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GENÉTICA

Luzio era semelhante aos indígenas atuais, diz estudo

Há mais de 10 mil anos, homem construía sambaquis em beira de rio e tinha genética parecida com ameríndios modernos, sem relação direta com os povos litorâneos

Reconstrução tridimensional do crânio de Luzio, que viveu há cerca de 10,4 mil anos

Crédito André Strauss / USP

Detalhes sobre a origem dos povos americanos e a história dos sambaquis – montes feitos com conchas tidos como locais sagrados para as populações que os construíram milhares de anos atrás ­– estavam guardados no DNA do crânio de Luzio, que viveu há cerca de 10.400 anos onde agora é o vale do Ribeira, o esqueleto humano mais antigo no estado de São Paulo. A análise do material e de mais 33 amostras de material genético de ossadas humanas de todas as regiões do país, realizada por 20 instituições nacionais e seis estrangeiras, foi detalhada em artigo publicado nesta segunda-feira (31/7) na revista científica Nature Ecology and Evolution.

Assim como Luzia, ele era muito parecido geneticamente com os indígenas atuais”, relata o arqueólogo André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), referindo-se ao fóssil datado em cerca de 12 mil anos encontrado em Lagoa Santa, Minas Gerais. Segundo o pesquisador, esse dado reforça a hipótese de que uma única leva migratória ocupou a América. “Todos os povos antigos ou atuais da América do Sul tiveram origem nesse primeiro grupo de migrantes”, defende ele. “As feições típicas dos indígenas atuais surgiram conforme eles se adaptaram ao novo continente”, assinala.

“A cultura material dos sambaquieiros fluviais, como Luzio, apontava que eles tinham semelhança com outros grupos do interior, os dados genéticos corroboraram essa interpretação de origem comum”, reitera a arqueóloga Cláudia Plens, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coautora do trabalho. Ela foi responsável por escavar o crânio de Luzio durante o doutorado no MAE-USP, encerrado em 2008 sob a coordenação dos arqueólogos Paulo DeBlasis e Levy Figuti. Mas isso não significa que esses primeiros habitantes formavam um grupo único e homogêneo. Luzia, Luzio e outro esqueleto encontrado no município de Pains, em Minas Gerais, tinham trechos do DNA que os distinguiam uns dos outros, e apresentavam diferenças culturais: eram todos caçadores-coletores, mas o povo de Luzio erigia sambaquis na beira de rios usando conchas, enquanto o de Luzia não.

Muitos pesquisadores consideravam Luzio um forte candidato a ancestral dos povos dos sambaquis litorâneos. Bastaria uma parte de seu grupo andar 100 quilômetros até onde hoje está Cananeia, a cidade litorânea mais próxima, e de lá se espalhar pelo litoral brasileiro ‒ ocupação que, segundo a datação dos registros arqueológicos, teria acontecido a partir de cerca de 8 mil anos atrás.

André Strauss / USP Tiago Ferraz no laboratório: a extração de DNA antigo exige muitos cuidados para evitar a contaminação das amostrasAndré Strauss / USP

“Não foi isso que verificamos”, avisa Strauss. “Não havia traço genético de Luzio nos esqueletos dos sambaquis do litoral.” Segundo o arqueólogo, o mais provável é que o povo litorâneo tenha descido a costa a partir do norte, sem  acesso ao interior do continente por causa da barreira imposta pela serra do Mar. No entanto, como o nível do mar era mais baixo, sítios arqueológicos e eventuais evidências sobre a origem dos sambaquis podem ter sido submersos.

“Figuras como Luzia e Luzio mostram que temos uma história própria, que começa com os caçadores e coletores e os povos dos sambaquis”, comenta a arqueóloga MaDu Gaspar, do Museu Nacional, que não participou do trabalho. Segundo ela, o estudo contribui também para entender melhor as interações sociais entre diferentes grupos de sambaquianos, bem como entre cada um deles e grupos tribais como os povos do tronco Jê.

Solidão praieira
Os arqueólogos já haviam notado diferenças culturais entre os sambaquis das regiões Sudeste e Sul, onde há esculturas em pedra chamadas zoólitos e montes de conchas maiores. A suspeita de que essa observação indicava ausência de intercâmbio foi confirmada pelos dados genéticos: esqueletos do Espírito Santo e de Santa Catarina tinham diferenças em trechos do DNA usados como marcadores. “Mas isso não significa que todas as populações fossem totalmente isoladas”, ressalta Strauss. Segundo ele, o grupo do Espírito Santo, por exemplo, trazia marcas genéticas de povos do interior do Nordeste.

Construídos ao longo de gerações, os sambaquis tinham papel central nas sociedades litorâneas, como palco de rituais funerários e sinalização de que aquele espaço estava ocupado. No auge da cultura sambaquieira, há 4 mil anos, chegaram a atingir 40 metros, similar a um prédio de 12 andares, e abrigavam milhares de esqueletos. Na visão de Strauss, as civilizações dos sambaquis eram complexas, sofisticadas e populosas. “A quantidade de corpos enterrados indica uma densidade demográfica muito alta, o que no entanto não foi apoiado pelos dados genéticos.”

Ximena Villagran / USP Sambaqui Ipoã em Santa Catarina: em seu auge, montes podiam chegar à altura de um prédio de 12 andaresXimena Villagran / USP

O estudo também lançou luz sobre as relações entre os povos praieiros e os do tronco linguístico macro-Jê, que viviam no Brasil central há pelo menos 3 mil anos e depois migraram para o Sul. Até cerca de 2.200 anos atrás, não foi encontrado sinal genético dos Jê nos sambaquis. Naquela época, os sambaquis se tornavam cada vez menores e com menos conchas ‒ talvez em consequência de uma redução nos recursos pesqueiros.

“Com a falta de recursos, é provável que esses povos tenham passado a se interessar mais pelos vizinhos do interior”, supõe Strauss. Assim, em meio aos restos de animais marinhos, começaram a aparecer potes de cerâmica fina com decoração discreta, típicos da cultura dos povos ancestrais Jê. Pouco se sabia, porém, se os povos dos sambaquis foram substituídos ou se assimilaram a nova cultura. Os resultados publicados nesta semana mostram que as duas coisas podem ter acontecido.

“A abordagem genética contribui para elucidar polêmicas históricas sobre a questão do isolamento ou da interação entre populações dos sambaquis”, afirma Gaspar. A arqueóloga ressalta que interações culturais nem sempre deixam traços facilmente perceptíveis por meio de escavações. “A genética pode dar pistas sobre essas interações que não deixaram evidências materiais. Mas é importante ampliar a pesquisa para que possamos construir um cenário que retrate a complexidade das relações de trocas e deslocamentos regionais que ocorreram no passado.”

MAE-USP Nos sambaquis da região Sul são encontrados esculturas em pedras, os zoólitos, e montes mais altos de conchasMAE-USP

Sambaquieira cosmopolita
Um esqueleto encontrado em Santa Catarina e apelidado de Henrietta, também incluído no estudo desta semana, revelou um exemplo de interação entre o sambaqui e o interior. Ela viveu há cerca de 1.300 anos e, segundo o artigo, carregava traços genéticos do povo Jê. Segundo Strauss, a mulher deve ter nascido no litoral, mas passou parte da vida no interior, onde pode ter convivido com parentes e amigos Jê, antes de voltar para casa e ser enterrada em um sambaqui. Para obter pistas da trajetória da sambaquieira, os pesquisadores usaram o marcador químico estrôncio, que fornece indícios do local onde a pessoa cresceu.

Em um sambaqui vizinho, no entanto, a miscigenação parece não ter ocorrido. A análise do DNA, nesse caso, indicou uma genética típica de sambaqui, embora o registro arqueológico já apresentasse cerâmica jê. Esses sambaquieiros podem ter tido contato com os ancestrais dos grupos Jê e aprendido técnicas de cerâmica, sem que isso desse origem a miscigenação.

“Desde o império, a investigação dos sambaquis é um tema central no esforço da arqueologia para contar a história da origem do povo brasileiro”, diz Gaspar. Segundo ela, o artigo mostra que não se pode entender essas populações de forma isolada, o que deve influenciar pesquisas futuras.

A edição impressa de setembro traz uma versão resumida desta reportagem.

Projetos
1. Reconstruindo a história humana na América do Sul com dados paleogenômicos (nº 16/12371-1); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Tábita Hünemeier (USP); Bolsista Tiago Ferraz da Silva; Investimento R$ 91.779,09.
2. Histórias indígenas de longa duração: O Brasil pré-colonial pela ótica da arqueogenética e da antropologia virtual (nº 17/16451-2); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável André Menezes Strauss (USP); Investimento R$ 405.314,00.

Artigo científico
FERRAZ, T. et al. Genomic history of coastal societies from eastern South America. Nature Ecology and Evolution. 31 jul. 2023.

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