As más notícias começaram a chegar no Natal: no dia 25 de dezembro morreu, aos 80 anos, em consequência de um câncer pancreático, o biólogo norte-americano Thomas Lovejoy, que se dedicou a estudar a Amazônia e a defender a preservação da diversidade biológica. O termo foi cunhado por ele em colaboração com o conterrâneo Edward O. Wilson, também biólogo e morto no dia seguinte aos 92 anos, por uma perfuração no pulmão.
“Eu me lembro, devia ser 1975 ou 1976, da primeira vez que encontrei Ed Wilson”, contou Lovejoy, que era da Universidade George Mason, nos Estados Unidos, em entrevista a Pesquisa FAPESP em 2015. “Almoçamos juntos e falamos sobre diversidade biológica, mas não tínhamos o termo. Discutimos onde o Fundo para a Natureza [WWF] deveria se concentrar e concordamos que deveria ser nos trópicos, porque há mais espécies lá do que no Alasca, por exemplo. Era biodiversidade pura. Eu usei o termo em 1980, Ed Wilson usou mais para o fim do ano e depois muitas outras pessoas começaram a usar.”
Lovejoy conheceu a Amazônia em 1965, no doutorado, uma relação que duraria o resto da vida. “Era como se eu tivesse morrido e chegado ao Paraíso. Era fascinante, e aos poucos passei de simplesmente fazer ciência a fazer ciência e conservação ambiental”, disse, na mesma entrevista. Na segunda metade dos anos 1970 ele propôs ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) um projeto de longo prazo. O climatologista Carlos Nobre, à época no Inpa como engenheiro eletrônico recém-formado, foi testemunha. “Tom teve a brilhante ideia de acompanhar o efeito do desmatamento que os fazendeiros estavam prestes a iniciar em consequência da construção da BR-174”, lembra, referindo-se à rodovia que liga Manaus a Boa Vista, em Roraima. “Ele queria saber qual era a área necessária para manter a biodiversidade.” Depois batizada como Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF), a iniciativa mostrou que um fragmento de 100 hectares não é suficiente para manter uma onça e perde a metade das espécies de aves em menos de 15 anos – os efeitos da degradação tornam a floresta incapaz de sustentar esses animais. Esse conhecimento norteou a criação de parques nacionais na região, que precisam ser muito grandes.
Poucos cientistas tinham interesse na Amazônia, era necessário trazer gente de outros estados e mesmo do exterior. À época estudante de biologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rita Mesquita soube do PDBFF em um congresso de zoologia no qual trabalhava como voluntária. O ornitólogo norte-americano Richard (Rob) Bierregaard, primeiro coordenador do projeto, tentava atrair pesquisadores e entregou um cartão de visita à jovem curiosa. Quando escreveu se mostrando interessada, Mesquita recebeu como resposta uma passagem aérea para Manaus. Ela embarcou no dia seguinte à formatura e, um dia depois, já estava dormindo na floresta em uma rede cedida por um mateiro, pronta para aprender a subir em árvores amazônicas e pôr anilhas em aves. “Tom teve essa visão de oferecer oportunidade para pessoas como eu, uma estudante treinada no Cerrado de Minas Gerais”, reflete. “Esse é um legado que ele deixa.”
O biólogo norte-americano Mario Cohn-Haft foi um dos recrutados no exterior e chegou em 1987 ao Inpa – onde hoje é pesquisador – também como estagiário recém-formado. “No começo, Lovejoy era o chefe que morava nos Estados Unidos e aparecia de vez em quando”, conta. Ao longo dos anos, a relação se transformou em amizade e motivação. “Ele inspirava as pessoas a focarem na busca do entendimento de como as coisas funcionam e a fazer um mundo melhor.” Segundo ele, o cenário da pesquisa no Amazonas mudou completamente e hoje é um berço de cientistas, em grande parte graças ao PDBFF. Lovejoy planejou sua ausência criando o Centro de Biodiversidade da Amazônia, uma organização não governamental sediada nos Estados Unidos com a missão de captar recursos e manter o projeto em andamento.
Outros grandes projetos colaboraram com o PDBFF, como o Experimento Anglo-brasileiro de Observações Climáticas Amazônicas, que instalou em 1990 nas mesmas áreas duas torres – uma dentro da floresta e outra em área de pastagem – que ultrapassam a altura do dossel para fazer observações e coletar dados ambientais, meteorológicos e de interação entre a biosfera e a atmosfera. Essas medidas deram origem ao Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA) a partir de 1999. “Foi possível unir o conhecimento sobre as espécies de plantas, obtido pelo PDBFF com projeções de mudanças climáticas e pensar o que deveria ser feito para preservar a floresta Amazônica”, conta Carlos Nobre, coordenador inicial dos dois projetos, à época no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Ele e Lovejoy escreveram dois editoriais para a revista Science Advances, em 2018 e 2019, alertando para o ponto de não retorno da Amazônia, que poderia ser atingido entre 20% e 25% de desmatamento (as previsões até então toleravam até 40% da floresta retirada), e buscando soluções.
Com a visão de que o conhecimento científico e os recursos humanos não são suficientes para preservar a Amazônia, Lovejoy se envolveu ativamente na política ambiental. Ele integrava o comitê estratégico do Painel Científico para a Amazônia, copresidido por Nobre, que lançou um detalhado relatório na mais recente conferência do clima, a COP26, na Escócia, no ano passado. “Tom fez um belíssimo trabalho, contávamos com ele para a continuidade”, lamenta o climatologista.
O botânico Carlos Alfredo Joly, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), conheceu o norte-americano quando em 1990 foi a uma reunião da principal sociedade científica dos Estados Unidos – AAAS – apresentar o capítulo ambiental da então nova Constituição brasileira. Depois disso os dois pesquisadores mantiveram uma parceria, como nas discussões para a elaboração da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), no âmbito da Conferência Rio-92. “Quando criamos na FAPESP o programa Biota, em 1999, Lovejoy fez uma fala por vídeo desejando sucesso e continuidade no médio e longo prazo”, lembra. Participações remotas não eram um feito trivial naquele tempo.
Eles ainda trabalharam juntos na construção da Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services (IPBES), uma iniciativa internacional sobre biodiversidade, e no Post 2020 Biodiversity Framework, documento a ser aprovado na 15ª Conferência das Partes (COP) da CDB, reunião que, adiada por causa da pandemia, aconteceu parcialmente em 2021 e terá sua segunda parte em março. “Tom já estava abatido, mas contribuiu muito”, conta Joly. “Fará muita falta na negociação da nova estratégia para biodiversidade, com metas para 2030 e 2050.”
Edward Wilson, que era aposentado pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, teve impacto político no tema da conservação, principalmente por meio de sua obra de divulgação, na qual defendeu a conservação da natureza e construiu um pensamento que conclamou a junção entre ciências naturais e humanas (consiliência), e até a religião, na defesa da biodiversidade.
Desde criança ele se encantou pelo mundo em miniatura das formigas, que podia olhar de perto (necessidade decorrente de um problema de visão causado por um acidente com anzol), e tornou-se um dos maiores especialistas nas sociedades construídas por elas. De acordo com Cohn-Haft, Lovejoy contava que uma vez, andando com Wilson em uma das parcelas do PDBFF, o amigo encontrara uma espécie nova de formiga andando em sua roupa. Entre as informações na etiqueta feita por Wilson para o espécime, constaria “hábitat: Lovejoy”. A veracidade da história não é fácil de comprovar, sem a possibilidade de perguntar a um dos dois, mas talvez seja essa a espécie batizada como Pheidole lovejoyi.
Com um enorme talento para sínteses, Wilson foi além das formigas e construiu o campo que ficou conhecido como sociobiologia e causou polêmica ao incluir o ser humano entre os animais cujo comportamento está sujeito a pressões evolutivas. Essa percepção tornou-se a base para a área da ciência que depois ganhou o nome de ecologia comportamental. “A primeira vez que dei o curso sobre animais sociais foi logo em seguida à publicação do Sociobiologia”, conta a zoóloga Vera Imperatriz Fonseca, da USP, referindo-se ao livro de 1975. “Estudamos os mecanismos ecossociais, era muito difícil e teve grande impacto.”
“Foi uma revolução na minha vida”, conta o zoólogo Carlos Roberto Brandão, curador da coleção de formigas do Museu de Zoologia da USP (MZ-USP), um dos estudantes da turma. Ele ficou impressionado a ponto de escrever a Wilson, que o estimulou a estudar formigas e a passar um período em Harvard. Brandão foi, e lá passou seis meses que deram forma ao resto de sua carreira. A primeira instrução que recebeu: chamar o professor de Ed, e não dr. Wilson. Nas câmaras climatizadas que simulavam um ambiente desértico e outro tropical, onde vivia uma diversidade de espécies de formigas, o brasileiro aprendeu a manejar colônias, a observar e a interpretar seus comportamentos. “Todos os dias Wilson recebia gente do mundo inteiro”, conta. Mais tarde o norte-americano esteve em São Paulo, trabalhando na coleção do MZ-USP, e foi recebido por Brandão, que também teve uma espécie de Pheidole batizada em sua homenagem.
O biólogo Marcos Buckeridge, da USP, também ressalta a influência de Wilson entre pesquisadores e estudantes e destaca um paralelo entre os dois pioneiros da biodiversidade. “Nesta era dos especialistas, é fundamental quando pesquisadores trazem a ciência para a esfera política”, afirma ele. “Tanto Lovejoy quanto Wilson fizeram isso, cada um à sua maneira.”
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