É importante dizer isso para evitar falsas expectativas. Às vezes, as manchetes dão a impressão de que vamos pôr no mercado e implantar um coração até o ano que vem. Não é nada disso. Esse é um projeto que exige muito tempo. Falamos em pelo menos uma década ou mais para começar os ensaios clínicos. Então, não é algo que estará nas manchetes tão cedo. É um desafio para o qual estamos bem preparados. Temos as tecnologias, o conhecimento, as parcerias e um time de qualidade muito focado. Naturalmente, ainda exigirá muito desenvolvimento.

Alguma empresa já produz órgãos bioartificiais?
Hoje, não há nenhuma companhia no mundo que produza órgãos bioartificiais para aplicação em humanos. Às vezes, ouvimos falar de ventrículos mecânicos ou rins artificiais para diálise, por exemplo, mas os bioartificiais, fabricados em laboratório, não são uma realidade ainda. Não há nenhum estudo clínico, em humanos, nessa área. Os projetos estão, no máximo, em escala experimental, ainda em testes com animais.

Como foi a sua trajetória até aqui?
Sou médico de formação. Fiz graduação na USP [Universidade de São Paulo] e, assim que terminei a faculdade, optei por seguir na área de pesquisa. Depois do doutorado na Holanda, onde fiquei dois anos, voltei para o Brasil e tive a oportunidade de trabalhar no InCor [Instituto do Coração], como pesquisador. Criamos lá um laboratório de engenharia de tecidos e, algum tempo depois, percebi que esse projeto precisava ir para a iniciativa privada, porque tinha ambições grandes e exigia um volume de recursos que nem a academia nem o próprio Estado, via seus órgãos de fomento, como a FAPESP, conseguem fornecer. Ter essa clareza foi uma das razões que me fizeram migrar para o empreendedorismo. Fundei em 2019 a TissueLabs com meu sócio, o engenheiro Emerson Moretto. Já havíamos trabalhado juntos na universidade. Foi uma experiência muito boa. A FAPESP nos ajudou a dar os primeiros passos. Naquele mesmo ano, recebemos apoio do Pipe, o que deu segurança para seguir em frente. Colocamos um pouco de recursos próprios, mas é claro que não tínhamos capital para desenvolver atividades de pesquisa supercaras. Quando o auxílio da FAPESP terminou, em novembro de 2019, tivemos que andar com as próprias pernas. Passamos a oferecer ao mercado os primeiros produtos relacionados à engenharia de tecidos [os hidrogéis e a bioimpressora TissueStart].

Como surgiu seu interesse por esse campo de pesquisa?
Durante a graduação, sempre me interessei muito por cirurgia cardiovascular. Tenho uma história pessoal com isso por ter nascido com uma cardiopatia congênita. Aos 2 anos, fui operado no InCor e, desde então, continuo sendo um paciente da instituição. Desde que entrei na Faculdade de Medicina da USP, que é a responsável pelo InCor, me envolvi com a área de cirurgia cardíaca, especialmente a pediátrica. Fiz iniciação científica nessa área, participei de congressos e publiquei livros. Minha ideia era ser cirurgião pesquisador, que é quase uma figura do folclore médico, porque são pouquíssimos os cirurgiões que conseguem se dedicar à pesquisa. Quando fui fazer o doutorado, não tinha intenção de abandonar de fato a prática médica; a ideia era fazer isso temporariamente, voltar e juntar as duas coisas. Quando escolhi a minha área, optei pela medicina regenerativa, da qual a engenharia de tecidos faz parte.

O que é exatamente engenharia de tecidos?
É uma nova área da medicina, que ainda não chegou à clínica de maneira relevante, mas que chegará nos próximos anos. Ela utiliza células, principalmente células-tronco, para a regeneração de órgãos. Isso pode ser feito tanto com terapia celular quanto com engenharia de tecidos, que é fabricar um órgão novo para implante. Enxerguei que essa área tinha potencial, principalmente para a cirurgia cardíaca pediátrica. Hoje, quando uma criança tem uma cardiopatia, tentamos consertar o coração colocando um tubo aqui, fazendo um remendo ali, outro acolá. Dá para dizer que funciona bem; eu mesmo tenho uns tubos e uns remendos desses. Mas, ao longo do tempo, algumas dessas crianças podem ter problemas e necessitar de transplante. Conseguimos dar qualidade de vida ao paciente, mas não o curamos de fato. Ao menos, não todos. Quando voltei do doutorado, já estava tão envolvido e encantado com essa área que foi natural abdicar da ideia de seguir a carreira de cirurgião e focar exclusivamente na pesquisa.

Léo Ramos Chaves A bioimpressora TIssueStart foi projetada para fabricar tecidos humanos tridimensionais complexosLéo Ramos Chaves

O que faz a TissueLabs?
A TissueLabs é uma empresa muito jovem; completamos dois anos no fim de janeiro. Ela tem uma frente de pesquisa e outra de desenvolvimento e comercialização de produtos. De um lado, pesquisamos tecnologias para permitir desenvolver órgãos em laboratório. De outro, usamos esses desenvolvimentos para lançar produtos no mercado, como a bioimpressora 3D TissueStart. Ela foi projetada para a fabricação de tecidos humanos tridimensionais complexos, formados por mais de um tipo de célula. É o caso do miocárdio, que combina células musculares e endoteliais. Outro item do portfólio são os hidrogéis MatriXpec, a matéria-prima que vai na bioimpressora para fabricar os tecidos. Eles contêm centenas de proteínas específicas da matriz extracelular derivadas do tecido nativo e estão disponíveis para 15 tecidos diferentes. Nosso terceiro produto, o MatriCoat, é uma solução contendo as proteínas de matriz extracelular. Quando o pesquisador coloca essa solução em placas ou frascos de cultura, as proteínas contidas nela se ligam à superfície desses recipientes. Com isso, transformam materiais sintéticos não representativos [as placas e  os frascos de cultura] em um ambiente um pouco mais parecido com o corpo humano, tornando o experimento que vai ser realizado ali um pouco mais representativo do real. Por fim, também disponibilizamos a plataforma MatriWell, para cultivo de células epiteliais. Com foco inicial em pulmão, ela foi criada no começo da pandemia e distribuída gratuitamente para alguns pesquisadores. Estamos recebendo os primeiros resultados agora. Recentemente, obtivemos apoio da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] para expandir esse projeto para que mais cientistas, do Brasil e do mundo, possam utilizar a plataforma. Queremos disponibilizar para pesquisadores, na academia ou na indústria, as mesmas tecnologias que usamos internamente. Dizemos que, se não conseguirmos fazer o primeiro coração artificial, mas alguém o fizer com os nossos produtos, estaremos felizes do mesmo jeito.

Qual é o principal desafio de construir órgãos artificiais com impressoras 3D?
A fabricação desses tecidos artificiais tridimensionais tem uma grande limitação, que é a maturação dos tecidos. Às vezes, conseguimos imprimir um coração de rato com células-tronco, a matriz extracelular, mas isso está longe de ser um órgão funcional. Porque o tecido original, do coração nativo, tem detalhes que ainda não conseguimos reproduzir via impressão 3D. O primeiro deles é a densidade celular. Nas impressões 3D atuais, trabalhamos na casa de 10 milhões de células por mililitro. Um coração nativo, nesse mesmo espaço e volume, de 1 centímetro cúbico [cm3], tem quase 1 bilhão de células – até 100 vezes mais do que conseguimos reproduzir in vitro atualmente.

Quais são os outros desafios?
O alinhamento celular. Os cardiomiócitos, que são as células que contraem o coração, são alinhados e têm um posicionamento geométrico muito particular. Essas células têm de estar conectadas e alinhadas de uma forma que, quando contraem, geram um vetor de força de dentro do coração para os vasos sanguíneos. Não adianta, por exemplo, ter um monte de células dentro do seu coração impresso contraindo, mas cada uma para um lado. Se isso acontecer, ocorre a chamada fibrilação. O coração bate sem rumo. Há, ainda, um terceiro ponto de dificuldade a superar: a vascularização. Se não tem vascularização no órgão artificial, não chega oxigênio e o tecido morre. Aí não adianta construir o coraçãozinho de rato com 3 ou 4 cm3, se ele vai morrer inteiro, se vão ficar vivos só os 2 milímetros mais exteriores. A vascularização é um ponto fundamental sobre o qual também temos estudado.

Planejam desenvolver outros órgãos?
Temos preferência e familiaridade com o sistema cardiovascular, principalmente pelo background da equipe. O mais provável será desenvolvermos vasos sanguíneos e valvas [conjunto de válvulas] cardíacas. Mas não fechamos os olhos para as outras áreas.

A empresa também produz órgãos para testar novos fármacos em substituição a modelos animais?
Levaremos muitos anos para colocar órgãos para transplante no mercado, mas já conseguimos utilizar nossa tecnologia para esse outro tipo de aplicação, que é o desenvolvimento de modelos in vitro tridimensionais para substituir alguns modelos animais no desenvolvimento de drogas, screening [rastreamento de doenças] e na medicina personalizada. Por exemplo, se um paciente tem uma cardiopatia, em vez de testar várias drogas diretamente nele, poderemos criar um pedacinho do seu coração personalizado, baseado nas células dele, e investigar que medicações funcionam melhor, antes de dar o remédio.

Como a startup se situa no mercado?
Somos líderes no Brasil em bioimpressão 3D, tanto no fornecimento de equipamentos quanto no de biomateriais. Mais de 20 laboratórios no país utilizam nossa impressora, a TissueStart. Cerca de 70% a 80% de nossos clientes são pesquisadores acadêmicos, a maioria brasileiros. Mas há também cientistas dos Estados Unidos, da Suíça, de Portugal e do México. Temos clientes na indústria, em startups e em grandes empresas. Uma delas, de fora do Brasil, adquiriu nossos equipamentos para o desenvolvimento de carne de laboratório. Creio que há espaço para crescer. Esperamos ter mais de uma centena de laboratórios no país trabalhando com nossos produtos nos próximos anos. Queremos que mais pessoas conheçam a TissueLabs, porque oferecemos soluções que dão nova perspectiva às pesquisas na área. Hoje, 95% da pesquisa biomédica no mundo é feita em duas dimensões [2D], nas famosas placas de Petri. Sabemos que esses resultados não são representativos do corpo humano, da natureza do organismo. Então, a proposta é trazer os estudos biomédicos in vitro para o 3D. Nos próximos 10 anos haverá um grande movimento de cientistas indo do bi para o tridimensional.

Projetos
1. Caracterização de hidrogéis miméticos à matriz extracelular derivados de tecidos diversos e sua influência no comportamento celular (nº 19/22468-0); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Gabriel Liguori (TissueLabs); Investimento R$ 821.306,56.
2. Otimização e padronização da fabricação de um hidrogel mimético à matriz extracelular para aplicações em medicina regenerativa, engenharia de tecidos e outros estudos in vitro (nº 18/15450-5); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Gabriel Liguori (TissueLabs); Investimento R$ 96.292,65.

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