Avanço nas matrículas aponta para maior inclusão na educação, mas políticas institucionais e práticas pedagógicas precisam ser aprimoradas
Fabio Passos
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Divulgados em 2022, os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que pessoas com deficiência somavam 17,2 milhões em 2019, ou 8,4% da população do país. Marcadas por disparidades de escolarização, elas enfrentam mais dificuldades para acessar o mercado de trabalho e dispõem de renda mais baixa, se comparadas com pessoas sem deficiência (ver gráfico). Recentemente, no entanto, a situação começou a mudar, especialmente em relação ao acesso à educação básica e superior. A mudança é reflexo da aprovação, em 2006, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) e da entrada em vigor, em 2015, da Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Além de estimular a abertura de novas frentes de pesquisa, esse movimento tem trazido desafios para instituições de ensino, que precisam repensar suas políticas e práticas pedagógicas, elaborando estratégias de acessibilidade adequadas aos diferentes tipos de deficiência.
Na educação superior, estudantes com deficiência foram os últimos contemplados por uma lei de cotas. A reserva de vagas para alunos com esse perfil em instituições federais se tornou obrigatória com a Lei nº 13.409, seis anos depois de promulgada a Lei nº 12.711, que a partir de 2012 estabeleceu reserva de vagas para estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas provenientes de escolas públicas (ver Pesquisa FAPESP nº 308). As cotas para jovens com deficiência têm viabilizado a expansão de sua presença no ensino superior federal. A quantidade de alunos com algum tipo de deficiência saltou de 31,2 mil, em 2014, para 55,8 mil, em 2018, um crescimento de 78,8 pontos percentuais, conforme o último levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), publicado em 2019. Em valores absolutos, o número de estudantes cegos, por exemplo, mais que triplicou: eram 177 em 2014 e, em 2018, passaram a ser 616.
De acordo com a LBI e a Convenção da ONU, que foi incorporada à legislação brasileira por meio de duas emendas constitucionais, pessoas com deficiência “são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. O jurista Emerson Damasceno, presidente da comissão de autismo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), explica que, no país, as duas normativas são as principais fontes de diretrizes para o atendimento de pessoas com deficiência em sistemas de saúde e educação. Além delas, o Estado brasileiro conta com legislação específica para cada deficiência, caso da Lei nº 14.127, que desde 2021 trata dos direitos de pessoas com visão monocular.
Rodrigo Cunha
“Nossa legislação tem um viés moderno e inclusivo. Hoje, o grande desafio é conseguir efetivar esses direitos”, detalha o jurista. Segundo ele, alguns artigos da LBI aguardam regulamentação, o que tem dificultado sua aplicação. Caso do artigo 2°, que prevê a possibilidade de pessoas com deficiência serem avaliadas conforme o chamado modelo biopsicossocial. “Esse modelo considera impedimentos em funções e estruturas do corpo, além de fatores socioambientais, pessoais e restrições na capacidade de participar da sociedade, para definir se uma pessoa tem deficiência e medir seu grau de comprometimento”, explica Damasceno. De acordo com ele, a regulamentação desse artigo da LBI é fundamental, entre outros motivos, para orientar instituições em tópicos como o de reconhecimento de servidores com deficiência, reserva de vagas em concursos públicos e de cotas no ensino superior. “O modelo biopsicossocial considera o laudo médico e também avalia o quanto a deficiência compromete a participação da pessoa na sociedade”, esclarece o jurista, que se tornou pessoa com deficiência física em 2014, depois de ser atropelado. Como exemplo, o jurista cita o caso de uma aluna neurodivergente – termo que se refere a quem tem um desenvolvimento ou funcionamento neurológico diferente do padrão esperado pela sociedade – que pleiteava uma vaga de cotas em uma instituição mineira de ensino superior. A comissão de avaliação considerou que sua neurodivergência era mínima e, por isso, ela não enfrentava barreiras que a colocassem em patamar de desigualdade com a ampla concorrência, de forma que a vaga foi concedida a outro candidato, com impedimentos mais complexos. “Uma pessoa sem um dedo da mão pode sofrer preconceito, mas as barreiras para se integrar à sociedade são maiores para quem tem lesão medular”, compara, defendendo que a regulamentação da LBI é assunto de interesse de toda a sociedade brasileira.
Avanço da ciência baliza legislação A conceituação da deficiência é um campo em disputa até os dias de hoje. Até meados do século XVIII, predominavam concepções pré-científicas, com um olhar majoritariamente supersticioso ou de caridade, envolvendo culpa ou castigo divino. No século XIX, a ciência médica passou a compreendê-la como patologia. “A ciência via a deficiência como um impedimento corporal, físico e social, situando-a no sujeito e fazendo com que políticas públicas focassem na busca pela reabilitação”, explica a psicóloga Marivete Gesser, coordenadora do Núcleo de Estudos da Deficiência da UFSC. A partir da década de 1960, com os aportes das ciências humanas e sociais, emergiu outro modelo, que compreende que o principal problema enfrentado pelas pessoas com deficiência são as barreiras impostas pela sociedade. “Essa vertente propiciou um salto à produção científica, ao tirar a deficiência de um enfoque individual e patológico e posicioná-la como algo que seria neutro, caso as barreiras sociais fossem suprimidas”, descreve Gesser.
Fabio Passos
Em artigo publicado em 2022, a antropóloga Anahí Guedes de Mello, também da UFSC, detalha que, na década de 1990, a crítica feminista e teorias de estudos do cuidado ajudaram a ampliar o alcance do modelo social da deficiência, o que, mais tarde, permitiu consolidar o modelo biopsicossocial. Influenciado pelas demandas de movimentos de pessoas com deficiência, esse modelo surgiu como uma proposta da Organização Mundial da Saúde (OMS) e foi incorporado pela LBI em 2015. Uma das referências nesse debate é a filósofa Eva Feder Kittay, da Universidade Stony Brook, em Nova York, nos Estados Unidos, que desenvolve trabalhos pioneiros para discutir questões de cuidado e deficiência, especialmente cognitiva, no âmbito da filosofia. Kittay é mãe de uma mulher com deficiência cognitiva. Diagnosticada com surdez na infância, Mello analisa, em seu texto, que a avaliação biopsicossocial da deficiência constitui um avanço por contemplar a interação entre a biologia e o contexto social e entre fatores individuais e ambientais. Conforme a pesquisadora, os estudos culturais e, em especial, os estudos queer, abriram caminho para uma nova linha de reflexão, conhecida como teoria crip, traduzida para o português como teoria aleijada. “A teoria aleijada questiona os processos de naturalização do corpo ‘capacitado’ e oferece um modelo cultural da deficiência, rejeitando a ideia de que não ter uma deficiência seja um estado natural de todo ser humano. O capacitismo impede a consideração de que é possível andar sem ter pernas, ouvir com os olhos, enxergar com os ouvidos e pensar com cada centímetro de pele”, escreve a antropóloga. O termo capacitismo foi cunhado entre os anos 1960 e 1970 e se disseminou no Brasil a partir de 2011, por meio do trabalho de pesquisadores como Mello.
Em investigação fundamentada nos estudos feministas sobre deficiência, a partir dessas novas vertentes de reflexão, a psicóloga Karla Garcia Luiz pesquisa, em seu doutorado na UFSC, a vida de mulheres com dependência de alta complexidade. “Analiso a experiência dessas mulheres por meio do conceito de dependência complexa, que inclui cuidados fisiológicos, mas também outros, que permitem o acesso à cultura, ao trabalho e à educação. O conceito de alta complexidade é ligado a um sentido mais amplo de manutenção da vida”, detalha Luiz, que nasceu com artrogripose congênita múltipla e sofre com contraturas articulares. Mãe de uma bebê de 1 ano, um dos pontos da investigação científica da psicóloga envolve a forma como as mulheres com deficiência experimentam a sexualidade e acessam direitos reprodutivos. “Ancorados na sociologia do trabalho, há muitos estudos sobre os cuidadores de pessoas com deficiência, mas poucos sobre as pessoas que, como eu, são cuidadas. Nossa vida é uma eterna negociação com nossos cuidadores e familiares. Com a tese, procuro mostrar essas perspectivas invisibilizadas”, conta Luiz.
Pesquisador do movimento social da deficiência no Brasil, o enfermeiro Raul de Paiva Santos trabalha com uma área nova, envolvendo o fenômeno de pessoas com deficiência que viraram influenciadores e ativistas em redes sociais, especialmente durante a pandemia. Santos tornou-se pessoa com deficiência física na infância, passando anos em tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Aluno da graduação na Universidade do Vale do Sapucaí entre 2009 e 2012, ele recorda que a instituição não tinha políticas afirmativas, naquela época. “A universidade questionava se eu seria capaz de fazer os estágios e me formar. Também dizia que eu não deveria cuidar, mas, sim, ser cuidado”, relembra. Depois de formado, ele percebeu que nunca tinha visto um profissional como ele, que utiliza muletas, trabalhando na enfermagem. “Nessa época, comecei a enfrentar barreiras que, anos mais tarde, pesquisadoras da área de humanidades no Brasil denominaram capacitismo”, relembra. “Quando, em 2019, ingressei no doutorado na USP, a única preocupação da universidade era garantir minha acessibilidade física ao campus. Eu tinha o telefone de um segurança que me levava e buscava dos lugares”, recorda. “Por outro lado, conheci referenciais teóricos da antropologia e passei a assumir minha identidade com orgulho. As leituras na universidade ampliaram meus horizontes”, afirma o enfermeiro.
Rodrigo Cunha
O aumento da presença de pessoas com deficiência na academia tem permitido avanços no conhecimento científico e propiciado mudanças institucionais. Dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) indicam que matrículas de estudantes com deficiência em programas de mestrado e doutorado stricto sensu passaram de 998, em 2017 – primeiro ano em que foram coletadas informações sobre elas na pós-graduação –, para 2,8 mil, em 2021 (ver gráfico acima). Em relação a postos de docência, o Censo Escolar e o Censo da Educação Superior, de 2018, elaborados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), mostram que 6,7 mil professores do ensino básico, ou 0,30% do total, e 1,6 mil do ensino superior, ou 0,43% do total, tinham algum tipo de deficiência, naquele ano. Ainda que tímida, essa presença tem desafiado instituições de ensino e pesquisa a criar políticas de acessibilidade e acolhimento.
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IF Baiano) desde 2017, a zootecnista Aline de Assis Lago desenvolvia pesquisa sobre melhoramento genético na criação de coelhos no campus de Santa Inês, cidade no interior da Bahia. Por conta de imunidade baixa, depressão e ansiedade, frequentemente precisava se afastar do trabalho. Quando a pandemia de Covid-19 atingiu o Brasil, em março de 2020, as atividades presenciais foram suspensas e Lago passou a trabalhar remotamente. Para surpresa do psiquiatra com quem se tratava, ao se manter longe de interações, seu estado geral de saúde melhorou, na contramão do que era observado em outros pacientes. “Meu psiquiatra se deu conta de que eu devia ter alguma neurodivergência, que não tinha sido detectada até então”, conta. Depois de alguns meses de investigações, ela foi diagnosticada como autista, com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e altas habilidades, o que a levou a solicitar o reconhecimento como servidora com deficiência. Mas o instituto não dispunha de normas que possibilitassem a efetivação de seu pedido e o consequente acesso a direitos como redução da carga horária sem prejuízo salarial e transferência para o campus de Salvador, para a realização de tratamento médico.
Fabio Passos
“Meu processo de autorreconhecimento como autista caminhou lado a lado com os esforços para pressionar a instituição a modificar suas políticas voltadas a alunos e servidores com deficiência”, conta Lago. De acordo com ela, foram os estudantes que, em um primeiro momento, a acolheram. “Quando souberam do meu diagnóstico, muitos se identificaram comigo e pediram ajuda”, conta a zootecnista. Depois das primeiras tentativas negadas, em 2022 o instituto adaptou suas políticas e reconheceu Lago como pessoa com deficiência, autorizando sua transferência para o campus da capital baiana. Lá, ela tem o apoio de psicólogo, psiquiatra, neurologista e fisioterapeuta, que tem lhe permitido “conhecer seu próprio funcionamento”. “Fui a primeira autista com diagnóstico tardio no IF Baiano a solicitar reconhecimento como servidora com deficiência. Naquele momento, ninguém sabia como proceder”, recorda Lago, que hoje trabalha na Pró-reitoria de Pesquisa e é assistente da Coordenação Geral na Pós-graduação.
Os casos de Lago e de Alessandra Souza Silva, professora de atendimento educacional especializado no mesmo instituto e também diagnosticada tardiamente com transtorno do espectro autista, mobilizaram o IF Baiano a criar uma comissão de neurodiversidade e inclusão, que hoje tem o papel de identificar falhas e lacunas em suas políticas institucionais, propondo soluções. “Estamos tendo um alcance que não imaginávamos”, diz Lago, ao recordar que sua primeira palestra sobre o assunto, organizada em 2021 pelo Comitê Nacional de Saúde e Qualidade de Vida dos Institutos Federais, teve cerca de 500 participantes.
“Em instituições acadêmicas, as barreiras administrativas são as mais difíceis de transpor”, avalia o médico Sandro Luiz de Andrade Matas, criador do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão da Universidade Federal de São Paulo (NAI-Unifesp) em 2006. Ele conta que até aquele ano a instituição não tinha políticas de inclusão e acessibilidade. O primeiro passo foi estabelecer um grupo multidisciplinar para elaborar um projeto de adaptação arquitetônica. “Desde 1978, quando ingressei na graduação da Unifesp, enfrentava barreiras físicas e dificuldades para me deslocar”, comenta o médico. Na infância ele teve paralisia e, em consequência de suas sequelas, precisa do auxílio de bengala ou muletas para se locomover. “Hoje a Unifesp tem elevadores, rampas e piso tátil para deficientes visuais. As dificuldades agora estão na elaboração de conteúdos programáticos e envolvem aulas acessíveis a estudantes com distintas deficiências”, diz. Como exemplo, cita a ocasião em que a universidade precisava de um professor de Libras para uma classe da graduação com um aluno com deficiência auditiva, mas, conforme seu regimento, só poderia contratar docentes com doutorado. “Há sete anos não contávamos com professores de Libras com doutorado no Brasil. Foi necessário alterar o estatuto para poder contornar o empecilho”, recorda, ao mencionar que, atualmente, a instituição conta com sete docentes de Libras. Na avaliação de Matas, a situação tende a melhorar nos próximos anos porque a universidade aprovou uma resolução que amplia o acolhimento de estudantes e docentes com distintas deficiências, por meio de investimentos em tecnologia assistiva, formação e acessibilidade pedagógica, comunicação e mobilização, serviços e infraestrutura. Ainda este ano deve entrar em vigor um sistema de cotas para docentes com deficiência, aprovado na instituição em 2022.
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