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Cinema

Memória audiovisual em risco

Crise na Cinemateca Brasileira ameaça o maior acervo da América Latina

Fachada da Cinemateca, na Vila Clementino, em São Paulo

Léo Ramos Chaves

O filme Cabra marcado para morrer, lançado em 1984 por Eduardo Coutinho (1933-2014), quase não foi concluído. Interrompida pelo golpe militar de 1964, a produção original sobreviveu graças à engenhosidade do diretor que, entre outros estratagemas, conseguiu manter latas com rolos do filme escondidas sob a cama de um general, o pai do cineasta David Neves (1938-1994), seu amigo, e alterou o nome da produção para não levantar suspeitas ao depositá-la no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Retomado na virada dos anos 1980, recebeu mais de uma dezena de prêmios, entre eles o de melhor documentário no Festival de Havana, em Cuba, e o Golfinho de Ouro, na primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Tróia, em Setúbal, Portugal. Em 2011, a restauração da película desafiou os técnicos da Cinemateca Brasileira por sua complexidade: parte do material tinha sido produzida em 16 mm (milímetros), parte em 35 mm, alguns trechos eram coloridos e outros em preto e branco. Depois de pronta, um maravilhado Coutinho brincou que nunca havia visto aquele filme antes. 

Assim como Cabra, a Cinemateca recuperou A hora e a vez de Augusto Matraga (1966), de Roberto Santos (1928-1987), e filmes de Glauber Rocha (1939-1981). Limite (1931), o clássico de Mário Peixoto (1908-1992), foi restaurado pela segunda vez em 2000, sob a supervisão de Saulo Pereira de Melo, e permanece guardado nos galpões da Vila Clementino, em São Paulo. Essas obras e o acervo de 30 mil títulos, 245 mil rolos de filmes e 1 milhão de documentos estão sob risco, em razão da crise institucional provocada pela interrupção dos repasses do governo federal à Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), organização social encarregada da gestão da Cinemateca. Também estão guardadas ali as fitas e os filmes remanescentes dos arquivos da TV Tupi (1950-1980). 

Formalmente sob a responsabilidade da Secretaria do Audiovisual, vinculada ao Ministério do Turismo, em 2018 a gestão da Cinemateca foi entregue à Acerp em aditivo contratual a compromisso original da associação, de realização da programação do canal TV Escola, do Ministério da Educação (MEC), mas no final de 2019 o contrato terminou e não foi renovado. Sem o compromisso original, o aditivo perdeu seu valor, entendeu o governo federal, que já devia metade da verba a ser destinada à Cinemateca, além do orçamento para o ano de 2020. Resultado: desde abril, os funcionários da instituição estão sem receber salários e cresce o risco de corte de energia elétrica, o que pode acarretar a interrupção do sistema de ar condicionado, provocando a deterioração dos filmes em acetato. Sem a inspeção e o monitoramento realizados por técnicos, os materiais em nitrato de celulose podem entrar em autocombustão. Para continuar existindo, a Cinemateca precisa de, no mínimo, R$ 13 milhões anuais. Para o cumprimento de sua missão institucional são necessários entre R$ 25 milhões e 30 milhões por ano. 

“A pesquisa cinematográfica e o avanço do conhecimento nessa área não são possíveis sem uma cinemateca”, alerta Ismail Xavier, professor do Programa de Pós-graduação de Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). “No mundo inteiro, são as cinematecas que viabilizam as pesquisas sobre a história do cinema”, diz ele, que em seu mestrado e doutorado trabalhou arquivos fílmicos e bibliográficos da instituição. O ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, reuniu-se com representantes da Acerp na Cinemateca em 23 de junho. Depois do encontro, Antônio defendeu vida nova para a instituição: “Podem ter certeza de que, com o novo secretário de Cultura, faremos de tudo para resgatar e resolver o impasse dessa instituição tão importante para o Brasil e para o mundo”.

Acervo Cinemateca Biblioteca Paulo Emilio Salles Gomes abriga cerca de 70 mil itensAcervo Cinemateca

Tecnologia nacional
Com uma história acidentada desde a sua fundação como Clube de Cinema de São Paulo, em 1946, tornando-se Filmoteca do MAM antes de ser designada Cinemateca Brasileira, em 1956, a instituição passou por vários regimes jurídicos, sempre com dificuldades em evidenciar a relevância de seu acervo, que, inicialmente, em muito se deveu a contatos e articulações do historiador e crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977), seu principal idealizador. Também um dos fundadores do curso de cinema da ECA-USP, Salles Gomes intensificou, na década de 1970, o intercâmbio entre professores, alunos e Cinemateca, então alojada em um galpão no Parque do Ibirapuera. Preocupada com a situação dos filmes, risco de incêndio e decomposição química envolvendo o acervo em nitrato e acetato, a partir dos anos 1970 a instituição elegeu como prioridade a implantação de um laboratório de preservação e restauração, inaugurado em 1978. Pouco tempo depois, foi reconhecida pela Federação Internacional de Arquivos de Filmes (Fiaf) como exemplo para as cinematecas latino-americanas. 

Logo no início da empreitada, Carlos Augusto Calil, um dos principais responsáveis pela montagem do laboratório, descobriu que para levá-la a bom termo seria necessário desenvolver, aqui mesmo, a tecnologia de preservação do material. “Não havia a quem recorrer. Os europeus não sabiam o que fazer para preservar os filmes nas condições climáticas do país”, conta. A constatação, aliada ao empenho de técnicos, pesquisadores e professores, resultou não apenas no primeiro laboratório de preservação fílmica da América Latina, como também estabeleceu a Cinemateca como centro de referência, com cineastas de vários estados remetendo seus filmes para recuperação e depósito na instituição.  

O status adquirido naquela época, ao lado da preservação e catalogação de documentos, deu à Cinemateca a condição de seguir a recomendação feita por Salles Gomes em 1949, para que se “acentuasse ‘o caráter de arquivo de filmes’, por meio da reunião de documentos sobre a história do cinema – livros, fotografias, roteiros, cartazes – e do cinema brasileiro em particular”. A ideia era de que se reunisse ao menos uma cópia de cada obra produzida no Brasil, como relata Carlos Roberto Souza, pesquisador e curador do acervo entre 1990 e 2004, em sua tese de doutorado “A Cinemateca Brasileira e a preservação de filmes no Brasil”, defendida na ECA-USP, em 2009. 

A expansão do acervo, com o acúmulo de filmes e outros documentos, aliada à crescente necessidade de acesso a esse material por pesquisadores do Brasil e do exterior, levou a instituição a desenvolver projetos para ampliar a guarda e aprimorar seus expedientes de funcionamento. O primeiro deles, idealizado por Maria Rita Galvão (1939-2017), professora da ECA e pesquisadora da Cinemateca, começou em 1994 e buscava estabelecer um padrão de informatização que permitisse o intercâmbio com outras instituições do gênero. Depois de uma década sem processar filmes, em 2000 Galvão conseguiu financiamento para melhorar a infraestrutura do laboratório de restauração e reativar sua capacidade de trabalhar com matrizes fílmicas. Com uma nova máquina reveladora, responsável pelo processamento químico do filme já exposto à luz, a quantidade de metros processados por ano passou de 120 mil, em 2002, para 300 mil metros em 2012, quando foi o terceiro laboratório mais produtivo do mundo, segundo a Fiaf, ficando atrás apenas da Biblioteca do Congresso de Washington e da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. No intervalo de 10 anos, o número de técnicos no laboratório também cresceu: passou de 7 para 42.

Carol Vergotti / Cinemateca Brasileira Quatro câmaras climatizadas constituem o arquivo de matrizes fílmicasCarol Vergotti / Cinemateca Brasileira

Conhecimento acessível
Atuando na instituição há mais de quatro décadas, o historiador José Inácio de Melo Souza desenvolveu extensa pesquisa acadêmica sobre roteiros de cinejornais produzidos pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), entre 1939 e 1945. Em seu mestrado, analisou a relação das oligarquias da Velha República com os veículos de comunicação e a utilização desses meios pelo governo de Getúlio Vargas (1882-1954). “Tive um contato muito próximo com esse material. Quem veio depois só teve acesso em vídeo. Eu pude ver os cinejornais diretamente na moviola, fotograma por fotograma”, relata o autor de O Estado contra os meios de comunicação (1889-1945) (Annablume/Fapesp, 2003) e Imagens do passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema (Senac, 2004). 

O conjunto da obra de Melo Souza revela a história de um período pouco explorado sobre a urbanização e as formas de apropriação social do cinema. Em Imagens do passado, ele mostra como a estratificação social brasileira está presente nas salas luxuosas de exibição, no centro frequentado pela elite e instaladas em galpões nos bairros pobres, como ressalta o crítico José Geraldo Couto. Suas pesquisas também mudaram a cronologia da história do cinema brasileiro. Em 1993, em artigo publicado no número 19 da Revista da USP, Melo Souza identificou um fragmento, descoberto no Arquivo Nacional, filmado pelo advogado Cunha Salles em 1897, alguns meses antes da filmagem de Afonso Segreto na baía da Guanabara, considerada até então como marco inicial da produção nacional. 

Dois conjuntos relevantes de documentos estão disponíveis no site da instituição. Um deles é a filmografia do cinema brasileiro, que reúne em torno de 50 mil referências de obras cinematográficas. “São registros de toda a produção nacional conhecida, com indicação da fonte de informação, como o próprio filme, catálogos de festivais, anúncios e notícias de jornal, cartazes, roteiros”, conta Olga Futemma, ex-aluna de Salles Gomes e Rita Galvão. Na Cinemateca desde 1984, a cineasta e pesquisadora já fez um pouco de tudo, da catalogação à coordenação-geral da instituição. Desde 2018 responde pela gerência do acervo. “Fiz a descrição plano a plano de grande parte da filmografia muda brasileira disponível na moviola. Esse trabalho está na biblioteca, para consulta, e serve de guia também para o restauro”, diz, em relação aos 102 filmes silenciosos que estão no acervo.

Arquivo Paulo Emilio/Cinemateca Brasileira O historiador e crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes desempenhou papel fundamental na constituição do acervo da CinematecaArquivo Paulo Emilio/Cinemateca Brasileira

Entre as preciosidades na plataforma Banco de Conteúdos Culturais (BCC), Futemma destaca os quase 4 mil cartazes de filmes nacionais e estrangeiros, descritos também por técnica utilizada – fotografia, colagem, desenho etc. “Ainda falta uma publicação com esse material, que reúne muita informação sobre os artistas gráficos que se dedicaram à sétima arte.” O BCC dispõe também de filmes, fotos, roteiros, artigos, correspondências, além de 90 arquivos institucionais como o da companhia cinematográfica Atlântida, fundada em 1941, e o do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), criado em 1936 (ver Pesquisa FAPESP nº 271), e pessoais, como o do cineasta Glauber Rocha.

Disponível no BCC, a coleção de filmes silenciosos brasileiros foi de fundamental importância para o desenvolvimento de múltiplas pesquisas na década iniciada em 2003, quando a Cinemateca viveu seu período áureo em termos financeiros. Muitos desses projetos, como as seis edições das Jornadas Brasileiras de Cinema Silencioso e uma caixa com cinco DVDs temáticos de filmes da época, tiveram origem em reuniões semanais de pesquisadores, sob a coordenação de Carlos Roberto Souza. O projeto que resultou na produção dos DVDs, patrocinado pela Caixa Econômica Federal, se tornou referência para outras cinematecas do continente, que fizeram ações semelhantes. Além disso, muitos pesquisadores novos se formaram nesses eventos.  

Hoje doutor em história do cinema, Rafael Zanatto trabalhou na Jornada de 2012 e no Festival 100 Paulo Emilio, quando aprendeu técnicas de catalogação e manejo de arquivo que possibilitaram sua atuação internacional. “Aprendi técnicas de arquivo que permitiram que eu trabalhasse com outras cinematecas”, diz ele, cuja pesquisa de pós-doutorado trata da influência de autores franceses e alemães na historiografia cinematográfica mundial. Como lembra Eduardo Morettin, professor de história do audiovisual na ECA-USP, o que existe de material silencioso remanescente está na Cinemateca. “A memória do cinema e da televisão do país, nas suas mais diferentes dimensões, não apenas se encontra lá, mas está bem representada, com obras de ficção, cinejornais, documentários e todos os filmes considerados importantes.” 

Léo Ramos Chaves Crise na Cinemateca inviabiliza o acesso aos seus acervosLéo Ramos Chaves

Pesquisa interditada
Em 2013, o Ministério da Cultura apontou suspeitas de irregularidades na administração da instituição, realizada em parceria com a Sociedade Amigos da Cinemateca (Oscip). De lá para cá, o número de funcionários caiu de 150 para os atuais 62. Não houve mais aprovação de grandes projetos e todo esforço tem sido destinado a preservar o material armazenado. Desde então, o acesso ao acervo foi se tornando gradativamente mais difícil. Com a crise atual, pesquisadores como a doutoranda Thaís Lara, do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Darlene Sadlier, professora da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, terão de rever seus projetos de pesquisa. Lara analisa a obra de Ilka Brunhilde Laurito (1925-2012), professora e ex-conselheira da Cinemateca, e sua visão sobre as relações entre cinema e educação. Sadlier, com quatro livros publicados a partir de pesquisas desenvolvidas na Cinemateca, prepara nova obra sobre as relações entre documentário e política no Brasil. “Não sei como resolver essa situação. A escrita dos dois últimos capítulos depende da análise dos filmes mais recentes, a mais rica produção documental brasileira, e não há previsão de quando poderei assisti-los”, lamenta. 

Rafael Zanatto traduz o sentimento dos pesquisadores sobre a inacessibilidade ao acervo. “A Cinemateca é responsável por conservar a nossa história audiovisual, os nossos temas, as nossas paisagens. É a nossa fisionomia que está ali, nos filmes e nas imagens. Os nossos gostos, os nossos aspectos. Isso indo à ruína é muito preocupante.”

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