Olhando de longe, pouca coisa aproxima o antigo atleta grego do atual competidor dos Jogos Olímpicos. Os gregos disputavam nus; os esportistas contemporâneos, com uniformes feitos de tecido inteligente, que compensa a temperatura do corpo. No lugar dos pés descalços, hoje estão sapatilhas desenhadas com auxílio do computador. Equipamentos toscos como o velho dardo de madeira deram lugar a materiais como a fibra de carbono, muito mais leve e resistente. Mas, olhando de perto, bem de perto, o atleta grego e o esportista do século 21 têm um ponto fundamental em comum: ambos querem vencer. É justamente essa vontade tão humana de bater o rival que explica o uso intensivo de tecnologia no esporte.
Além disso, há pouca coisa que possa ser considerada mais humana do que a tecnologia, prova definitiva da acumulação cultural característica da humanidade. Na tentativa de ampliar cada vez mais seus limites, o homem lançou mão dos recursos técnicos de que dispunha para melhorar sua performance. “O desenvolvimento tecnológico sempre foi um aliado importante na quebra de recordes”, afirma Turíbio Leite de Barros Neto, especialista em fisiologia do exercício da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Não se pode separar a inovação tecnológica das conquistas dos esportes de elite”, acredita o especialista em bioética Andy Miah, da Universidade de Paisley, Escócia. Na verdade, os resultados da tecnologia foram tão bons que o mundo esportivo se viu obrigado a limitar seu uso, temendo desumanizar as competições. Vira e mexe as autoridades esportivas alteram regras para manter o equilíbrio da disputa.
No hemisfério Norte, é bem conhecido o exemplo do clap skate (algo como patins-palmas, numa tradução livre), um clássico na discussão da relação entre tecnologia e esporte. A patinação de velocidade no gelo praticamente não sofreu alterações durante séculos. Há bons indícios de que Leonardo da Vinci, no século 16, chegou a se debruçar sobre o assunto, mas nada conseguiu imaginar de muito diferente dos patins feitos com uma lâmina fixa, historicamente usados no dia-a-dia e nas competições. No início da década de 1980, entretanto, pesquisadores holandeses da Universidade Vrije de Amsterdã tiverem a idéia de liberar a parte da lâmina que se ligava ao calcanhar, colocando uma dobradiça na parte frontal dos patins. Assim, a lâmina ficaria mais tempo em contato com o gelo, aumentando o impulso que o corredor poderia dar em cada passada. A revolução foi tamanha que os competidores de ponta se recusaram a experimentar a novidade holandesa por quase uma década. A desconfiança também se devia à pouca confiabilidade dos novos patins, que costumavam se partir com facilidade. Só na temporada 1994/1995 uma dezena de atletas juniores holandeses concorreu com o clap skate. Sucesso: seu desempenho melhorou em média 6,2% em comparação com a temporada anterior e três usuários da novidade passaram ao primeiro posto do ranking de sua faixa etária, vindos da 8ª, 11ª e 36ª colocações. A consagração da invenção entre os patinadores de elite veio na Olimpíada de Inverno de Nagano (1998). Nos 500 metros, houve quatro quebras sucessivas de recordes. Nos 5.000 metros, o recorde caiu três vezes em menos de meia hora. Astros da época, como o alemão Gunda Neiman, pediram que o clap skate fosse declarado ilegal, mas a Federação Internacional de Patinação o liberou para todas as categorias, aplaudindo a inovação. O nome clap skate, por sinal, vem do barulho semelhante a uma palma que a lâmina faz quando volta à posição em que se aproxima do calcanhar. A invenção mudou a técnica e o som do esporte.
No tênis, polêmica semelhante, mas com final diverso, envolveu uma inovação com as raquetes. Em 1977 começou a ser usado no circuito profissional um modelo que, no centro da área de rebatida, usava duplas de cordas cobertas com um plástico – cuja aparência gerou o apelido de “encordoamento espaguete”. A novidade fazia com que, em cada golpe, o contato com a bola fosse prolongado, aumentando o efeito de rotação (spin) com que ela era devolvida ao adversário. Funcionou tão bem que, no Torneio Aberto dos Estados Unidos daquele ano, Michael Fishbach (200º do ranking) bateu com ela Stan Smith (16º); em uma disputa em Paris, o quase desconhecido francês Georges Goven venceu o romeno Ilie Nastase, líder do campeonato; Nastase rapidamente se adaptou ao novo modelo de raquete e, com ele, quebrou uma invencibilidade de 50 jogos do argentino Guillermo Vilas. Logo depois disso, a Federação Internacional de Tênis baniu o modelo “espaguete”.
Homem x tecnologia
Há no esporte, portanto, uma tensão permanente entre desempenho estritamente humano e inovação tecnológica. Para se posicionar no assunto, o engenheiro Steve Haake, do Grupo de Pesquisa em Engenharia Esportiva da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, analisou a evolução da tecnologia em algumas modalidades esportivas olímpicas, como o salto com vara e o arremesso de dardo. Sua conclusão: há relativo equilíbrio das autoridades desportivas ao lidar com a disputa do homem com a tecnologia.
No caso do salto com vara, a técnica mudou bastante nos últimos cem anos. Antes os atletas tentavam superar a barra com os pés virados para baixo; hoje fazem uma manobra complexa, em que arremessam o próprio corpo usando o impulso da vara. Isso é resultado direto da tecnologia empregada no equipamento. As regras da modalidade, fixadas pela Federação Atlética Amadora Internacional, são bastante liberais. Não há restrição sobre o material da vara, por exemplo. Inicialmente, ela era feita de madeira maciça, mas já no começo do século 20 passou a ser de bambu flexível – bem mais leve, o que permitia aos atletas correr melhor para ganhar impulso.
As marcas subiram seguidamente durante a primeira metade do século, mas começaram a se estabilizar nos anos 1950. Entra em cena, então, a vara de fibra de vidro. Nesse tipo de salto, usa-se a energia cinética do atleta correndo para armazenar energia na vara, por meio da deformação elástica. Essa energia depois é devolvida ao atleta e o impulsiona para cima. A vantagem do novo material era clara: a vara de bambu podia armazenar 100 joules de energia, enquanto a de fibra de vidro 2.500 joules. Na década de 1990, a introdução de fibra de carbono representou novo degrau de evolução, fazendo a vara ainda mais forte e mais leve. Houve ainda um ganho adicional: em 1996, o pesquisador Stuart Burgess, então no Departamento de Engenharia da Universidade de Cambridge, mostrou que o estresse sofrido pela vara se concentrava em seu meio e que suas pontas poderiam ser mais finas, sem que isso comprometesse seu desempenho. A prática consagrou seu achado, que gerou uma vara ainda mais leve. Na avaliação de Haake, tudo isso fez do salto com vara uma modalidade em que foi claro o ganho que a tecnologia trouxe para os atletas, hoje capazes de superar facilmente a marca dos 6 metros de altura.
Centro de gravidade
Experiência diferente viveu o arremesso de dardo. Com a evolução dos materiais e do desenho, as autoridades se viram obrigadas a alterar as regras. Nessa modalidade há várias restrições: o comprimento do dardo deve estar entre 2,6 e 2,7 metros e o peso mínimo não pode ser inferior a 800 gramas. Há regras também para seu desenho geométrico e onde deve estar seu centro de gravidade. A razão para isso é justamente a evolução das marcas. Em 1908, o vencedor lançou o dardo a pouco mais de 50 metros; em 1976, essa distância foi aumentada para quase 95 metros; e, em 1984, o atleta Uwe Hohn, da então Alemanha Oriental, conseguiu um lançamento de 104,8 metros em um evento não-olímpico. A essa altura havia risco de lançar dardos fora do estádio ou ferir alguém nas arquibancadas. A solução foi tão simples quanto científica: o ponto que representa o centro de gravidade foi alterado em apenas 4 centímetros, mudando a trajetória dos dardos e encurtando seus vôos em cerca de 15 metros.
“Há um equilíbrio entre tecnologia e tradição”, conclui Haake, com base nos casos que analisou. Ele acredita que a introdução de novas tecnologias nos equipamentos não represente vantagem indevida para ninguém, desde que ela seja compartilhada pelos atletas. “Os problemas aparecem quando a tecnologia está disponível exclusivamente para um grupo”, afirma. Ocorre que a exclusividade, que dá vantagem a um atleta em relação aos demais, é justamente o motor da introdução de novos equipamentos no mundo esportivo. A idéia é justamente dar um “algo mais” a um competidor, em um ambiente em que todos têm desempenho muito próximo. “Uma vantagem tecnológica de um segundo pode ser decisiva”, afirma Edward Tenner, pesquisador da Universidade da Pensilvânia e autor de When things bite back (Quando as coisas contra-atacam, numa tradução livre), um best-seller sobre o papel das inovações tecnológicas na vida moderna. Essa desigualdade hoje é potencializada por uma das lógicas que guiam a introdução de inovações no mundo do esporte – o interesse comercial. Para se tornarem bons garotos-propaganda de artigos novidadeiros, atletas de ponta são escolhidos pelas empresas de material esportivo para desenvolver e utilizar os equipamentos de última geração.
Bom exemplo desse espírito são as roupas especialmente criadas para a natação, cuja idéia básica é diminuir a resistência (atrito) da água ao avanço do nadador. Líder mundial nesse tipo de vestimenta, a Speedo já disponibilizava uma versão rudimentar dos trajes de competição na Olimpíada de Barcelona (1992), chamada S-2000. Mas foi nos jogos de Sydney (2000) que a terceira geração da roupa, batizada de FastSkin (pele rápida), deu o que falar. A novidade foi usada por um grupo seleto de nadadores e, segundo a empresa, estava no corpo de 80% dos ganhadores de medalha. Agora que o antigo modelo está mais popularizado, a Speedo desenvolveu uma nova geração da roupa, a FastSkin FSII. A fabricante sustenta que a versão do traje para Atenas é 4% mais eficiente em reduzir o atrito que a anterior. O princípio da nova geração é o mesmo: fazer com que o fluxo de água em torno da roupa trabalhe a favor do movimento. As roupas contam com a sutileza de usar desenhos e tecidos diferentes conforme a região do corpo, tentando imitar a variedade de texturas presentes na pele de um grande nadador, o tubarão. A Speedo patrocina a equipe norte-americana e espera que 90% de seus 48 nadadores usem a sua pele rápida.
Há pesos-pesados das piscinas, como o australiano Ian Thorpe, que ganhou três ouros em Sydney, que preferem a pele de tubarão confeccionada por empresas concorrentes, como o JetConcept, da Adidas. A Tyr, principal concorrente da Speedo nos Estados Unidos, licenciou tecnologia desenvolvida pela Universidade de Buffalo e colocou no mercado seu Acqua Shift, com princípio semelhante ao da FastSkin. Também Arena, Diana e Nike têm seus investimentos na área, numa disputa que tem como objetivo influenciar o consumidor comum. Segundo a associação norte-americana de fabricantes de material esportivo, o mercado potencial para trajes de natação é estimado em US$ 1,2 bilhão anual só nos Estados Unidos.
Indústria aeroespacial
A disputa pelas estrelas do esporte – e mais tarde pelo consumidor – também ocorre em outras modalidades. A bicicleta mais cobiçada do momento pertence a ninguém menos do que o norte-americano Lance Armstrong, cinco vezes vencedor da Volta da França, uma das mais prestigiosas provas de rua. A fabricante Trek desenvolveu para ele um modelo que usa no quadro uma fibra de carbono especial, chamada OCLV (sigla de Optmized Compactation, Low Void), que é mais forte e mais leve que as demais. Jim Colegrove, que desenvolveu o material, sustenta que sua compactação é maior do que a de fibras da indústria aeroespacial, na qual ele trabalhava. E ainda teria a vantagem de ser direcionável, isto é, no interior do material é possível dispor as fibras de forma a absorver as vibrações e transformá-las em energia de movimento.
No caso de tênis e sapatilhas esportivas, há um complicador para a difusão de novas tecnologias para o grande público. Quanto mais a pesquisa avança, mais claro fica que a forma de correr é algo tão pessoal quanto um registro de voz. Cada um tem sua passada própria, com pontos e momentos de pressão totalmente diferentes uns dos outros. Assim, enquanto a Speedo analisou o físico de 450 nadadores para chegar ao modelo ideal para sua pele rápida, os fabricantes de calçados esportivos apostam em desenvolver modelos exclusivos para atletas de ponta. Para a elite, as empresas trabalham como uma butique, com produtos sob medida. Para o grande público, uma opção talvez sejam os tênis inteligentes, como o protótipo Adidas 1, apresentado neste ano com a promessa de “ler” as condições do exercício e, com ajuda de um processador de 20 megahertz movido a bateria, adaptar o solado ao usuário e à atividade praticada. É usar para crer (ou não).
Casos em que a tecnologia esportiva é barata e está ao alcance de todos são mais raros. Aconteceu com os tecidos esportivos. Após muitas pesquisas, os fabricantes chegaram a materiais capazes de absorver o suor da pele, expô-lo à superfície externa e assim contribuir para manter constante a temperatura corporal durante o exercício prolongado. O benefício é fundamental para a melhora do desempenho, pois com os novos uniformes o organismo “economiza” energia e água. Esse avanço está ao alcance de praticamente todos os atletas por algumas dezenas de dólares, o que já não ocorre, por exemplo, com as sapatilhas de US$ 450 fabricadas pela Nike para os corredores dos 100 metros rasos.
Edward Tenner relativiza o poder da tecnologia. “Nunca ouvi falar de um atleta claramente mais fraco vencer um mais forte por conta da tecnologia de seu equipamento”, afirma. Claro, ele admite que haja casos em que o desenho e o engenho do equipamento acabam contando tanto ou mais do que a destreza dos atletas, como acontece nas competições náuticas. Também não esquece o clap skate. “Ele deu uma vantagem crucial a quem o usava e mudou o esporte”, diz Tenner. “Quem se negou a aceitá-lo foi derrotado.” Ele afirma, no entanto, que em quase todos os esportes há limites para a tecnologia dos equipamentos.
A liga norte-americana de beisebol, por exemplo, mantém os tacos de madeira, apesar das dificuldades de ajuste dos jogadores que saem das faculdades e do curso médio, acostumados a bastões de alumínio. Em alguns casos, é verdade, a tecnologia pode significar menos segurança para os atletas. No livro When things bite back, o pesquisador norte-americano descreve como a introdução de luvas para boxeadores levou a uma maior incidência de lesões. As luvas pretendiam tornar o combate mais seguro, protegendo as mãos dos lutadores. No final, o resultado obtido foi o aumento de lesões cerebrais, inclusive mortes, pois se tornou possível socar a cabeça do adversário sem quebrar as próprias mãos.
O especialista chama a atenção para o progresso que representou para o esporte a evolução no recrutamento de atletas, outro item incluído em sua lista de avanços tecnológicos. Há cem anos, afirma Tenner, a maioria dos atletas olímpicos norte-americanos vinha de universidades como Harvard e Yale ou eram membros de clubes de elite. O código de amadores deixava de fora da prática competitiva os filhos da classe operária, que só poderiam desenvolver suas habilidades esportivas se fossem remunerados. Desde a Segunda Guerra Mundial, os programas de recrutamento de atletas se expandiram por todo o mundo, influenciados pelo pioneirismo dos então países comunistas do Leste. “Com tanta gente desde pequena praticando hoje esportes, as diferenças de performance se tornaram insignificantes”, diz Tenner. Seguindo esse mesmo princípio de eqüidade, o ideal é permitir que as inovações nos equipamentos se democratizem. “O esporte e seus praticantes têm a ganhar com isso.”
Não tem sido essa a regra. Larry Katz, do Laboratório de Tecnologia do Esporte da Universidade de Calgary, Canadá, sustenta em seus artigos que muitos esportes se tornam excludentes por conta das inovações introduzidas. “A necessidade constante de desenvolver equipamentos e técnicas de treinamento, que podem suavizar lesões e melhorar a performance, aumenta os custos de preparação dos atletas”, afirma Katz. “Isso exclui da prática ou do pódio aqueles sem acesso a recursos substanciais.”
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