Quarenta anos de pesquisa em arquivos brasileiros, portugueses e holandeses acabam de resultar em uma verdadeira pérola editorial da história do urbanismo brasileiro. O livro Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial (Edusp/Imprensa Oficial, 414 págs. R$ 80,00), do arquiteto e historiador Nestor Goulart Reis, reúne 329 imagens de plantas e vistas de cidades como Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Cananéia, São Paulo e muitas outras, entre o século XVI e o início do XIX. O livro, que contou com o apoio da FAPESP, pode ser encontrado na Fundação de Pesquisa Ambiental (Fupam) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP).
Completamente desconhecidos do público por estarem dispersos em arquivos de todo o território nacional e ainda no exterior, esses desenhos fazem parte de um conjunto de mais de mil plantas com as quais Reis, auxiliado por uma equipe de 20 pessoas do Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação (LAP) da FAU/USP, descobriu, no decorrer dos últimos 40 anos, a força que o planejamento urbano teve no Brasil Colonial. A pesquisa do LAP pode ser vista também em CD-ROM e em um kit educacional de 35 pôsteres que está percorrendo escolas públicas de todo o país.
Os desenhos – alguns feitos em aquarela – podem ser considerados verdadeiras expressões artísticas de seus autores. E que autores são esses? Na maior parte das vezes, engenheiros militares enviados por Portugal para garantir a segurança da colônia. Daí o fato de o nascimento de Salvador, em 1549, por exemplo, ter se dado com a presença de um mestre de fortificações. A preocupação com a segurança fez de portas e muros elementos muito comuns nas urbes brasileiras daquele tempo, transformando-as em espelhos dos burgos medievais europeus. Sobretudo no litoral, onde era preciso resguardar-se da invasão de povos inimigos.
Já no século XVII, conta o pesquisador, começa-se a agregar um planejamento de ruas em forma de xadrez para reforçar a segurança e o controle militar, diante do crescimento populacional da colônia. “A partir do século XVII e no decorrer do XVIII, a população colonial passou de 300 mil para 3 milhões de habitantes, a grande maioria vivendo em centros urbanos desenvolvidos em decorrência do ciclo do ouro, e não só em Minas Gerais”, narra Reis. “Era preciso racionalizar a defesa militar, daí a presença quase constante do planejamento simétrico de ruas, em forma de xadrez.” Esse tipo de concepção era tão presente, que até o quilombo do Rio Vermelho, localizado em um bairro de Salvador, foi planejado dessa maneira.
“Além disso, o planejamento urbano era completo, então havia áreas das cidades destinadas a comportar, por exemplo, os índios – está certo que longe das habitações dos portugueses”, explica. “Não existiam, assim, moradores de rua; estes começaram a existir no final do século XIX.”A intensidade da vida urbana naquele tempo também se expressava por meio de espaços culturais. “Vila Bela, capital do Mato Grosso em meados do século XVIII, tinha uma casa de ópera em que eram encenados de 80 a 90 espetáculos teatrais por ano”, diz o pesquisador. “E as igrejas eram espaços para músicos e compositores.”
A partir de 1750, conforme diz Reis, Portugal decidiu marcar enfaticamente sua presença na América. A arquitetura serviu-lhe para deixar claro que o território português além-mar era bastante diferente do espanhol. “Havia normas de planejamento, como, por exemplo, a que determinava que todas as janelas e portas deviam ter a mesma altura e outra segundo a qual as ruas não podiam receber nomes em tupi.” Uma rápida olhadela no livro de Reis já permite ver que cidades como Recife e Salvador tinham muito das portuguesas, como Porto e Lisboa.
Fazendo escola
Os cursos de urbanismo ministrados hoje no Brasil quase nada herdaram do planejamento urbano colonial, mas muitos engenheiros militares daquele tempo – alguns portugueses, outros franceses, alemães ou italianos – fizeram escola por aqui. Foi o caso do português José Fernandes Pinto Alpoim, que, além de ter construído o Palácio dos Governadores do Rio de Janeiro e o de Ouro Preto, fez um plano simétrico para a cidade de Mariana, em Minas Gerais, em 1746. “Ele reativou as aulas militares no Rio de Janeiro, escrevendo manuais de artilharia e de arquitetura e foi a partir de seus cursos que se formaram a Academia Militar de Agulhas Negras e a Escola Politécnica do Rio de Janeiro”, afirma Reis.
O italiano Antônio José Landi, juntamente com outros astrônomos, geógrafos e engenheiros estrangeiros, integrou a expedição portuguesa responsável pelo reconhecimento da bacia amazônica no século XVIII, que colaboraria para as melhores delimitações entre os territórios portugueses e os espanhóis naquela região. Segundo o Tratado de Tordesilhas (1494), aquelas terras pertenciam aos espanhóis, mas há tempo os portugueses vinham ocupando a porção ocidental da linha. Até que, em 1750, o Tratado de Madri definiu que aquelas terras passariam a pertencer oficialmente ao reino português. A missão não obteve sucesso, devido à ausência dos castelhanos em um encontro marcado na povoação de Mariuá, no coração da baía amazônica. Porém, Landi resolveu ficar em Belém do Pará, onde morou até o fim da vida.
Lá, ele construiu o Palácio dos Governadores, a Igreja de Sant’Ana e a Capela de São João Batista, tendo contribuído para a formação de uma mentalidade arquitetônica iluminista na região. Alguns brasileiros aprendizes dos estrangeiros também tiveram seguidores, como José Antônio Caldas. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial apresenta as representações de nossos centros urbanos de acordo com a ordem cronológica em que esses se desenvolveram na história. Assim, primeiro vêem-se as plantas e vistas das cidades dos Estados nordestinos – Bahia, Alagoas, Sergipe, Ceará, etc. Depois, as do Sudeste, seguidas pelas do Sul, Brasil Central e finalmente do Norte.
A intensa e longa pesquisa da equipe de Nestor Goulart Reis contou com o apoio imprescindível da FAPESP e do CNPq. “Em 1974, a FAPESP chegou a nos dar uma câmara fotográfica profissional que permitia fazer reproduções em chapas planas de 4 x 5 polegadas, com altíssima resolução”, conta. “Além das inúmeras viagens que tivemos de fazer, devido à dispersão dos documentos.” Para o pesquisador, a grande contribuição que Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial tem a oferecer à historiografia nacional é introduzir as fontes iconográficas e o planejamento urbano como documentos.
“Quando estudamos a história do Egito ou da Grécia, sempre levamos em conta a história da arte e da arquitetura daqueles povos”, diz. “No Brasil, até então, a história só vinha sendo contada por documentos escritos, principalmente pela herança burocrática portuguesa”, continua. Para ele, que descobre sempre um aspecto novo cada vez que coloca uma lupa sobre os desenhos, o que temos pela frente, a partir da pesquisa, é uma nova forma de ver a história do Brasil. Que seja assim.
Perfil :
Nestor Goulart Reis Filho, 69 anos, é graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP, onde é professor titular de História da Arquitetura e Estética.