Imprimir PDF Republicar

Colaborações

Iniciativas promovem maior envolvimento de pacientes em estudos clínicos e na busca por tratamentos

Modelo de colaboração pode inspirar novas abordagens ou mesmo melhorar a qualidade dos estudos, ajudando a gerar resultados mais rápidos e eficazes

Jônatas Moreira

A participação de pessoas com doenças graves ou sem tratamento específico em pesquisas na área médica se restringiu por muito tempo à presença em ensaios clínicos ou ao fornecimento de amostras de material biológico, como sangue e tecidos, para análise. Isso tem mudado nos últimos anos. Muitas iniciativas no mundo estão tentando promover colaborações mais abertas e inclusivas, nas quais os pacientes são reconhecidos como profundos conhecedores de suas próprias condições e trabalham com médicos e pesquisadores na busca por terapias eficazes.

“Os pacientes também possuem conhecimentos válidos, adquiridos a partir de suas experiências pessoais com a doença, o que lhes permite identificar perguntas a serem feitas e questões a serem investigadas e ajudar a projetar soluções eficazes para seus problemas de saúde”, destaca a epidemiologista Isabela Bensenor, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que coordena uma pesquisa em colaboração com pessoas com fibrilação atrial, um tipo de arritmia em que as fibras cardíacas se contraem de forma desordenada, impedindo que o sangue seja bombeado adequadamente pelo coração.

Entrevista: Isabela Bensenor
00:00 / 15:10

O estudo investiga as necessidades e experiências de pessoas com a doença atendidas em unidades básicas de saúde do bairro do Butantã, em São Paulo, de modo a refinar seu diagnóstico e tratamento, por meio de adaptação de métodos conhecidos ou novos. “Promovemos encontros com os pacientes para discutir perguntas de pesquisa a partir de suas experiências e estratégias para detecção dos sintomas da fibrilação atrial e redução do risco de coágulos e acidentes vasculares”, conta Bensenor. “Muitos ressaltaram a importância de ensinar a população a reconhecer a doença pelo monitoramento do pulso e que as equipes de saúde fizessem o mesmo para que o problema seja detectado precocemente.”

O esforço tem relação com um modelo conhecido como ciência cidadã, que procura envolver indivíduos sem experiência científica na produção de conhecimento (ver Pesquisa FAPESP nº 323). No caso específico da pesquisa médica, ele é resultado de um longo amadurecimento. Um marco remonta à década de 1980, quando indivíduos com HIV/Aids nos Estados Unidos se engajaram em pesquisas sobre a própria enfermidade, até mesmo experimentando por sua conta e risco drogas ainda não aprovadas. Como a doença na época se disseminava sem controle e evoluía rapidamente para a morte, as vítimas assumiram um protagonismo na busca por algum tipo de tratamento e exigiram que a urgência de suas demandas fosse incorporada às estratégias e à agenda formuladas pelos pesquisadores.

Anos antes, ativistas com outros tipos de problemas de saúde já reivindicavam o direito de participar da regulamentação de ensaios clínicos e de determinar o grau de risco que estavam dispostos a correr ao participar de testes com drogas experimentais. Isso fez com que passassem a integrar comitês de ética em pesquisa de hospitais e universidades, e comitês consultivos governamentais, auxiliando na tomada de decisão sobre a incorporação de medicamentos, equipamentos e protocolos nos sistemas de saúde.

Universidades e agências de fomento têm estimulado uma participação mais efetiva de portadores de doenças em estudos clínicos, caso do Centro de Pesquisa Clínica e Translacional da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, que tem um programa de apoio com treinamentos, linhas de financiamento para projetos colaborativos e assessoria de especialistas que ajudam a aproximar cientistas de grupos de pacientes. Em 2019, o Instituto Nacional para Pesquisa em Saúde (NIHR), do Reino Unido, lançou serviço semelhante para empresas farmacêuticas, de biotecnologia e tecnologia médica. Por sua vez, o Cambridge Patient Led Research Hub, criado em 2015, trabalha para aproximar cientistas e vítimas de doenças raras.

O envolvimento na produção de conhecimento clínico pode ir além da pesquisa em si. Há algum tempo periódicos como a The BMJ convidam pacientes, seus familiares e cuidadores para participar da análise de papers sobre os problemas de saúde que enfrentam, de modo a complementar o escrutínio feito por especialistas (ver Pesquisa FAPESP nº 270). Em 2016, o Patient-Centered Outcomes Research Institute, organização pública norte-americana que financia estudos voltados às necessidades dos pacientes, lançou iniciativa semelhante, buscando envolvê-los na análise dos relatórios finais de estudos que apoia – até agora, pelo menos 175 portadores de enfermidades contribuíram com a avaliação de mais de 280 relatórios de pesquisa. Ao comentar um relatório sobre prescrição de opioides para o tratamento da dor, um deles destacou que ele não mencionava terapias alternativas que poderiam substituir o uso da substância, em vez de apenas auxiliar no controle da dor. Os autores do estudo refizeram o documento, apresentando um histórico mais equilibrado, descrevendo os prós e contras do tratamento com opioides a longo prazo e possíveis alternativas ao seu uso.

Colaborações entre pacientes e médicos podem inspirar novas abordagens ou mesmo melhorar a qualidade dos estudos, diz Bensenor, da FM-USP

O interesse de instituições por esse modelo de colaboração se baseia no entendimento de que as pessoas enfermas, sobretudo com doenças congênitas ou crônicas, podem compreender a realidade de suas condições tanto ou mais do que médicos e pesquisadores, e essa experiência pode ajudar a gerar resultados mais rápidos e eficazes. “Tais colaborações também podem inspirar novas abordagens ou mesmo melhorar a qualidade dos estudos, permitindo que os cientistas aprimorem seus protocolos e identifiquem questões e problemas a serem resolvidos antes do início das pesquisas”, diz a fisioterapeuta Egmar Longo, do Departamento de Fisioterapia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que trabalha com pesquisadores da Universidade de Utrecht, nos Países Baixos, na criação de ferramentas que estimulem e viabilizem parcerias entre pacientes e cientistas.

Já há casos de estudos que tiveram como ponto de partida investigações feitas pelos próprios pacientes e depois foram incorporadas por pesquisadores. Em 2002, nos Estados Unidos, um movimento liderado por pacientes chamado Clusterbusters usou a internet para recrutar indivíduos que sofrem de cefaleia em salvas, doença neurológica rara e grave sobre a qual havia pouca pesquisa, caracterizada por crises extenuantes de dores em um lado da cabeça, acompanhadas de olhos vermelhos, inchados e lacrimejantes. A ideia era que eles participassem de autoexperimentos e desenvolvessem protocolos para o uso da psilocibina, princípio ativo de cogumelos alucinógenos, como forma de tratamento.

As atividades do grupo atraíram a atenção da neurologista Emmanuelle Schindler, da Universidade Yale, que passou a colaborar com o movimento em um protocolo de tratamento baseado em pequenas doses da psilocibina – atualmente em testes clínicos. O esforço também abriu caminho para que, em 2019, a FDA, organismo que controla medicamentos e alimentos nos Estados Unidos, aprovasse o uso do anticorpo monoclonal Emgality na prevenção de crises desencadeadas pela doença. A farmacêutica Eli Lilly projetara o fármaco originalmente para o tratamento de enxaquecas, mas propôs uma dose mais alta para dores causadas pela cefaleia em salvas após entrevistar membros do Clusterbusters, alguns dos quais participaram de seu ensaio clínico.

Outro exemplo recente se deu na pandemia. Em 13 de abril de 2020, a jornalista Fiona Lowenstein publicou um artigo no jornal The New York Times relatando sua experiência pessoal com sintomas prolongados da Covid-19. O texto atraiu milhares de pessoas para o grupo de apoio que ela havia criado no programa de mensagens instantâneas Slack para orientar pacientes com o mesmo problema, entre elas a brasileira Letícia Soares, que à época fazia estágio de pós-doutorado sobre malária aviária na Universidade de Western, no Canadá.

Soares tivera Covid-19 havia pouco tempo. Não chegou a ser internada, mas ficou bastante debilitada, sofrendo de fadiga e dores musculares e nas articulações. Passada a fase aguda da doença, essas manifestações persistiram e outras novas surgiram, como perda de memória e problemas de concentração. “Percebemos no nosso grupo de apoio que muitas outras pessoas que haviam superado a fase aguda continuavam com os sintomas ou desenvolviam outros novos que perduravam”, ela conta. “Alguns pacientes do grupo criado por Lowenstein decidiram registrar esses casos, pois estava claro que os efeitos deletérios do vírus no organismo humano poderiam ser maiores e mais duradouros do que se pensava.” A iniciativa deu origem ao Patient-Led Research Collaborative.

A primeira pesquisa do grupo envolveu 3.700 indivíduos de 56 países e identificou sintomas inicialmente negligenciados pela comunidade médica, mas que hoje são reconhecidos como característicos da síndrome pós-Covid-19, a chamada Covid longa. “O relatório, publicado na forma de artigo em julho de 2021, foi um dos primeiros a tratar desse assunto, em uma época em que havia pouca discussão sobre essa condição”, diz Soares. “Várias pessoas encontraram validação ao ver sua experiência refletida em um estudo com outros pacientes.” Algumas usaram o artigo para mostrar aos médicos que seus sintomas eram frequentes. Desde então, a iniciativa já publicou diversos outros artigos científicos em revistas especializadas e conseguiu quase US$ 5 milhões em financiamento para novos projetos, todos desenhados de acordo com as prioridades de seus membros.

A iniciativa se transformou em uma rede global, na qual cientistas e pacientes com síndrome pós-Covid-19 podem se conectar para fazer novos estudos. Um deles, realizado no Brasil por cientistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e da Escola de Economia e Ciência Política de Londres (LSE), no Reino Unido, busca compreender experiências e necessidades de saúde de pessoas com Covid longa. “As que integram nossa equipe estão envolvidas desde o início do projeto, contribuindo para a definição de seus objetivos e protocolos de coleta de dados”, disse a Pesquisa FAPESP Emma-Louise Aveling, pesquisadora de Harvard, uma das coordenadoras da pesquisa.

Jônatas Moreira

Casos como esses indicam que comunidades de pacientes estruturadas em torno de dados obtidos a partir de autoexperimentações ou de sua experiência com a doença podem resultar em pesquisas inovadoras. Em 2011, um estudo observacional iniciado por pessoas com esclerose lateral amiotrófica que usavam o PatientsLikeMe, plataforma em que os usuários compartilham dados sobre suas enfermidades, sintomas e possíveis estratégias de tratamentos, ajudou a refutar um trabalho de 2008 que afirmava que o carbonato de lítio poderia retardar a progressão da doença.

O avanço dessa categoria de pesquisa, porém, esbarra em alguns limites éticos. Muitos críticos argumentam que ela não segue o padrão mais rigoroso de investigação clínica, destinado a garantir a segurança dos voluntários e a reduzir interferências nos resultados: os ensaios clínicos duplo-cego, randomizados e controlados com placebo. Como consequência, além de não prover evidências científicas robustas, poderia expor os participantes a riscos inesperados.

Muitas vezes são os familiares dos pacientes que mergulham na literatura científica e adquirem uma compreensão mais avançada da doença. Um dos casos mais conhecidos no Brasil é o da advogada Margarete Santos de Brito e de seu marido, o designer Marcos Lins Langenbach. Ainda pequena, a filha do casal, Sofia, foi diagnosticada com síndrome de Rett, doença neurológica rara que causa convulsões frequentes. Em 2013, após várias tentativas frustradas de tratamento e cirurgias, o casal descobriu um caso nos Estados Unidos de uma criança com a mesma doença que se tratava com extrato de cannabis.

Decidiram tentar a mesma terapia e importaram o produto, ilegalmente. Deu certo. A frequência das convulsões de Sofia diminuiu 60%. A família informou o neurologista que acompanhava a garota sobre o novo recurso e ele também constatou a melhora de sua qualidade de vida, além de não identificar efeitos colaterais. Margarete e Marcos passaram a cultivar a planta em casa e aprenderam a extrair o óleo de cannabis por conta própria. Articularam-se com outras famílias para tentar conseguir o produto de forma lícita. O esforço deu origem à organização Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), que ajuda pacientes brasileiros com doenças raras e neurológicas a terem acesso ao óleo de cannabis.

A Apepi atende hoje mais de 5 mil pessoas. Ela financia estudos e colabora com pesquisadores de mais de 10 instituições, entre elas a Fiocruz, o Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo, em trabalhos relacionados ao uso medicinal da cannabis. “Um dos que fizemos com a Unicamp indicou que os canabinoides podem ser eficazes no tratamento de doenças neurológicas. Outros apresentaram bons resultados envolvendo o uso de canabinoides contra náuseas causadas pela quimioterapia, fibromialgia e distúrbios do sono, além de aumentar o apetite e diminuir a perda de peso em pacientes com HIV”, destaca o farmacêutico João Gabriel da Silva, responsável pela área de pesquisa da Apepi.

Apesar dos benefícios, esse modelo de colaboração enfrenta algumas dificuldades para se consolidar. Nem sempre é fácil e viável incluir os pacientes nas pesquisas, sobretudo porque alguns temas exigem conhecimento e treinamento específicos. “Muitos simplesmente não querem participar”, comenta Egmar Longo, da UFPB.

Ao mesmo tempo, a participação de pacientes em estudos clínicos enfrenta resistência de parte da comunidade médica e acadêmica. O argumento é o de que eles não possuem formação científica ou treinamento em pesquisa para empreender estudos complexos. Um dos fatores que comprometem a utilidade dos comentários de pacientes que avaliam o conteúdo de papers, por exemplo, é a qualidade da própria revisão. Poucos voluntários são capazes de entender e comentar aspectos científicos e técnicos de manuscritos ou propostas de pesquisa. Para Aveling, da Universidade Harvard, tais objeções refletem questões mais profundas, “associadas a um ceticismo sobre o valor da experiência dos pacientes”.

Mas ela reconhece que a dinâmica pode não ser fácil. “Reunir pessoas com diferentes experiências, perspectivas, formas de pensar e prioridades em determinados contextos de pesquisa pode criar desafios colaborativos”, alerta. “No entanto”, completa, “a ideia não é substituir o conhecimento médico ou científico, mas criar uma cultura de colaboração que também aceite visões e observações de pacientes e seus familiares”. Para que isso funcione, segundo Aveling, é preciso que médicos e cientistas estejam abertos ao diálogo e dispostos a compartilhar informações e renegociar a distribuição de poder na tomada de decisão nas pesquisas.

Artigos científicos
SUBBIAH, V. The next generation of evidence-based medicineNature Medicine. v. 29, p. 49-58. jan. 2023.
BENSENOR, I. M. et alPatient and public involvement and engagement (PPIE): first steps in the process of the engagement in research projects in BrazilBrazilian Journal of Medical and Biological Research. 2022.
MCCORKELL, Lisa et al. Patient-Led Research Collaborative: Ebedding patients in the long Covid narrativePain Reports. v. 6, n. 1, p. 1-5. 2021.
KEMPNER, J. e BAILEY, J. Collective self-experimentation in patient-led research: How online health communities foster InnovationsSocial Science & Medicine. 2019.
LIP, Gregory Y. H. et al. The National Institute for Health Research (NIHR) global healt research group on atrial fibrillation managementEuropean Heart Journal. v. 40, n. 36, p. 3005-7. 2019.
VAYENA, E. et al. Research led by participants: A new social contract for a new kind of researchJournal of Medical Ethics. v. 42, p. 211-5. 2015.
WICKS, Paul et al. Accelerated clinical discovery using self-reported patient data collected online and a patient-matching algorithmNature Biotechnology. v. 29, n. 5, p. 411-6. 2011.

Republicar