Governo federal assinou 57 atos desmobilizando estruturas de proteção ambiental no Brasil, a maioria após o início da pandemia
Pilar Olivares / Reuters / Fotoarena
Desde janeiro de 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, até setembro de 2020, foram assinados 57 atos enfraquecendo as estruturas de proteção do meio ambiente no Brasil, seja por meio da restrição da atuação de órgãos fiscalizadores, seja permitindo o desmatamento em áreas de proteção permanente (APP), consideradas essenciais para a preservação de rios, solo e biodiversidade. A aprovação desses atos – resoluções, portarias, decretos e instruções normativas – intensificou-se após o início da pandemia do novo coronavírus. Entre março e setembro de 2020, foram 23 atos desregulamentando ou flexibilizando a legislação ambiental brasileira. Essa é a conclusão de um levantamento publicado em março por pesquisadores brasileiros em instituições de ensino e pesquisa do Brasil, dos Estados Unidos e do Reino Unido na revista Biological Conservation. Eles se debruçaram sobre as edições do Diário Oficial da União do período e dados do monitor Política por Inteiro, e analisaram os chamados atos infralegais – decisões do Executivo que não precisam passar pela análise ou receber o aval do Congresso Nacional para entrar em vigor. O objetivo era mapear os recuos promovidos pelo governo na legislação ambiental antes e depois do início da pandemia.
As medidas atingem pontos diversos do arcabouço legal de proteção do ambiente e, segundo a bióloga brasileira Erika Berenguer, do Centro para o Meio Ambiente da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, “parecem ter sido editadas a conta-gotas, para que passassem desapercebidas do público e da imprensa em meio ao caos da pandemia”. A pesquisadora, uma das autoras do estudo, explica que os atos abarcam praticamente todos os biomas brasileiros, bem como os principais órgãos e estruturas relacionados à sua proteção. Um deles, uma portaria publicada em 25 de junho de 2020, determinou que nem todas as áreas de APP precisariam ser restauradas, mesmo que tivessem sido ilegalmente desmatadas. Em outro caso, uma instrução normativa de 25 de março de 2020 ampliou o prazo para que empresas – incluindo madeireiras – apresentem seus relatórios anuais sobre poluição e impactos de suas atividades. Há também um ato de 22 de julho reclassificando 47 diferentes pesticidas como de categoria menos danosa, “sem respaldo em literatura científica”, segundo a pesquisadora.
Os autores identificaram ainda um aumento do número de exonerações e mudanças em cargos de coordenação em órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia que cuida das unidades de conservação e de centros de pesquisas no Brasil. Somente em maio de 2020, três meses após o início da pandemia, o governo exonerou 38 servidores em funções de chefia ou subchefia de unidades de conservação espalhadas pelo país, substituindo-os por indivíduos que, segundo os pesquisadores, teriam pouco ou nenhum conhecimento técnico e científico na área. “Em alguns casos, o MMA [Ministério do Meio Ambiente] sequer designou um novo nome para assumir as vagas abertas”, destaca o biólogo Pablo Rodrigues Gonçalves, do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nupem-UFRJ).
A ideia do governo era centralizar a administração dessas unidades nos chamados núcleos de gestão integrada (NGI). Em maio, em meio à escalada de novos casos de Covid-19, o governo editou uma série de portarias criando vários NGI. A proposta era que eles unissem as equipes de diferentes unidades em uma só, sob o mesmo chefe. O argumento era o de que faltavam recursos para manter o pessoal e a infraestrutura dessas áreas de conservação. “O problema é que, com isso, muitos NGI se tornariam responsáveis por áreas de reservas biológicas com características e finalidades completamente distintas e distantes umas das outras”, comenta Gonçalves, que, com outros pesquisadores, denunciou essa ação em junho em carta à revista Science. “Isso implicaria uma redução substancial da capacidade dessas unidades de preservar ecossistemas importantes, como aqueles na região de Mata Atlântica no norte do Rio de Janeiro”, diz o biólogo, que não participou do estudo na Biological Conservation. Para tentar frear essas mudanças, ele e outros colegas da UFRJ se mobilizaram e acionaram o Ministério Público para revogar as portarias. A estratégia deu certo, pelo menos no caso do Parque Nacional Restinga de Jurubatiba, em Macaé, no litoral fluminense.
Berenguer afirma que o atual governo já investia no enfraquecimento de instituições ligadas às estruturas de proteção do setor antes da pandemia. Exemplo disso é o Decreto nº 9.806, editado em maio de 2019, que reduziu a participação da sociedade civil e de representantes de populações tradicionais e indígenas no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), órgão consultivo do MMA responsável por estabelecer critérios para licenciamento ambiental e normas para o controle e a manutenção da qualidade do meio ambiente. Até então, a sociedade civil contava com 22 assentos no Conama. Com o decreto, esse número caiu para quatro. Também os assentos passaram a ser distribuídos por sorteio entre as entidades interessadas – antes, uma eleição definia esses integrantes –, ao passo que o mandato dos representantes civis, antes de dois anos, passou a ser de um. A medida à época foi questionada por Raquel Dodge, então procuradora-geral da República, que moveu uma ação para derrubar o decreto, ao considerar que o esvaziamento da participação da sociedade civil no Conama violava normas constitucionais. A ação chegou no Supremo Tribunal Federal (STF), que já realizou duas sessões para analisar a inconstitucionalidade do decreto. A mais recente, promovida no dia 10 de março, foi suspensa devido a um pedido de vista do ministro Kássio Nunes Marques – o julgamento computa até agora quatro votos a favor da anulação da medida, nenhum contra.
Segundo os pesquisadores, o enfraquecimento de instituições como Conama, Ibama e ICMBio, seja por meio da reestruturação de seus quadros de chefias, corte de pessoal ou redução de recursos e infraestrutura para operações de fiscalização, também resultou em uma queda substancial no número de multas ambientais, sobretudo na região amazônica. “Em geral, o aumento dos casos de infrações ambientais, como as observadas em 2019 ligadas ao incremento do desmatamento na Amazônia, tende a vir acompanhado de um aumento do contingente de multas aplicadas”, comenta Rita Portela, professora do Instituto de Biologia da UFRJ, uma das autoras do estudo. Mas não foi isso o que aconteceu em 2020. Em agosto, no pico da primeira onda e em meio ao aumento das taxas de desmatamento na Amazônia, o número de multas na região diminuiu em 72% em comparação com março daquele ano (ver gráfico. “No Brasil como um todo, a retração no número de multas ambientais foi de 74%”, destaca Portela. Entre janeiro e julho de 2020 a queda foi de 40%, atingindo o menor patamar em uma década. No mesmo período, o desmatamento na Amazônia chegou a 4.739 quilômetros quadrados, segundo dados do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A reportagem tentou contato com o MMA para que comentasse os resultados do estudo, mas não obteve retorno da pasta.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, não se manifestou sobre o estudo da Biological Conservation. Mas prestou esclarecimentos no início de maio, durante reunião da Comissão do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, em que respondeu algumas das questões que foram apontadas pelos pesquisadores como ações que enfraquecem a defesa do meio ambiente. Na ocasião, o ministro atribuiu a diminuição do contingente de multas ambientais à pandemia e à redução do orçamento da pasta nos últimos anos. “Isso se reflete evidentemente na fragilização da capacidade de atuação dos órgãos ambientais, inclusive com a incapacidade de abertura de vagas e reposição de falta de quadros em razão de pessoas que se aposentam, falecem, mudam de profissão e por razões pessoais ou não acabam deixando os órgãos públicos”, afirmou Salles.
O ministro pediu ainda para que os deputados destinem mais dinheiro das emendas parlamentares para recompor o orçamento do ministério – as emendas são uma forma de os congressistas direcionarem recursos para obras em seus redutos eleitorais. “Para o MMA foram 96 emendas [as quais somam R$ 62 milhões], um quinto do que foi para o Ministério do Desenvolvimento Regional, 10% do que foi para a Educação e bem menos do que foi para Defesa”, destacou o ministro. “Muitos dos que acusam o governo de ter fragilizado o orçamento, eles próprios não destinaram emendas para o meio ambiente, mas para outras pastas.”
Ainda é difícil saber os impactos desses atos infralegais nas estratégias e nos esforços de conservação dos ecossistemas brasileiros, sobretudo porque, dado o agravamento da pandemia em 2021, muitos pesquisadores mantêm suspensos os trabalhos em campo. “Alguns atos têm um impacto imediato no ambiente, outros são de longo prazo, mas, com o levantamento que fizemos, é possível ter uma ideia das áreas mais afetadas, o que nos ajudará a planejar futuras pesquisas para estimar os estragos causados”, explica Berenguer. Uma restrição é que o estudo analisa apenas parte do processo de desarticulação dos órgãos de proteção ambiental e redução da fiscalização. Muitos outros atos infralegais foram e continuam sendo editados em 2021.
Exemplo disso é a Instrução Normativa nº 1 de 12 de abril de 2021, que modifica a metodologia de fiscalização e apuração de infrações administrativas ambientais pelos órgãos ambientais federais. Segundo os pesquisadores, a medida dificulta a investigação de irregularidades, pois estabelece prazos muito curtos para análise pelos agentes de controle e exige que seja elaborado um relatório antes de se lavrar o auto de infração, o que inverte a ordem original dos atos. Ainda, centraliza poder nas chamadas “autoridades hierarquicamente superiores”, diminuindo a autonomia dos fiscais. Soma-se a isso a aprovação em 13 de maio na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei nº 3729/04, que flexibiliza normas e dispensa uma série de atividades e empreendimentos do licenciamento ambiental. O projeto ainda será apreciado no Senado.
Na avaliação de Berenguer, é preciso um acompanhamento sistemático das ações do governo nessa seara. “Uma das consequências mais nocivas e imediatas desse processo é a legitimação governamental da degradação ambiental no Brasil. Muitos não temem mais a fiscalização do governo, enquanto outros se sentem estimulados a avançar sobre a floresta diante da certeza da impunidade”, afirma.
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