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Resenha

O aristocrata “socialista”

Perfil de Joaquim Nabuco revela dualidade de seu pensamento, entre a monarquia e a modernidade

Angela Alonso. Editora Companhia das Letras, 354 páginas, R$ 39,00

O belo perfil de Joaquim Nabuco (1849-1910), escrito pela socióloga e pesquisadora do Cebrap Angela Alonso (parte da pesquisa teve apoio da FAPESP), inicia-se num registro de precisão machadiana com a morte do protagonista. Ou melhor, com as três mortes de Nabuco: como embaixador, em Washington; como intelectual monarquista, dois meses mais tarde, no Rio de Janeiro; e, por fim, descendo ao túmulo, em Recife, sua cidade natal, como o abolicionista, cujo caixão foi desembarcado no porto por marinheiros descendentes dos escravos que ele ajudara a libertar. “Os funerais de Nabuco narraram sua vida ao contrário, revelando suas múltiplas identidades. Ele gostava de se referir às duas faces de Jano, uma mirando o passado e a outra, o futuro. A imagem lhe serve perfeitamente. Vivendo numa era de mudanças, expressou-a existencialmente, oscilando entre a devoção à sociedade aristocrática e o empenho em reformas modernizadoras, que fatalmente a destruiriam. Foi cortesão frívolo, apegado à boa vida e um corajoso homem público, golpeando autoridades políticas e hierarquias sociais”, escreve a autora, que teve acesso a mais de 700 cartas inéditas, além dos diários de Nabuco, para dissecar seus muitos dilemas.

Boa parte desses, aliás, vinha de sua geração, batizada de geração 1870, grupo de intelectuais viajados que defendia reformas políticas, econômicas e sociais capazes de colocar o Brasil em pé de igualdade com o que se passava no resto do globo. Filho de um senador com idéias da necessidade de um abolicionismo gradual para o Brasil (sobre o pai, escreveria Um estadista do Império, redigido durante o ostracismo a que foi relegado após a República, um painel sensacional do Segundo Império), foi eleito para o Parlamento, em 1878, com o slogan “a grande questão para a democracia não é a monarquia, é a escravidão”. Conservador moderado, acreditava que o regime de Pedro II precisava passar por reformas estruturais para poder sobreviver, bem ao espírito da citação de O leopardo, de Lampedusa, outro aristocrata rebelde como ele: “As coisas precisam mudar para permanecerem as mesmas”. Ao contrário da maioria, que punha pouca fé na capacidade monárquica de se modernizar, Nabuco preconizava que a única chance que restava ao regime decadente era justamente mexer em um de seus pilares fundamentais, a escravidão. Preocupava-se também com o futuro dos escravos e de sua inserção na sociedade, um erro cujas conseqüências o Brasil amarga até hoje. Mas Angela deixa claro que não foi pioneiro na questão abolicionista de solução gradual e tampouco o fez movido por altos ideais. Havia, sim, um quê oportunista nessa sua luta, dado que a agenda política da época se dividia entre abolicionismo e República, movimento que ele rejeitava. Partiu então para a batalha contra o cativeiro, que lhe rendeu frutos políticos. Só não contava que ao tirar esse pilar, central, todo o edifício monarquista iria desabar.

Mas não se pode reduzir seu papel à mera aferição de vantagens. Sua opção rendeu-lhe benesses futuras, mas dissabores contemporâneos, transformando-o no homem “mais amado e odiado do Brasil” ou, nas palavras de Gilberto Freyre, “a classe senhorial levara três séculos se apurando para produzir tão esplêndida figura de desertor”. Chegou mesmo a procurar, em fevereiro de 1888, o papa Leão XIII para solicitar-lhe uma encíclica que condenasse a escravidão, sendo, porém, passado para trás pelos eventos no Brasil. Quando o documento ficou pronto, a escravidão deixara de existir em maio. Do que não se pode acusá-lo é do pioneirismo em investir na relação com os EUA em detrimento da Europa. Após fazer as pazes com o novo regime republicano, nomeado embaixador em Washington, foi, ao lado de Rio Branco, o grande defensor da intensificação das relações entre Brasil e América do Norte, em vez da manutenção da velha opção pela diplomacia britânica, como fez, para sua infelicidade, a Argentina. Só acreditou demais no irmão do Norte, a quem via como imperialistas, mas capazes de proteger o Brasil do imperialismo decadente europeu.

Referência posterior de figuras como Freyre, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, entre outros, Nabuco foi epígono de uma geração da elite brasileira que pensava sobre como fazer do país um lugar melhor. O estudo de Angela revela isso de forma saborosa mas, infelizmente, nos deixa com a sensação nostálgica de que a riqueza do passado refletia idéias, e não acessórios de luxo.

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