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Resenhas

Hinos gregos entre o divino e o profano

A palavra ofertada. Um estudo retórico de hinos gregos e indianos | José Marcos Macedo | Editora Unicamp, 408 páginas, R$ 48,00

Estudo sobre o tema revela erudição surpreendente

Duas passagens de Platão afirmam que o hino é um gênero literário estritamente ligado ao divino (República 607a; Banquete 177a). A. E. Harvey (“The classification of greek lyric poetry”, CQ 5, 1955, p. 165) crê que, nesses trechos, o propósito de Platão tenha sido definir o hino como um canto cultual dirigido aos deuses (e não aos mortais). Contudo, essa definição da poesia hínica como canto associado a uma prática cultual é problemática: o próprio Harvey (ibidem) admite que, na literatura grega, o termo “hino” é aplicado a praticamente qualquer tipo de canto. De fato, o corpus que forma a hínica grega apresenta grande variedade formal e funcional – ali encontramos hinos cultuais, mas também simpóticos, líricos, rapsódicos. Muitos hinos têm de fato uma função cultual; há outros, contudo, que são de fundo literário e não estão associados a nenhum culto. Em A palavra ofertada, José Marcos Macedo, reconhecendo a dificuldade de definição do gênero, enfrenta o problema com elegância e acuidade. Seu objetivo é identificar as estruturas retóricas que se repetem nos hinos gregos – estejam eles ligados ao culto religioso ou não. O insight fundamental da análise de Macedo é a constatação de que, por trás da variedade recoberta pelo gênero hínico, é possível encontrar uma mesma estrutura formal de poesia hierática e identificar estratégias retóricas constantes que caracterizam e definem o gênero. Ao buscar identificar esses aspectos formais do gênero, Macedo sempre se apoia em uma leitura perspicaz e em uma análise rigorosa do texto grego de passagens significativas de uma importante seleção de hinos e de poemas gregos que contenham hinos aos deuses.

Apenas esse estudo original e sensível já justificaria considerarmos A palavra ofertada como uma das mais importantes publicações brasileiras na área de estudos clássicos nos últimos anos. Contudo, Macedo vai ainda além dos hinos gregos: seções do livro são dedicadas ao estudo de hinos indianos que compõem o Rig Veda, coleção de poemas compostos oralmente entre os séculos XV e XI a.C. – e este me parece ser o aspecto mais original e prolífico de seu trabalho: o estudo comparativo de hinos gregos e indianos propicia uma melhor compreensão da estrutura desse gênero literário e – foco principal do trabalho de Macedo – dos recursos retóricos empregados no discurso dirigido aos deuses. A escolha do corpus – hinos gregos e indianos – não é gratuita: as duas culturas têm uma origem comum e apresentam analogias estruturais não só nas línguas (o grego e o sânscrito pertencem à mesma família linguística – o indo-europeu), mas também nos aspectos formais de suas poesias. O estudo comparativo desses dois conjuntos de hinos revela, com clareza e precisão, os recursos estilísticos empregados pelo poeta para persuadir o deus que é o destinatário do hino.

Da análise de tais recursos – a autorreferencialidade (capítulo 1), a estruturação a partir do centro encontrada em alguns hinos rigvédicos (capítulo 2) e a estruturação da composição a partir de pares contrastantes (capítulo 3) – o autor chega à ideia de reciprocidade como paradigma da relação entre mortais e deuses (capítulo 4), tanto nos hinos gregos como nos indianos. Os homens fazem ofertas aos deuses e, reciprocamente, pedem-lhes dádivas. E, aqui, Macedo identifica uma diferença importante entre o hino e a prece: enquanto a prece está normalmente associada a um objeto votivo, a uma libação, a um sacrifício etc. (ou seja, paralelamente à prece, é ofertado aos deuses um outro objeto), o hino pode ser ele mesmo o objeto ofertado, o objeto que induzirá os deuses a estabelecer laços de reciprocidade com o mortal que os interpela. A função do hino jamais é ancilar (como no caso da prece): é o próprio hino – palavra ofertada – que seduz e torna propícios os deuses.

Esse trabalho seminal de Macedo revela uma erudição impressionante: leva em conta praticamente toda a bibliografia relevante sobre o tema. Em apêndice, são apresentadas as traduções de alguns hinos rigvédicos analisados.

Flávio Ribeiro de Oliveira é vice-diretor e professor de grego no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

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