É difícil pensar na floresta amazônica e não imaginar uma imensidão verde. Mas ela abriga muito mais do que aquilo que se vê do céu. Descrita há 120 anos, a terra preta de índio, escura e fértil, atrai o interesse de arqueólogos, antropólogos e especialistas em solo sobre sua origem. Para a maioria, é oriunda dos povos pré-colombianos que ocuparam a floresta tropical há milhares de anos. O grande mistério, porém, é se havia propósito na formação da terra preta ou se foi mera consequência do descarte de dejetos.
Em artigo publicado na revista Science Advances (20/9), pesquisadores sugerem que havia – e ainda há – intencionalidade dos povos indígenas. O estudo contraria trabalho que sugere uma origem natural desse tipo de solo. Formada por sobras de comida, como mandioca e peixe, cinzas e outros restos orgânicos da floresta, a terra preta é rica em nutrientes como fósforo, cálcio, magnésio e nitrogênio, essenciais para o cultivo de alimentos. Todos esses compostos aumentariam a fertilidade do solo, indicam os pesquisadores.
“Quando a terra preta começou a ser estudada, foi uma revolução na arqueologia amazônica: trouxe evidências da existência de grandes populações naquele território porque, para formar esse material, é preciso que haja muita gente por bastante tempo no mesmo lugar”, afirma a arqueóloga britânica Jennifer Watling, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), coautora do artigo. Antes das pesquisas com terra preta, o entendimento geral era de que a Amazônia não poderia abrigar uma população muito densa por falta de solo fértil, conta ela. “A terra preta mostra que é possível sustentar muitas pessoas sem destruir a floresta.”
Mais uma vantagem desse tipo de solo: a de sequestrar carbono da atmosfera e estocá-lo. As medições apontaram cerca de 4.500 toneladas desse elemento em um dos sítios arqueológicos, enquanto nas aldeias modernas há 110 toneladas. Isso mostra como, ao longo do tempo, o carbono persistiu e se acumulou.
A terra preta é rica em carbono pirogênico, também chamado de carvão vegetal ou biochar, originado da queima de material orgânico e nutritivo para as plantas. Nas áreas residenciais, as amostras apresentaram concentrações de carbono duas vezes maiores do que as de áreas menos ocupadas. Isso acontece porque os indígenas utilizam a cinza de fogueiras domésticas das cozinhas das aldeias para a produção de terra preta, segundo os pesquisadores. “Eles limpam as fogueiras e espalham as cinzas em uma área para adubar o solo”, explica o geógrafo e arqueólogo Morgan Schmidt, do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Arqueologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e primeiro autor do artigo, que há mais de 20 anos estuda as práticas agrícolas de povos amazônicos.
As mudanças climáticas, no entanto, são uma preocupação para a manutenção desse tipo de terra. “O carbono pode se decompor mais rápido devido ao aquecimento do solo”, explica Schmidt. “Vimos também que, quando há desmatamento em uma área de terra preta e cultivo, se perde o material orgânico do solo e o carbono volta para a atmosfera”, aponta.
A crise climática pode, igualmente, afetar os hábitos de consumo das populações indígenas que ainda hoje preparam terra preta em seus territórios. “Essa terra é criada por meio de uma forma muito particular de uso e manejo do espaço doméstico, que inclui o descarte de restos de alimentos tradicionais como a mandioca”, diz Watling. “Se elas pararem de plantar e de consumir tais alimentos, não sabemos se a terra preta ainda se formará do mesmo jeito.”
Os achados do grupo refutam a interpretação de que a formação da terra preta pelas comunidades locais viria do acúmulo de descarte orgânico, mas de modo não intencional. Os pesquisadores realizaram entrevistas com moradores, observaram o cotidiano das aldeias e os viram depositar resíduos de peixe e mandioca em lixeiras que chegavam a 60 centímetros de altura. “A maior parte da terra preta se forma em áreas de descarte, como se fosse uma compostagem”, conta Watling. “Eles misturam a matéria orgânica com cinza e carvão para formar uma terra fértil e espalhar nas áreas de cultivo.”
A equipe coletou mais de 3.600 amostras de solo de quatro sítios arqueológicos, duas aldeias históricas, uma aldeia moderna no Alto Xingu chamada Kuikuro II e algumas amostras do Alto Tapajós e da serra dos Carajás. As análises revelaram que as amostras mais antigas têm mais de 5 mil anos.
A datação das terras pretas é uma das principais controvérsias dos últimos estudos feitos com esse tipo de solo. Em 2021, um artigo na revista Nature Communications questionou a origem antrópica das terras pretas. “Pela análise elemental, a data não casa com a presença do ser humano na Amazônia”, afirma o engenheiro-agrônomo e ambiental Rodrigo Studart Corrêa, especialista na recuperação de solos e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB). De acordo com o estudo de Corrêa, o cultivo de terras na Amazônia data de menos de 4.500 anos atrás, mas há controvérsias: indícios arqueológicos de presença humana na região há 9 mil anos, com práticas de cultivo.
Para o grupo, a terra preta estudada tem origem a partir de sedimentos da cordilheira dos Andes. “Esse material é meandro de rio”, afirma Corrêa. Segundo ele, com base na análise de isótopos de estrôncio e outros elementos químicos, parte da composição das amostras não vem de matéria orgânica. “O grande mistério são fragmentos de cerâmica nessas terras, mas isso pode indicar que elas eram usadas para enterrar os mortos, talvez por serem mais fáceis de escavar”, especula.
Schmidt reitera que seu estudo com povos atuais mostrou a produção e o uso atuais desse material. “Os xinguanos [povos do Xingu] procuram terra preta antiga para cultivar e plantam diretamente nas lixeiras.”
Artigos científicos
SCHMIDT, M. J. et al. Intentional creation of carbon-rich dark earth soils in the Amazon. Science Advances. On-line. 20 set. 2023.
SILVA, L. C. R. et al. A new hypothesis for the origin of Amazonian Dark Earths. Nature Communications. 4 jan. 2021.