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Memória

Médico, antropólogo e radialista

Inquieto e inventivo, Edgard Roquette-Pinto participou de movimentos antirracistas e da implantação do rádio no país

Aos 27 anos, com crianças do povo Kozarini, durante expedição com a Comissão Rondon, em 1912

Acervo Museu Nacional

Em uma “crônica de saudades”, publicada em 1961 no jornal Correio da Manhã, o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) descreveu o amigo Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) como um homem que “amava sua terra e queria servir ao seu povo”. A homenagem reconhecia o empenho do intelectual carioca na criação, em 1923, da Rádio Sociedade, a primeira emissora do país, mais tarde transferida ao Ministério da Educação sob o nome de Rádio MEC. Entretanto, décadas antes de se consagrar como um dos pioneiros da radiodifusão no Brasil, Roquette-Pinto trabalhou com pesquisa científica, transitando entre áreas como medicina, antropologia e museologia. Contribuiu para o estudo sobre culturas indígenas e para o estabelecimento do audiovisual como ferramenta de divulgação de ciência.

Os trabalhos publicados por ele no início do século XX revelam um perfil multifacetado como cientista, nas palavras do jornalista Cláudio Bojunga, neto e biógrafo de Roquette-Pinto: “Meu avô tinha uma personalidade marcada ao mesmo tempo pela versatilidade e profundidade”. Esse traço, diz Bojunga, explica a trajetória eclética desde os tempos de estudante na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (hoje unidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Seu trabalho de conclusão de curso versa sobre práticas de medicina indígena.

“É surpreendente imaginar que um médico, com toda a distinção atribuída à sua função, tenha se disposto a investigar tais técnicas de cura, equiparando ao status médico tais procedimentos caracterizados, na época, como primitivos”, diz a antropóloga Rita de Cássia Melo Santos, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “Embora não tenha abdicado dessa caracterização, Roquette-Pinto construiu sobre essas populações uma alteridade relativa, reconhecendo estágios evolutivos das funções médicas de rituais indígenas”, explica Santos, autora do livro No coração do Brasil: A expedição de Roquette-Pinto à serra do Norte (Museu Nacional, 2020).

O interesse pela antropologia surgiu durante as aulas de fisiologia do médico Augusto Brant Paes Leme (1862-1943). “Parte das aulas abordava temas antropológicos, mais especificamente o estudo das raças humanas”, observa Santos. Até as primeiras décadas do século XX, a antropologia era muito diferente de hoje. “Tratava-se de uma disciplina irmã da medicina”, comenta o historiador Vanderlei Sebastião de Souza, da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), no Paraná. “Os estudos nessa área eram feitos principalmente por médicos, biólogos e naturalistas. Praticava-se, na época, uma antropologia física, dedicada a investigar o processo evolutivo humano e fortemente marcada por noções de determinismo racial”, diz Souza, estudioso da obra de Roquette-Pinto.

Em 1905, recém-formado, o jovem médico ingressou como assistente concursado na Seção de Antropologia, Etnologia e Arqueologia do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Permaneceu na instituição por três décadas e ocupou o cargo de diretor entre 1926 e 1935. Foi durante os primeiros anos no museu que Roquette-Pinto tomou gosto pelas expedições etnográficas.

Acervo Museu Nacional Sala criada pelo antropólogo no Museu Nacional em homenagem a Euclides da CunhaAcervo Museu Nacional

O primeiro trabalho de campo foi no litoral do Rio Grande do Sul, investigando sambaquis – grandes acúmulos de conchas, ossos de animais e outros vestígios arqueológicos. Ao chegar aos sambaquis, Roquette-Pinto foi surpreendido pela destruição de quase todas as jazidas que deveria pesquisar. “Ele compensou a ausência do objeto de estudo fazendo uma descrição daquele território”, diz Santos. O relato foi considerado pelo antropólogo Luís de Castro Faria (1913-2004) um trabalho etnográfico “de admirável sabor literário”, por retratar com minúcia não só paisagens, mas condições de navegação nos rios, formas de construção das casas e técnicas de pesca artesanal.

As anotações decorrentes dessa expedição forneciam pistas sobre o modo como Roquette-Pinto atuaria na antropologia. No âmbito da antropologia física, o principal interesse dos estudiosos daquela época era investigar características antropométricas de “povos primitivos”, afastados da “civilização”. Ossos e crânios eram medidos a fim de entender diferenças entre as raças humanas.

“Nesse período, raça era tido como um conceito biológico válido para humanos e se considerava que elas se diferenciavam a partir de aspectos físicos e mentais. Os cruzamentos entre indivíduos de raças distintas eram tidos como danosos”, explica o antropólogo Ricardo Ventura Santos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Segundo essa visão, miscigenação significava degeneração.

Ainda que a obra antropológica de Roquette-Pinto tenha sido, em alguma medida, influenciada por essa perspectiva biológica, ele se distanciou de teorias racistas que haviam sido difundidas por naturalistas como o francês Arthur de Gobineau (1816-1882).

É no livro Rondônia: Antropologia-etnografia (1917), considerado seu principal trabalho científico, que o pesquisador imprime uma concepção contrária ao determinismo racial extremo presente na antropologia brasileira. “Em vários momentos da obra, ele se refere à antropologia como empreitada para compreender questões mais profundas ligadas à experiência humana”, diz Ventura.

Reprodução Roquette-Pinto durante locuçãoReprodução

Rondônia é fruto da participação de Roquette-Pinto na Comissão Rondon, em 1912. Das expedições organizadas pelo marechal Cândido Rondon (1865-1958), participavam botânicos, zoólogos e outros cientistas, que estudavam a fauna e a flora dos locais percorridos e faziam pesquisas etnográficas da cultura material de grupos indígenas. No livro, a ideia de raça está presente, mas não se restringe à perspectiva biológica. “Roquette-Pinto também levou em conta aspectos sociais, hábitos e costumes de povos como os Nambiquara, em Mato Grosso”, salienta Ventura. “Ele defendia que, junto com os atributos biológicos, a dimensão social ajudava a compreender melhor as capacidades e potencialidades de uma raça.”

Seguindo essa lógica, Roquette-Pinto não aceitava a ideia de que os males do Brasil seriam consequência da mistura de raças, diz Souza: “Ele se contrapôs ao determinismo biológico presente nos círculos intelectuais no início do século XX”. A miscigenação de raças e a presença de indígenas e africanos na formação do Brasil, portanto, não interferiam no desenvolvimento do país. “A causa do atraso brasileiro”, dizia ele, “era a falta de políticas públicas em áreas como saneamento, habitação, saúde e educação”. Souza lembra da célebre frase de Roquette-Pinto: “O problema do Brasil é a doença, não a raça”.

Contato com a eugenia
Em 1929, Roquette-Pinto publicou Nota sobre os tipos antropológicos, em que defende que nenhum dos tipos da população “brasiliana” – termo que preferia, em vez de “brasileira” – apresentava qualquer estigma de degeneração antropológica. A partir daí, torna-se figura central nas discussões sobre migração, colocando-se contrário a políticas de imigração de europeus com o propósito de embranquecer o Brasil.

O trabalho foi apresentado no I Congresso Brasileiro de Eugenia, no Rio de Janeiro, presidido por ele. O conceito de eugenia propõe que há raças ou indivíduos superiores a outros, com base em princípios da hereditariedade. “À primeira vista, parece uma ambiguidade participar de um encontro sobre esse tema”, reconhece Souza. “Contudo, ele simpatizava com a eugenia, crendo na possibilidade de aperfeiçoamento do ser humano, independentemente da raça.”

Acervo Rádio MEC Roquette-Pinto com os pioneiros da Rádio Sociedade, em 1924 (no centro, de bengala)Acervo Rádio MEC

A eugenia defendida por Roquette-Pinto era influenciada pela redescoberta, em 1900, dos trabalhos publicados pelo monge austríaco Gregor Mendel (1822-1884), em 1865. Pesquisadores de várias partes do mundo se voltaram para estudos sobre hereditariedade e variabilidade genética em espécies animais e vegetais. Eugenistas mais radicais se apropriaram dos estudos de Mendel e passaram a defender que seria possível promover o melhoramento do ser humano incentivando a reprodução de casais supostamente mais saudáveis, pontua Souza. Roquette-Pinto deixou de escrever sobre eugenia quando percebeu o avanço de uma vertente mais radical, que compartilhava ideias racistas e higienistas, liderada pelo médico paulista Renato Kehl (1889-1974), que fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo.

“Roquette-Pinto estava a par do surgimento de uma antropologia antirracista nos Estados Unidos e na Europa”, conta Rita Santos, da UFPB. O brasileiro tinha afinidade com o antropólogo teuto-americano Franz Boas (1858-1942), com quem compartilhava a crítica ao determinismo racial. Já o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) declarou que seu interesse pelos povos tradicionais da Amazônia surgiu depois de ler Rondônia. Em Tristes trópicos, de 1955, Lévi-Strauss faz referência ao “charmoso livro do falecido Roquette-Pinto”.

A imersão na antropologia não o afastou completamente da medicina. “Ele deu aulas na Faculdade de Medicina e lecionou história natural na Escola Normal do Distrito Federal, que na época era no Rio”, conta Ventura. Na década de 1920, ministrou um curso de fisiologia na Universidade Nacional, em Assunção, no Paraguai.

Foi a experiência na Comissão Rondon que despertou em Roquette-Pinto a paixão pelo cinema educativo e a radiodifusão. Durante a expedição de 1912, o antropólogo fez registros fotográficos e de áudio dos Nambiquara. “Ele era muito interessado em tecnologia, vendo nela uma aliada para a arquivologia e a difusão do conhecimento, e, por isso, montou a filmoteca do Museu Nacional”, diz a cientista da informação Alice Ferry de Moraes, pesquisadora da Fiocruz.

Acervo Museu Nacional O antropólogo (segundo da esq. para a dir.) recebeu Albert Einstein (de terno claro) no Museu Nacional, em 1925Acervo Museu Nacional

Em 1916, o antropólogo integrou o grupo de 27 cientistas fundadores da Academia Brasileira de Ciências (ABC), que a partir da década de 1920 passou a apoiar iniciativas de educação científica. “Foi com esse pano de fundo que o pesquisador convenceu a ABC a comprar equipamentos para montar a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro”, explica Moraes. Fundada em 1923, a emissora tinha programas de literatura, música clássica e ciência.

Um ano antes, durante as exposições de comemoração do Centenário da Independência, no Rio, ele conheceu um americano que lhe apresentou a tecnologia do rádio. Havia um espaço cheio de bugigangas na casa de Roquette-Pinto. Lá, conseguiu criar uma precária estação de rádio experimental para saber como uma emissora funcionava na prática.

Anos depois, em 1932, o antropólogo integrou o Movimento de Renovação Educacional do Brasil e assinou, com outros 26 intelectuais, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Redigido pelo educador Fernando de Azevedo (1894-1974), o documento defendia a bandeira da escola pública, obrigatória e gratuita. Um decreto promulgado naquele ano pelo então presidente Getúlio Vargas (1882-1954) previa a criação de um órgão voltado para o cinema educativo. “Foi baseado nessa política que Roquette-Pinto elaborou o projeto que resultou na criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo, o Ince, em 1936”, conta Moraes.

Sob a tutela do Ince foram produzidos mais de 400 filmes educativos, dos quais 357 dirigidos pelo cineasta mineiro Humberto Mauro (1897-1983). “Não havia assunto que não virasse filme: folclore, serviço de esgoto, astronomia, tuberculose, tecnologias da saúde e por aí vai”, diz Moraes. O antropólogo esteve à frente do Ince entre 1937 e 1947 (ver Pesquisa FAPESP nº 271).

Em 1936, Roquette-Pinto devolveu a concessão da Rádio Sociedade para o governo federal, devido a dificuldades financeiras para mantê-la. O antropólogo fez o pedido ao ministro da Educação Gustavo Capanema (1900-1985), que convenceu Vargas a aceitar a rádio, rebatizada de Rádio MEC. De acordo com o amigo Carlos Drummond de Andrade, na cerimônia que oficializou a entrega, Roquette-Pinto teria dito a Capanema: “Entrego esta rádio com a mesma emoção com que se casa uma filha”.

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