Imprimir Republicar

Zoologia

Lobo-marinho peruano tem origem híbrida, afirma estudo

Animais de Galápagos e do Chile teriam dado origem a uma nova espécie há cerca de 400 mil anos

Paisagem habitada pelos lobos-marinhos peruanos em Punta San Juan

Michael Tweddle©PSJPROGRAM

O estudo do genoma de uma população de lobos-marinhos que vive isolada na costa do Peru indicou que eles provavelmente tiveram origem híbrida, a partir do cruzamento entre duas espécies, algo raro entre mamíferos. Há 400 mil anos, exemplares de lobo-marinho de Galápagos (Arctocephalus galapagoensis) e do Chile (Arctocephalus australis) teriam migrado e se encontrado no meio do caminho. Lá eles teriam cruzado e se multiplicado, permanecendo em isolamento por centenas de milhares de anos, segundo artigo publicado na quinta-feira, 4/5, na revista Science Advances.

“Ainda não sabemos exatamente quantos indivíduos de cada espécie chegaram ao Peru, mas os dados genéticos sugerem que eram poucos”, infere o biólogo Sandro Bonatto, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e coordenador do estudo. “Um único casal já seria o suficiente”, acrescenta. Segundo Bonatto, a espécie nova surgiu de forma rápida, em poucas gerações. Geralmente, os processos evolutivos mais comuns podem levar milhares de anos para dar origem a uma nova espécie.

Depois de nadar por cerca de 2 mil quilômetros, a partir de Galápagos, e cerca de 3 mil quilômetros, saindo do sul do Chile, as duas espécies produziram híbridos peruanos que começaram a cruzar entre si, dando origem a uma espécie que até hoje carrega metade do DNA de cada espécie parental. Para o pesquisador, a combinação de genomas pode ter contribuído para que a nova espécie se adaptasse ao clima do Peru. As espécies de Galápagos estavam mais adaptadas ao calor, e as do Chile ao frio. Elas teriam, portanto, dificuldade de prosperar no Peru, de clima intermediário. “Provavelmente, a mistura de genes adaptados ao frio e ao calor contribuiu para que a nova espécie vingasse”, diz Bonatto.

Juan Carlos JeriOs animais do Peru têm origem no encontro reprodutivo entre duas espécies distintasJuan Carlos Jeri

“Até onde sei, é o único exemplo bem embasado, tanto por dados genéticos quanto ecológicos, de uma espécie de mamífero aquático que teve origem híbrida”, ressalta o biólogo Fabrício Rodrigues dos Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais, que não participou do estudo.

Embora híbridos sejam comuns em animais, geralmente o filhote volta a cruzar com animais de uma das espécies parentais e o DNA é diluído ao longo das gerações, como aconteceu no ser humano moderno (Homo sapiens), que assimilou parte do material genético de neandertais (H. neanderthalensis), hominídeos que viveram até cerca de 40 mil anos atrás. Encontros entre as duas espécies geraram híbridos, mas nesse caso não surgiu uma nova espécie porque o material genético neandertal foi se diluindo quando esses híbridos cruzaram novamente com indivíduos H. sapiens. Para que o DNA das espécies parentais estivesse presente de forma equitativa, seria necessário que os híbridos se reproduzissem apenas entre si.

Diego Páez-Rosas e Rodrigo BaleiaLobos-marinhos de Galápagos (à esq.) e do Chile (à dir.) são as espécies parentaisDiego Páez-Rosas e Rodrigo Baleia

Bonatto ressalta que se não estivessem isoladas pelo mar das populações de Galápagos, arquipélago que hoje pertence ao Equador, e das chilenas por regiões costeiras inabitáveis para lobos-marinhos, a população híbrida teria sido assimilada por uma das espécies parentais. O artigo também mostra que, mais recentemente, um novo bando de lobos-marinhos de Galápagos, com cerca de 100 indivíduos, foi visto ao norte do Peru. Alguns desses animais já cruzaram com os que estão no Peru. “Se isso continuar, é possível que a espécie híbrida desapareça com o tempo, sendo absorvida pela de Galápagos”, afirma Bonatto.

A descoberta tem implicações para a conservação das espécies de lobos-marinhos. Como há diversas populações de A. australis no Chile, no Uruguai e na Argentina, pode não haver destinação de recursos para a conservação da população do Peru, se fosse considerada da mesma espécie. “Isso porque em vários países a legislação geralmente prioriza a conservação de espécies distintas”, explica Bonatto.

A nova espécie híbrida ainda não foi batizada, o que deve acontecer oficialmente com a publicação de um artigo descrevendo suas principais características. A tarefa ficou a cargo de Larissa Rosa de Oliveira, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e do Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul (Gemars), que começou a estudar as populações do Peru desde 1997, logo após a ocorrência do pior fenômeno climático El Niño da história, quando o aquecimento das águas superficiais do oceano Pacífico afugentou os peixes que os lobos-marinhos comem e causou a morte de quase 80% da população local. Naquele momento, Oliveira encontrou muitos animais mortos e aproveitou para coletar crânios e montar uma coleção de estudo.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Durante a análise dos crânios, ela observou que os exemplares do Peru eram maiores, com um formato diferente em relação às espécies do Atlântico, e desconfiou ser uma espécie diferente, o que foi corroborado pela análise genômica. “Foi uma grande surpresa perceber que estávamos diante de uma espécie nova de um grande mamífero”, conta Oliveira. “A surpresa foi maior ainda quando descobrimos que a espécie nova é na verdade a primeira híbrida de mamífero descrita pela ciência.”

“Aparentemente essa hibridação é recente na história evolutiva e é preciso tempo para saber se há isolamento reprodutivo ou se é uma população híbrida que pode cruzar com as parentais”, alerta o zoólogo Célio Haddad, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro. “Os critérios de conservação favorecem espécies descritas, mas deveriam ser ampliados para proteger populações híbridas ou que tenham alguma característica peculiar.”

Artigo científico
LOPES, F. et al. Genomic evidence for homoploid hybrid speciation in a marine mammal apex predator. Science Advances. v.9, adf6601. 3 mai. 2023.

Republicar