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Museologia

Lista pioneira busca coibir tráfico ilícito de bens culturais no Brasil

Documento identifica livros, fotografias, objetos arqueológicos e etnográficos do país com risco de pilhagem

Cachimbo em cerâmica do período pré-colonial é exemplo de peça arqueológica com risco de pilhagem

Acervo MAE / USP / Divulgação

A primeira edição de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis (1839-1908), um mapa do Brasil feito pelo cartógrafo e engenheiro italiano Giacomo Gastaldi (1500-1566) e objetos rituais de origem africana fazem parte de uma lista que acaba de ser tornada pública pelo Conselho Internacional de Museus (Icom), com o propósito de identificar o patrimônio cultural brasileiro com risco de ser roubado, saqueado ou comercializado ilegalmente. O documento está sendo distribuído a profissionais que atuam nos campos da arte e patrimônio e a autoridades policiais. O objetivo é facilitar o processo de fiscalização em fronteiras e aeroportos e funcionar como uma espécie de alerta para que museus, casas de leilões, comerciantes e colecionadores não adquiriram objetos sem pesquisar previamente sua proveniência e documentação legal.

FBN / DivulgaçãoPrimeira edição de O Tico-Tico, publicação infantil que circulou de 1905 a 1977 no Brasil, também figura na lista do IcomFBN / Divulgação

O Icom publica as chamadas listas vermelhas desde o ano 2000, mapeando categorias de bens culturais ameaçados em todo o mundo. No total, foram elaboradas 20 listas, cobrindo 57 países como China, Egito, Síria, Afeganistão, Iraque e Ucrânia. Essa é a primeira vez que a instituição edita um documento específico sobre o patrimônio brasileiro. No país, o desenvolvimento do trabalho começou em 2021 e teve a participação de museólogos, etnógrafos, arqueólogos, entre outros pesquisadores. Foram estabelecidos cinco grupos de objetos em risco, presentes em acervos de instituições como Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), Museu de Ciências da Terra e Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ).

“O Brasil tem uma legislação robusta para proteger seu patrimônio e combater o tráfico ilícito de bens culturais”, afirma a historiadora Roberta Saraiva Coutinho, diretora do Icom Brasil. O Decreto-lei n° 25, de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, e a portaria nº 80 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), criada em 2017 para verificar infrações administrativas na venda de antiguidades e obras de arte, são alguns exemplos. Ao observar que o valor das peças pode atingir milhões de dólares, Coutinho destaca que o fato de o país ter dimensões continentais e “fronteiras porosas” torna um desafio a fiscalização de bens culturais que circulam em seu território.

MAE / USP / Ader Gotardo / DivulgaçãoColar de fibra vegetal com dentes de macaco e onça do povo Huni Kuin / Kaxinawá, do AcreMAE / USP / Ader Gotardo / Divulgação

Além da legislação nacional, há leis internacionais, como a Convenção de Haia, de 1954, que protege bens culturais em caso de conflito armado; acordos bilaterais do Brasil com nações como Peru, Bolívia, Botsuana, Equador, Espanha e Uzbequistão, que asseguram a devolução de patrimônio cultural eventualmente roubado; e acordos multilaterais. Apesar desses cuidados, a historiadora informa que o Brasil ocupa o 26º lugar na lista de nações com o maior número de objetos culturais roubados. Coutinho enfatiza que o tráfico ilícito é uma atividade lucrativa que pode estar associada ao financiamento de outros crimes, envolve redes e mercados transnacionais e gera perda de material histórico, cultural e científico.

MN / Roosevelt Mota / DivulgaçãoEscultura ritual de madeira do orixá Xangô, de 1880: objetos da cultura africana foram incorporados em lista vermelha pela primeira vez MN / Roosevelt Mota / Divulgação

Na listagem brasileira, um dos grupos de objetos reúne livros, documentos, manuscritos e fotografias. As primeiras obras impressas no Brasil e no exterior de literatura nacional, publicações utilitárias, como rótulos e cardápios do século XIX, mapas e uma carta de dom João VI (1767-1826) sobre a abertura dos portos são alguns itens desse conjunto. O segundo agrupamento abarca peças arqueológicas, como itens feitos em cerâmica, pedra lascada e polida, de períodos pré e pós-coloniais, entre eles urnas funerárias, estatuetas, armas, ferramentas em pedra e ornamentos de povos indígenas. O terceiro inclui arte sacra e religiosa, como artefatos e acessórios de tradição católica, e objetos rituais de origem africana, como esculturas em madeira e terracota e castiçais. O quarto grupo congrega objetos etnográficos como adornos de cabeça, colares, máscaras e leques. No quinto estão itens da paleontologia, como fósseis encontrados em baías sedimentares, restos de vertebrados, invertebrados e plantas.

Durante o evento de lançamento da publicação, dia 14 de fevereiro, no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, a arquiteta Renata Vieira da Motta, presidente do Icom Brasil, destacou que itens de paleontologia, etnografia e objetos da cultura africana foram incorporados pela primeira vez em uma lista vermelha, evidenciando as particularidades do patrimônio cultural brasileiro. Agora, o Icom pretende elaborar estratégias e parcerias para qualificar profissionais e autoridades policiais na utilização da lista em seu cotidiano de trabalho.

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