Em 1819, um mineralogista de 58 anos, formado em direito e filosofia na Universidade de Coimbra, integrante da Academia das Ciências de Lisboa e ex-ocupante de diversos cargos no governo português, embarcou em Lisboa com destino ao Brasil. Próximo da aposentadoria, o naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) era um intelectual impregnado com as ideias do Iluminismo, lutara contra as tropas francesas de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e, apesar das responsabilidades no serviço público, jamais tivera atuação política.
Isso mudaria no ano seguinte, com a eclosão da Revolução do Porto, que sepultaria o Antigo Regime para instalar uma monarquia constitucional em Portugal, fundamentada nas ideias liberais com as quais o mineralogista comungava. A revolução determinou a formação de juntas governativas nas províncias e José Bonifácio, recém-chegado a Santos, onde nascera e vivia sua família, foi eleito para a de São Paulo, constituída no início de 1821. Um de seus irmãos, Antônio Carlos (1773-1845), integraria as Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, conhecidas como Cortes de Lisboa, Assembleia Constituinte do novo regime que se reuniria a partir de janeiro de 1821, no Palácio das Necessidades, na capital portuguesa.
Dois anos mais tarde, o estudioso que assinava cartas como “bom português e bom vassalo” do rei de Portugal, ou ainda “português castiço”, se tornaria um dos principais artífices da Independência do Brasil. No novo país, seria deputado constituinte e ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros. Em agosto de 1822, instigou dom Pedro I (1798-1834), príncipe regente e herdeiro do trono português, a se decidir pela separação dos territórios americanos, afirmando que “de Portugal não [tinham] a esperar senão escravidão e horrores”. Nesse período, delineou um projeto nacional para o novo país, que incluía a gradual abolição do regime escravista, a reforma do sistema fundiário e um programa de miscigenação.
Suas ideias não seriam postas em prática. Em 1823, o então ministro entraria em conflito com as lideranças políticas da elite brasileira, o que levaria à sua demissão em julho. Com o fechamento da Assembleia Constituinte, perdeu o mandato de deputado e se viu exilado pelo mesmo imperador cujo poder ajudara a consolidar. O exílio duraria até 1829, quando Bonifácio retorna ao Brasil e reata com o soberano. Ao abdicar e retornar a Portugal em 1831, dom Pedro o escolheria para tutor de seu filho, o futuro imperador dom Pedro II (1825-1891).
Nas últimas duas décadas, o papel de José Bonifácio de Andrada e Silva na separação da América portuguesa e sua atuação como estudioso da natureza passou a receber novas interpretações, impulsionadas pela descoberta de manuscritos. Segundo o historiador Alex Gonçalves Varela, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autor de Juro-lhe pela honra de bom vassalo e bom português (Annablume, 2006), sabe-se hoje que o acervo do mineralogista está espalhado por diversos arquivos brasileiros. Varela relata ter encontrado material em lugares como o Arquivo Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), o Museu Nacional e a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e o Museu Paulista (MP), em São Paulo.
A historiadora Miriam Dolhnikoff, da Universidade de São Paulo (USP) e autora da biografia José Bonifácio: O patriarca vencido (Companhia das Letras, 2012), acrescenta que a descoberta de documentos inéditos no IHGB e no MP foi fundamental para entender a inserção das propostas de abolição da escravatura em um amplo projeto nacional. Em 2006, os textos digitalizados de Bonifácio foram reunidos no site José Bonifácio – Obra Completa, organizado pelo escritor Jorge Caldeira (ver Pesquisa FAPESP nº 128).
De acordo com a historiadora Ana Rosa Cloclet da Silva, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e autora de Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio (Centro de Memória/Unicamp, 1999), a imagem do mineralogista é disputada desde os primeiros anos do Brasil independente. Se, por um lado, ainda é chamado de “patriarca da Independência”, também é, por outro, visto como um déspota que censurou e perseguiu adversários políticos enquanto ocupou o cargo de ministro. Por ter proposto a abolição gradual da escravidão e a reforma da estrutura fundiária, é considerado um homem à frente de seu tempo, mas por ter rejeitado princípios como o federalismo e as assembleias constituintes é tido como retrógrado.
“As visões personalistas e valorativas perdem de vista a atuação de alguém que vivia as transformações aceleradas do seu tempo. Foi um período de grandes tensões políticas, que vinham desde o século anterior e se aceleraram depois da Revolução Francesa [1789]”, afirma a historiadora. “É nesse contexto que ele redige seu projeto nacional, na dupla condição de herdeiro da tradição ilustrada luso-brasileira e construtor do Estado brasileiro.”
Dolhnikoff também sustenta que as escolhas e atitudes do conselheiro e ministro de dom Pedro I devem ser entendidas a partir dos conflitos de sua época e dos raciocínios políticos que implicavam. Um exemplo é a postura considerada despótica de José Bonifácio. Ele pressionou adversários valendo-se, sobretudo, da lei de imprensa, que continha um grande rol de restrições à liberdade de expressão. A atitude está ligada à sua formação intelectual, argumenta a historiadora.
“Ele comungava com uma ideia corrente no tempo do Iluminismo, de que os ilustrados, os letrados, sabiam o que seria melhor para o país. Defendia um regime liberal, o que implicava algum grau de participação da população, mas acreditava, ao mesmo tempo, que a sociedade brasileira seria construída de cima para baixo”, diz. “Na sua concepção, era preciso ter um Executivo forte, que fosse capaz de implementar as reformas que tinha em mente e eram condição para que o Brasil se tornasse uma nação moderna, viável, com ordem interna.”
Bonifácio é uma figura quase esquecida na historiografia portuguesa
Embora tenha passado quase toda a vida adulta em Portugal, atuando nas ciências e na administração do Estado, José Bonifácio é “uma figura quase esquecida” na historiografia portuguesa, conforme a historiadora Isabel Corrêa da Silva, da Universidade de Lisboa. Isso ocorre a despeito da importância de alguns dos cargos que ocupou, como intendente-geral das Minas e Metais do reino, diretor da Casa da Moeda de Lisboa, primeiro professor da cátedra de metalurgia da Universidade de Coimbra. Corrêa da Silva, que prepara uma biografia do mineralogista, afirma que só agora seus escritos começam a ser reconhecidos como precursores pelos historiadores da ciência (ver Pesquisa FAPESP nº 298). “Já foi, aliás, identificado como um precursor, ao nível europeu, de uma consciência de articulação entre natureza e exploração dos recursos naturais, o que hoje chamaríamos de ecologia.”
Por sua formação na Universidade de Coimbra e sua atuação em cargos administrativos do governo de Portugal, José Bonifácio constitui um ponto de ligação entre a Independência brasileira e o reformismo ilustrado, versão portuguesa do Iluminismo. O ensino que recebeu em Coimbra havia sido reformado durante o período em que Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal (1699-1782), liderou o país: no lugar da tradição escolástica conduzida por jesuítas, a instituição incorporou a mentalidade científica que se desenvolvia na Europa do Iluminismo.
“Bonifácio estudou em uma universidade já reformada e é fruto dessa reforma”, afirma Corrêa da Silva. “De Pombal, herdou uma concepção de Estado centralizado e de fortalecimento do poder real, por acreditar que só o Estado tinha estrutura e capacidade para implementar as mudanças necessárias à modernização da sociedade. Esse foi o espírito com que trabalhou na administração pública portuguesa e com o qual lutou pela manutenção do reino unido e depois pelo enquadramento político e legal do novo Brasil”, completa.
Entre 1790 e 1800, o jovem Bonifácio realizou uma viagem “de aperfeiçoamento técnico” pela Europa, financiada pelo governo português. Esteve na França, na Alemanha e na Escandinávia. Acompanhou cursos de especialização e chegou a descrever quatro minerais, dos quais o mais conhecido é a petalita, fundamental para a descoberta, em 1817, de um novo elemento químico, o lítio (ver Pesquisa FAPESP nº 277). Na Alemanha, estudou com Abraham Gottlob Werner (1749-1817), que, de acordo com Varela, se tornou sua grande referência em mineralogia.
Nesse período, manifestou horror à instabilidade que se seguiu à Revolução Francesa, segundo o economista Ivan Colangelo Salomão, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A má impressão do episódio, ao qual se referiu como “inaudita revolução”, ajudou a constituir seu próprio pensamento político, acrescenta o economista. “A França moldou decisivamente uma de suas facetas mais conservadoras. Ele era intolerante à desordem e passou a descrer do funcionamento das assembleias deliberativas. Isso influenciou seu posicionamento durante os debates sobre a primeira Constituição do Brasil”, afirma.
A carreira de Bonifácio como mineralogista transcorreu sob o signo do projeto reformista português, que ambicionava modernizar o país. Os cargos que o estudioso ocupou em Portugal também tinham entre suas responsabilidades promover o desenvolvimento do país. “Bonifácio era um homem pragmático. Suas preocupações científicas eram indissociáveis de preocupações com o desenvolvimento econômico e a prosperidade da monarquia. Por isso, depois de regressar a Portugal [da viagem pela Europa], há uma espécie de anticlímax de uma década de frustrações, quando tenta aplicar, no terreno e na modernização do país, seus conhecimentos”, diz Corrêa da Silva. Ao retornar ao Brasil, em 1819, ele se sentia frustrado com o desenvolvimento português, acrescenta a historiadora.
Um elemento fundamental para sua atuação como homem público foi a relação com dom Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), conde de Linhares. Dom Rodrigo, que seria ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra de dom João VI (1767-1826) e viria com a Corte para o Rio de Janeiro em 1808, concebia um império português transatlântico, do qual o Brasil, terra maior e mais rica de seu território, seria parte integral, não mera colônia. “Bonifácio se tornou homem de confiança de dom Rodrigo, que o nomeou para seus diversos cargos. E, assim, a faceta de naturalista se ligou à de homem público”, diz Varela.
Do vínculo com o Iluminismo também decorrem as ideias econômicas de José Bonifácio, afirma Salomão. Como integrante da Academia das Ciências, participou da redação das Memórias Econômicas da Academia, coleção de ensaios sobre a economia do Império português publicada em cinco volumes entre 1789 e 1815. Textos como Memória sobre a pesca das baleias, de 1790, são estruturados pelo desejo de aumentar a rentabilidade da prática. “O Iluminismo é visível pelo apelo recorrente à razão, propondo observar a natureza para extrair expedientes práticos que contribuíssem com o bem-estar social e ambiental”, segundo o pesquisador da UFPR. “Além disso, há uma influência do liberalismo inglês na defesa da liberdade econômica, em detrimento da tutela governamental e seus monopólios.”
Salomão assinala que as ideias econômicas de José Bonifácio sofreram uma guinada quando ele deixou a mineralogia e se tornou funcionário público, em Portugal, e depois político, no Brasil. A partir do momento em que se viu encarregado de delinear os elementos fundadores de uma nação, “Bonifácio adotou uma postura claramente nacionalista, não só no discurso, mas também nas medidas concretas”, informa o economista.
Em 1823, foi contrário à tomada de empréstimos ingleses, orientando o ministro da Fazenda, seu irmão Martim Francisco (1775-1844), a emitir moeda sem lastro e títulos a serem pagos com as receitas da alfândega do Rio de Janeiro. “Bonifácio se lembrava da subordinação comercial e financeira de Lisboa em relação a Londres, principalmente a partir da assinatura do tratado de Methuen [em 1703], que favoreceu a indústria têxtil inglesa em detrimento da manufatura portuguesa”, observa Salomão, acrescentando que o ministro defendia a implantação de manufaturas também no Brasil.
Para o economista, muitas coisas podem explicar essa mudança de posicionamento. “Uma provável causa é que seu liberalismo era inadequado a uma realidade conservadora, no sentido de que a mentalidade escravocrata estava impregnada no Brasil havia três séculos”, sugere. “Ele buscava adaptar seus preceitos liberais às circunstâncias locais. Sua defesa do livre comércio era voltada para o mercado interno. Como o país era continental, mas as regiões pouco conectadas, caberia ao comércio criar uma unidade nacional. Esse era um interesse do Estado, o que revela um projeto econômico e político orgânico.”
Planos como o fim do tráfico escravista e, com o tempo, da escravidão propriamente dita também tinham uma finalidade econômica, já que Bonifácio considerava baixa sua produtividade. O mesmo vale para a reforma das sesmarias, ou seja, do regime fundiário. Bonifácio defendia que o governo comprasse terras ociosas e as distribuísse entre indígenas e negros, que produziriam mais do que os latifúndios cultivados por mão de obra cativa.
Até poucos meses antes da ruptura política entre Portugal e a ex-colônia, José Bonifácio subscrevia integralmente o projeto do conde de Linhares. Para Cloclet, tanto os “brasileiros” quanto os “reinóis” se viam como súditos do mesmo monarca e membros de uma “grande família lusitana”. Contudo, a transferência da Corte para o Rio de Janeiro inverteu os papéis conferidos a cada uma das partes no império.
“A elite luso-brasileira não pensava em independência. Viam-se como súditos do Império português e como europeus, em um território ocupado por uma população bárbara”, afirma Dolhnikoff. “As particularidades do Brasil eram a vinda da Corte em 1808 e a elevação a Reino Unido a Portugal e Algarves. Todas as instituições de governo tinham sede no Brasil e era isso que se queria manter, com um representante da monarquia no Rio, que na época era dom Pedro I.”
No entanto, as notícias de Lisboa em 1822 indicavam que os constituintes de Portugal pretendiam uma concentração das instituições do Estado no lado europeu. “A partir daquele momento, a elite brasileira, incluindo Bonifácio, passou a falar de um projeto para recolonizar o Brasil e a representar Portugal como explorador”, diz Dolhnikoff.
Segundo Cloclet, os modos diferentes como os súditos reinóis e americanos vivenciaram aquele momento levaram a expectativas de futuro, no limite, irreconciliáveis. Nas cidades do Brasil, o sentimento de diferenciação, em que o português passava a ser visto como estrangeiro, refletia antes o antilusitanismo, que irrompe fortemente no Primeiro Reinado, do que uma identidade nacional. “Criar essa nacionalidade era um dos desafios de pessoas como Bonifácio. Ele passa a pensar sobre a raça que deveria surgir aqui e desenvolve ideias sobre miscigenação, traduzidas, na sua metáfora de mineralogista, como a ‘amalgamação muito difícil de tantos metais heterogêneos’”, resume a pesquisadora da PUC-Campinas.
Após a demissão dos irmãos Andrada e seu posterior exílio, o conteúdo social e econômico do projeto nacional de Bonifácio foi abandonado. A Abolição da escravidão e a reforma da distribuição de terras eram improváveis naquele momento, em um país de elites compostas por latifundiários e comerciantes que operavam o tráfico escravista no Atlântico Sul. As iniciativas de miscigenação e integração da população indígena nem chegaram a ser discutidas antes da dissolução da Assembleia Constituinte, em 1823.
Artigos científicos
CHAGAS, C. S. e CORRÊA, T. H. B. As contribuições científicas de José Bonifácio e a descoberta do lítio: Um caminhar pela história da ciência. Revista de Educação, Ciências e Matemática. v. 7, n. 1. 2017.
SALOMÃO, I. C. Liberalismo, industrialização e desenvolvimento: As ideias econômicas de José Bonifácio de Andrada e Silva. Almanack. n. 26. 2020.