Em 1937, no mesmo ano em que Vargas inaugurava o Estado Novo com uma cerimônia em que as bandeiras estaduais eram queimadas numa pira, para mostrar que agora o Brasil era uma nação, sob o comando de um único homem, estreava nos cinemas O descobrimento do Brasil, do cineasta Humberto Mauro (1897-1983). Entre a imolação e a criação, curiosamente, havia muita coisa em comum: ambos preconizavam o fim das “diferenças” e o novo culto aos símbolos nacionais como forma de reunir o povo em torno do ideal varguista.
A pesquisa de Eduardo Morettin, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), traz à luz a utilização do cinema por Vargas como forma de cooptar os brasileiros para o Estado Novo e seus ideais. Em especial, Morettin recupera uma faceta pouco lembrada do cineasta, mais conhecido da crítica pelos filmes de ficção de linguagem hollywoodiana que fez antes da propaganda varguista: Brasa dormida (1929) e Ganga bruta (1933). Neles, no espírito dos preceitos da revista Cinearte, de Adhemar Gonzaga, Mauro já falava em nação, mas de forma polida, como o “país do futuro”.
A ascensão de Vargas fez com que adotasse uma visão nacionalista mais radical, mais conservadora, já que, passou a acreditar, o país ainda não estava pronto para as vanguardas. Para Mauro, naquele momento, o cinema era sinônimo de educação, como queriam intelectuais getulistas como Roquette-Pinto e Fernando Azevedo. Não seria com a ficção que o país melhoraria, mas com o amor à pátria, capaz de redimir os brasileiros “corrompidos pelo pecado original”.
O ditador entendia de “modernidade”, a seu modo, e sabia do valor dos novos veículos, como o rádio e o cinema, como poucos. O referencial da Alemanha nazista, onde a UFA, estúdio cinematográfico alemão, funcionou como arma de propaganda ideológica, era forte entre os responsáveis pela cultura, como Roquette-Pinto. E o Brasil era ideal para o meio, já que “terra de analfabetos”: não sem razão, Vargas chamou-o de “livro de imagens luminosas”. Mas não era qualquer filme. Os melodramas e outros do gênero só estragavam as novas gerações. O fim precípuo do meio era educar e mostrar a “verdade”. Para o cinema, o novo status foi uma sorte grande e início da relação perigosa com o Estado.
Filmes eram meios de gerar progresso, mesmo que falando do passado. Daí o investimento feito pelo governo para ser um curta encomendado pelo Instituto do Cacau da Bahia, que convidou Mauro, então à frente do Instituto Nacional de Cinema Educativo, o Ince, para dirigir a película. A oportunidade serviu para Roquette-Pinto e Mauro mostrarem como deveria ser o cinema histórico, com um retrato científico do descobrimento, incluindo-se a supervisão do diretor do Museu Paulista, tudo ao som do músico do regime, Villa-Lobos.
O filme virou uma mera animação de quadros históricos e da carta de Caminha, tendo ao fundo a música do maestro dando o tom geral do corpo unido em torno de uma nação e um líder, cujo momento exemplar é a cena em que os índios são recebidos a bordo do navio de Cabral e postos carinhosamente a dormir pelo capitão. Mas é injusto, nota Morettin, ver em Mauro o arrivista do regime, como na relação entre a cineasta Leni Riefenstahl e Hitler.
O brasileiro não se ligava ideologicamente ao regime e, de forma mesmo inconsciente, Mauro até incluiu críticas sutis, como ao fim de Descobrimento, em que a música patriótica de Villa tem como contraponto a imagem da cruz e os rostos desolados dos degredados abandonados na nova terra. No filme Os bandeirantes (1940), que fala da epopeia de Fernão Dias Paes em busca das esmeraldas, é igualmente feito com “precisão” histórica e com toques unitaristas, como na cena em que o bandeirante se vê obrigado a enforcar o filho em prol da ordem, como faria o “pai” Getúlio. O encontro das esmeraldas é um anticlímax e o filme se encerra com a melancólica morte de Paes.
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