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Obituário

Morre Luiz Pinguelli Rosa, físico especialista em energia

O pesquisador foi um dos principais formuladores de projetos para a autonomia energética brasileira

Em 2008, durante palestra sobre a matriz energética brasileira e a mudança do clima, como parte da série Café Filosófico, da CPFL/Cultura

Rodrigo Cancela /Wikimedia Commons

A capacidade crítica, o rigor científico e a independência de pensamento que movia o engajamento político são as principais marcas da trajetória do físico nuclear Luiz Pinguelli Rosa, morto no Rio de Janeiro aos 80 anos, na quinta-feira (3/3). Professor emérito do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ) e ex-presidente da Eletrobras, estava internado em decorrência de complicações da Covid-19. Deixa três filhos e dois netos.

Foi um cientista pioneiro na adoção de uma abordagem interdisciplinar nos estudos de planejamento energético. Sua atuação profissional é inextricável de sua visão sobre os modelos do desenvolvimento brasileiro, destinando especial atenção à superação das desigualdades e à mitigação dos impactos ambientais gerados pelo crescimento econômico.

Natural do Rio de Janeiro, Pinguelli graduou-se em física pela UFRJ em 1967, após dedicar um breve período da juventude à carreira militar – da qual desistiu após ser preso por criticar o golpe de 1964. Fez o mestrado em engenharia nuclear também na UFRJ e o doutorado em física na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

Nunca distante das questões políticas e sociais, Pinguelli foi uma das principais figuras da ciência brasileira que projetaram a obtenção da autonomia energética do país. O grande desafio encarado pelo físico foi o de organizar o sistema elétrico brasileiro para sustentar o crescimento econômico com o menor impacto ambiental possível, procurando também minimizar os custos da geração e da transmissão da energia. O físico Sergio Rezende, da Universidade Federal de Pernambuco, conta que Pinguelli “percebeu muito cedo a importância de o Brasil ter uma matriz energética mais diversificada, com participação das energias eólica, solar e nuclear”. Rezende, que foi ministro da Ciência e Tecnologia, ressalta a importância de Pinguelli em coordenar, durante o período em que ocupou a presidência da Eletrobras, estudos e projetos para a diversificação da produção de energia no Brasil para décadas adiante, dando início à expansão da energia eólica no país.

O engenheiro Ildo Sauer, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP), afirma que Pinguelli sempre procurou “valorizar a singularidade do sistema brasileiro, com vastos recursos hidrológicos, em detrimento das usinas termelétricas, caras e poluentes, que não garantem a estabilidade do sistema”. Sauer, que contou com a orientação de Pinguelli no mestrado, defendido em 1980, avalia que uma das maiores contribuições do físico foi “aplicar o rigor científico à compreensão do sistema energético, ao mesmo tempo que entendia os avanços da ciência como fundamentais para o crescimento econômico e para a superação dos desequilíbrios e das assimetrias da sociedade brasileira”.

À medida que pressionava por políticas públicas que buscassem a autonomia energética nacional, Pinguelli defendia que o caminho a ser trilhado fosse o de diminuir a dependência externa do país na obtenção das tecnologias de geração de energia. Foi nesse sentido a sua atuação crítica à decisão do regime militar (1964-1985) de incluir a energia nuclear na matriz energética do Brasil por meio da compra de uma usina pronta, da empresa norte-americana Westinghouse, sem acesso ao conhecimento tecnocientífico envolvido na fabricação do reator. Pinguelli também foi uma das vozes críticas ao Acordo Nuclear Brasil-Alemanha (1975), um programa de transferência tecnológica entre os dois países que consistiu na “compra de reatores nucleares sem uma devida avaliação da possibilidade de desenvolver a competência nacional nessa área”, como define o físico Ennio Candotti, à época professor na UFRJ e hoje diretor do Museu da Amazônia (Musa), em Manaus. Além de questionar o quão efetiva seria a transferência de tecnologia celebrada no acordo, Pinguelli também criticava os custos previstos das usinas e a tecnologia escolhida para o enriquecimento de urânio. “Foi uma iniciativa da ditadura sem nenhum diálogo com a comunidade científica”, acrescenta Rezende. A aquisição da Westinghouse deu origem à usina nuclear Angra 1, que entrou em operação comercial em 1985 em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. O acordo com a Alemanha previa a construção de oito novas usinas, com crescente incorporação de tecnologia nacional. Mas apenas Angra 2 foi concluída, começando a operar em 2001. Angra 3 está em construção.

No final do século passado, os avanços da ciência sobre a mudança do clima causada pela emissão de gases estufa acrescentaram mais uma dimensão de complexidade à questão do desenvolvimento econômico brasileiro. Pinguelli respondeu a isso procurando compreender os impactos ambientais e climáticos de diferentes formas de produção de energia. O engenheiro Maurício Tolmasquim, do Coppe, também especialista em energia, cita como outra contribuição relevante do físico os estudos sobre emissões de metano pelas usinas hidrelétricas. Pinguelli fez parte do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e ocupou o cargo de secretário-executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, ajudando a coordenar esforços para desenvolver fontes de energia renováveis.

A interdisciplinaridade, fundamental nas ciências do clima, foi uma marca da atuação acadêmica de Pinguelli, que criou a área de pesquisa em planejamento energético no Coppe, na qual concorrem conhecimentos das engenharias, da física, da economia e da sociologia. Seus estudos para o campo do planejamento energético o levaram à presidência da Eletrobras, cargo que ocupou entre janeiro de 2003 e maio de 2004. No Coppe, foi eleito diretor cinco vezes entre 1986 e 2015.

Já na fase mais madura da carreira, Pinguelli dedicou-se à história da ciência – foi professor do Programa de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ. Nessa universidade ajudou a fortalecer, nos anos 1990, o Fórum de Ciência e Cultura, que com isso se tornou mais influente e próximo da sociedade e hoje é coordenado pela matemática e historiadora Tatiana Roque. É autor do livro Tecnociências e humanidades (Paz e Terra, 2005), em dois volumes, que se tornou referência nesse campo eminentemente transdisciplinar.

Como Roque esclarece, mais do que para a pesquisa, a atuação de Pinguelli nessa área foi voltada para a formação de pesquisadores, incluindo ela própria, encorajada pelo físico a dedicar-se à história da matemática no doutorado. Orientou dezenas de alunos de mestrado e doutorado e foi professor e pesquisador visitante em universidades e instituições de pesquisa dos Estados Unidos, da França, da Polônia, da Itália e da Argentina.

Candotti, que acompanhou de perto a carreira do colega, diz que Pinguelli não se contentou em fazer ciência pela ciência. “Ele se dedicou a legar à física uma dimensão maior, como parte do desafio de dar ao país uma capacidade de desenvolvimento justo, com respeito aos direitos humanos”, afirma. Para Rezende, o legado de Pinguelli teve muitas faces: “Além de ter dado muitas contribuições científicas para área de energia, ele também atuou como gestor e como líder do movimento docente pelo fortalecimento das universidades públicas”.

Os pesquisadores consultados são unânimes ao descrever o físico como um cientista e intelectual muito pouco dogmático. “Ele não aceitava verdades prontas, tinha um espírito contestador”, lembra Tolmasquim. “Mesmo com toda a experiência que tinha, ele ouvia as pessoas e muitas vezes incorporava o que ouvia ao seu pensamento”, diz Roque. Sauer sublinha a fidelidade de Pinguelli ao rigor científico ao mesmo tempo que “sempre foi um pensador independente e questionador”. E Candotti ressalta que Pinguelli “era um dissidente, uma figura de resistência, que trabalhou para criar uma universidade melhor num mundo democrático”.

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.

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