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Epidemiologia

Mortalidade por câncer de mama e de colo do útero volta a subir no estado de São Paulo

Números passaram a aumentar a partir de 2016, depois de mais de uma década em queda

A quantidade de mamografias realizadas em São Paulo caiu durante a pandemia

Reprodução

Nos computadores da unidade de Informação e Epidemiologia da Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp), dois gráficos são vistos com estranhamento e apreensão. Eles indicam um aumento, no estado de São Paulo, das taxas de mortalidade por câncer de mama e de colo do útero (também chamado de câncer cervical) a partir de meados da década passada. É a primeira vez, desde o início dos anos 2000, que esses números apresentam tendência de alta.

Os óbitos por esses dois tipos de tumores sofreram queda consistente até 2008. Em seguida, houve um período de redução menos intensa no caso de câncer de colo do útero e de estabilidade no de mama. Até que, em 2016, as mortes voltaram a aumentar. Em 2019, último ano com dados analisados, a cada 100 mil mulheres, houve 3,2 mortes por câncer cervical e 13,8 por câncer de mama no estado de São Paulo. Em seu melhor momento, as taxas de letalidade desses dois tipos de tumores foram de 2,8 e 13 mortes por 100 mil mulheres, respectivamente.

“São Paulo é o primeiro estado brasileiro a apresentar inversão de tendência na mortalidade por câncer de colo do útero”, diz a epidemiologista Carolina Luizaga, da Fosp, órgão de apoio para as políticas de câncer da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo que registra os casos da doença, faz pesquisas e auxilia na formação de mão de obra especializada na área. Luizaga concluiu recentemente um estudo, em vias de publicação, sobre a evolução dessa doença na região Sudeste. No trabalho, chama a atenção o aumento do risco de morte por esse tipo de tumor na faixa etária das mulheres mais jovens, de 25 a 39 anos. Dados preliminares sobre o câncer de mama, também no Sudeste, sinalizam igualmente um aumento de 1,48% em sua letalidade a cada ano, entre 2015 e 2019.

Entrevista: Carolina Luizaga
00:00 / 16:10

No Brasil, o câncer de mama é o que mais acomete e mais mata mulheres. O de colo do útero é o terceiro em incidência e o quarto em óbitos na população feminina do país. Neste ano, segundo estimativas do Instituto Nacional do Câncer (Inca), deverá haver 66 mil novos casos de câncer de mama (quase 30% do total de diagnósticos de tumores em mulheres) e cerca de 17 mil mortes (16,5% dos óbitos femininos por neoplasias). As taxas de incidência e mortalidade do câncer de colo do útero equivalem, respectivamente, a aproximadamente um quarto e um terço dos números associados aos tumores de mama.

Os fatores que modificaram o quadro epidemiológico desses dois tipos de câncer feminino em São Paulo ainda precisam ser mais bem estudados. Por ora, há algumas hipóteses que tentam explicar o fenômeno, também verificado recentemente em países desenvolvidos. Segundo Luizaga, o aumento da mortalidade por câncer cervical entre mulheres mais jovens pode estar relacionado a mudanças em seu comportamento sexual. Elas estariam se infectando com maior frequência pelo papilomavírus humano (HPV), que pode ser transmitido durante o ato sexual – a presença do HPV eleva a incidência de câncer cervical –, embora seja possível prevenir o problema. Hoje, há vacina disponível na rede pública contra esse vírus destinado a meninos e meninas de 9 a 14 anos. “Além disso, as mulheres mais jovens estão integradas à população economicamente ativa, trabalham e tem menos tempo livre. Isso pode dificultar a adesão ao rastreamento”, diz a epidemiologista.

Rastreamento é a palavra-chave na avaliação do médico sanitarista Victor Wünsch Filho, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e diretor-presidente da Fosp. Para ele, a tendência de aumento nas curvas de mortalidade resultaria de falhas nas atuais práticas de rastreamento e diagnóstico precoce, ou seja, nos procedimentos que possibilitam a descoberta de lesões pré-cancerígenas e da doença em estágio inicial. “A estrutura precisa ser alterada. É necessário implementar um rastreamento organizado de base populacional”, defende o sanitarista, que acaba de iniciar um projeto sobre o controle do câncer no estado de São Paulo no âmbito da iniciativa Centros de Ciência para o Desenvolvimento, criada neste ano pela FAPESP.

Alexandre Affonso

Wünsch explica que o rastreamento predominante do país é o denominado oportunístico, que ocorre quando a mulher procura uma unidade de saúde para qualquer tipo de consulta e aproveita a oportunidade para fazer exames ginecológicos preventivos. O número desses procedimentos tem diminuído. “Entre 2009 e 2020 foram observadas quedas nos percentuais de cobertura dos testes de citologia, também chamados de exames de papanicolau, sobretudo entre as mulheres mais jovens”, comenta o médico. O papanicolau se destina a identificar o aparecimento precoce de lesões no colo do útero.

O diretor da Fosp preconiza que o estado de São Paulo implemente um rastreio organizado, com busca ativa das mulheres na faixa etária-alvo para a realização dos exames e acompanhamento dos resultados. “Hoje não temos esse monitoramento. É preciso garantir que as mulheres do público-alvo façam os testes e, depois, as que tiverem resultados alterados sigam dentro da linha de cuidados. Já se verificou que 35% das mulheres são ‘perdidas’ no sistema”, alerta o diretor.

Um estudo publicado no ano passado na revista Cancer Epidemiology analisou os registros de 4.300 mulheres com mais de 25 anos do estado de São Paulo que foram examinadas em 2010 e tiveram uma lesão de alto grau, precursora de câncer cervical, constatada pelo teste de citologia. Segundo o trabalho, aproximadamente uma em cada três pacientes que receberam esse diagnóstico não apareceu para fazer uma investigação complementar nos três anos seguintes ao exame. “Muitas vezes as unidades básicas de saúde não conseguem acompanhar os casos alterados para a realização de exames complementares e tratamento”, avalia a gerente da área técnica da Fosp, Lise Baltar Cury, uma das autoras do estudo.

Outro dado alarmante da pesquisa foi o tempo médio gasto entre a suspeita (durante o rastreamento) e a confirmação do diagnóstico: 190 dias. Essa é a média geral do estado de São Paulo, com variações locais: 198 dias na capital, 274 na Região Metropolitana (excluindo-se a capital) e 149 dias no interior. O tempo médio entre a confirmação do diagnóstico e o início do tratamento foi de 81 dias no estado de São Paulo. Na capital, esse número foi de 98 dias, 103 na Região Metropolitana e 57 dias no interior. Nesse cenário, apenas o atendimento no interior de São Paulo foi compatível com a Lei Federal nº 12.732/2012, também conhecida como “Lei dos 60 dias”, segundo a qual todas as pessoas diagnosticadas com câncer devem receber o primeiro tratamento em até 60 dias após o diagnóstico confirmado.

A demora no início do tratamento oncológico não ocorre apenas em países pobres ou de renda média. Segundo um estudo coordenado pelo mastologista César Cabello, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), o problema também se verifica no sistema de saúde dos Estados Unidos. Em artigo publicado no início deste ano na revista científica Oncologist, ele comparou o atendimento a pacientes com câncer de mama em três hospitais públicos de São Paulo e Rio de Janeiro e dois do estado norte-americano do Texas. O tempo médio decorrido entre o diagnóstico e o primeiro tratamento foi muito próximo nos dois países: 9,9 semanas no eixo Rio-São Paulo e 9,4 semanas no Texas. Foram investigados dados de 1.191 mulheres (963 do Brasil e 228 dos Estados Unidos) diagnosticadas entre 2009 e 2011.

A chave para a compreensão desse fenômeno parece estar na desorganização dos sistemas de saúde públicos, que gera atrasos no rastreio, diagnóstico e início de tratamento. “Nos Estados Unidos, o rastreamento organizado está vinculado aos planos de saúde, não existe na saúde pública”, explica Cabello. “Por isso, as pacientes de menor nível socioeconômico, que não podem pagar seguro e se utilizam dos hospitais da rede pública norte-americana, podem ter atrasos semelhantes aos enfrentados pelas brasileiras.”

Eter Dazeley / Getty ImagesColheita do exame de papanicolauEter Dazeley / Getty Images

O impacto da pandemia
A sobrecarga dos serviços públicos de saúde e as medidas de isolamento social provocadas pela pandemia de Covid-19 dificultaram o controle e o combate do câncer. Mensurar esse impacto no diagnóstico dos principais tumores que acometem as mulheres foi o objetivo de um estudo realizado na Unicamp e na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Os pesquisadores analisaram a quantidade de mamografias, conizações (biópsias de colo uterino) e exames de papanicolau realizados no estado de São Paulo entre janeiro de 2017 e novembro de 2021. Durante a pandemia, foram realizados cerca de 1,9 milhão a menos de exames e procedimentos do que o previsto e houve uma redução de 25% na taxa de início de tratamento de câncer de mama em estágios iniciais.

Em relação ao câncer cervical, surgiu também um dado preocupante: foram diagnosticados 156 casos a mais, na comparação com a média do período pré-pandemia, de pacientes em estágio avançado da doença, com poucas chances de cura, imediatamente indicados para o setor de cuidados paliativos. “O impacto do atraso do rastreamento é percebido em prazo maior, mas os danos no atraso do diagnóstico são imediatos”, alerta o oncologista José Barreto Carvalheira, da Unicamp, um dos autores do estudo.

A Fundação Oncocentro é o maior laboratório público especializado em câncer do país. Presta serviços para 546 unidades de saúde de 56 municípios. Na Fosp, também é evidente o impacto da pandemia sobre a quantidade de exames realizados, mas já se sente uma melhora do quadro. “Em 2019, por exemplo, realizamos 246 mil citologias para rastreamento do câncer cervical. No auge da pandemia, em 2020, esse número caiu para 130 mil. Devemos fechar o ano de 2022 com a realização de cerca de 200 mil exames citológicos. Está ocorrendo uma lenta recuperação”, destaca o médico patologista Alexandre Ab’Saber, diretor técnico-científico da Fosp.

José Carvalheira estima que os países que têm rastreamento organizado voltarão à normalidade muito mais rapidamente. Ele cita como exemplo a Inglaterra: “Lá os pacientes recebem carta em casa convocando para a realização dos exames; aqui, os exames são esporádicos”, compara. Antes da pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tinha como metas globais até 2030 reduzir as taxas de mortalidade de câncer cervical e de mama em 30% e 25%, respectivamente. Com a eclosão da Covid-19, os objetivos se tornaram mais difíceis de ser atingidos.

Projeto
Controle do câncer no estado de São Paulo (ConeCta-SP): Do conhecimento à ação (nº 21/11794-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Centros de Ciência para o Desenvolvimento; Pesquisador responsável Victor Wünsch Filho (Fosp); Investimento R$ 1.299.390,51.

Artigos científicos
RIBEIRO, C. M. et al. Follow-up of women screened for cervical cancer in São Paulo, Brazil: An analysis of the times to diagnostic investigation and treatment. Cancer Epidemiology. 24 abr. 2021.
SHAFAEE, M. N. et al. Breast cancer treatment delay in SafetyNet Health Systems, Houston versus Southeast Brazil. Oncologist. 28 mar. 2022.

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