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Economia

Na prática, a teoria é outra

Pesquisas abordam as ideias e as políticas de ministros da Fazenda do Brasil republicano

Zé Vicente

Nas páginas finais de Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, publicado em 1936, o economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) escreve que “os homens práticos, que se julgam imunes a quaisquer influências intelectuais, geralmente são escravos de algum economista já falecido”. O que acontece, porém, quando alguém com influências intelectuais e ideias sobre produção, consumo e comércio é levado a uma posição em que deve conduzir a política econômica de um país?

O encontro nem sempre harmonioso das ideias econômicas com a atuação na vida pública é um dos temas centrais de Os homens do cofre: O que pensavam os ministros da Fazenda do Brasil republicano (1889-1985), organizado por Ivan Colangelo Salomão, do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Os 17 capítulos examinam a trajetória intelectual e profissional dos principais titulares do Ministério da Fazenda, desde a proclamação da República, em 1889, até o fim da ditadura militar (1964-1985). O livro é o primeiro volume a ser publicado de uma trilogia que resgata a atuação dos ministros a partir da Independência, em 1822, até 2016.

Salomão conta que trabalhava em outro projeto, dedicado a pensadores econômicos brasileiros do século XIX, quando percebeu que nenhum dos personagens retratados tinha sido diretamente responsável pela política econômica. “Daí vem a ideia do livro sobre ministros da Fazenda: como as ações dessas pessoas se articulam com sua maneira de pensar?”, recorda o economista.

“Os ministros da Fazenda são pessoas que lidam diretamente com a política, no dia a dia, e por isso estão sempre confrontados com a tensão entre a teoria e a realidade”, observa Alexandre Macchione Saes, do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e coautor de dois capítulos da obra. “Praticamente tudo que se pensou em economia na história do Brasil foi fundado em problemas práticos, ligados ao processo de desenvolvimento do país. Faz sentido examinar a história do pensamento econômico no Brasil por intermédio desses personagens.”

O foco no Ministério da Fazenda (substituído em 2019 pelo atual Ministério da Economia) se justifica também pelo fato de o cargo ter sido ocupado por alguns indivíduos célebres na trajetória do país, como o jurista Ruy Barbosa (1849-1923), mais conhecido por sua carreira parlamentar e diplomática, e o futuro presidente, ditador e presidente eleito Getúlio Vargas (1882-1954), que serviu à mesma Primeira República que viria a derrubar poucos anos depois.

Pesquisas em história do pensamento econômico tiveram um crescimento expressivo nas últimas duas décadas

Ministério de peso
O Brasil experimentou uma história econômica atribulada, com inflação persistente, ciclos de recessão, moratórias. Muitos ministros passaram quase toda sua gestão combatendo crises. O último titular da pasta retratado no volume, o economista Ernane Galvêas, disse aos autores do capítulo a ele dedicado que “não havia tempo para pensar e formular uma política econômica. Todo dia tínhamos de apagar algum incêndio, ficávamos presos ao curto prazo”, observa Victor Cruz e Silva, do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (Ieri-UFU) e coautor de dois capítulos. A gestão de Galvêas, de 1980 a 1985, coincidiu com o fim do período de crescimento acelerado do país.

A trajetória econômica atribulada fez do Ministério da Fazenda uma instituição central na construção do Brasil. Sua criação é anterior à Independência: o primeiro titular da pasta, ainda sob dom João VI (1767-1826), foi o conde de Aguiar, dom Fernando José de Portugal e Castro (1752-1817), que assumiu em 1808, ano da chegada da corte portuguesa ao Brasil. A partir de 1822, responsáveis pelas finanças de uma jovem nação que precisava pagar indenizações a Portugal pelo reconhecimento formal, endividar-se em ouro para comprar produtos do exterior e garantir a rentabilidade das exportações agrícolas, os ministros da Fazenda se tornaram personagens particularmente relevantes.

Essa é uma característica que o Brasil compartilha com alguns de seus vizinhos, como a Argentina, a Colômbia, o Peru e o México, segundo Salomão. “Mas nesses países a história do Ministério da Fazenda já foi estudada, analisada e contada inúmeras vezes. Aqui, ainda são poucas as publicações sobre o tema”, afirma. Outros países não conferem tanta importância e autonomia a seus ministros da área econômica. Salomão compara o caso brasileiro com os Estados Unidos, onde o cargo correspondente, de secretário do Tesouro, tem muito menos poder para decidir a política econômica do país. “Uma das razões é que o Federal Reserve é independente há muito tempo e goza de autonomia de fato e de direito. Então o secretário do Tesouro não tem voz sobre um instrumento importantíssimo, a política monetária. No Brasil, ministros como Delfim Netto, o mais poderoso que já tivemos, podia simplesmente colocar alguém de sua confiança na presidência do Banco Central”, observa.

No período imperial, era comum que grandes figuras políticas ocupassem tanto o Ministério da Fazenda quanto a presidência do Conselho de Ministros, cargo correspondente ao de primeiro-ministro. A era dos chamados “czares da economia”, indivíduos com grande poder político graças à posição de ministro, foi efetivamente inaugurada no período republicano, com Ruy Barbosa e Joaquim Murtinho (1848-1911), diz Salomão.

Zé Vicente

“No Brasil, os presidentes que não conheciam ou não se interessavam por economia delegavam esse papel a seus ministros, como fez [Emílio Garrastazu] Médici [1905-1985] com Delfim”, observa Salomão. “Por outro lado, presidentes com opiniões fortes em economia tinham ministros opacos. Alguns chegaram a ser esquecidos. O ministro da Fazenda mais longevo do Brasil foi Artur de Souza Costa [1893-1957], que ocupou o cargo de 1934 a 1945. Mas poucos são capazes de citar seu nome, porque foi ministro de Vargas, que era quem realmente tocava a política econômica.”

No século XX, aumentaram as atribuições do cargo, com os esforços de industrialização exigindo a fundação de novas instituições e o desenvolvimento de novos instrumentos. Nesse período, ministros da Fazenda foram diretamente responsáveis pela instalação do Banco Central, que data de 1964 e foi precedido pela Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), criada em 1945; do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e (mais tarde) Social (BNDES), de 1952; do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), em 1964, e outros.

“No tempo de [Francisco de Paula] Rodrigues Alves [1848-1919], fazer política econômica era basicamente administrar o câmbio, tomando algumas outras medidas aqui e ali. Era muito restrito”, afirma Salomão, ao referir-se ao advogado que foi ministro da Fazenda entre 1891 e 1892 e, mais tarde, presidiu a República (1902-1906). “Entre 1974 e 1979, época de [Mario Henrique] Simonsen [1935-1997], havia muito mais instrumentos e instituições. Nas décadas de 1960 e 1970, o problema da inflação estava em outro nível. As condições eram completamente diferentes do começo do século XX”, compara.

No Brasil, as pesquisas em história do pensamento econômico tiveram um crescimento expressivo nas últimas duas décadas, com destaque para o rápido desenvolvimento dos estudos sobre como teorias foram assimiladas, adaptadas ou produzidas localmente, de acordo com Saes, da FEA-USP. Nesse subcampo, uma das questões recorrentes diz respeito à existência de doutrinas surgidas ou desenvolvidas no país, mas com aplicação universal.

Condições em que finanças brasileiras foram administradas não corresponderam às teorias formuladas em países centrais

Segundo os historiadores, ao longo do último século, teóricos brasileiros tiveram papel fundamental em duas correntes com essa característica. A primeira, desenvolvida nas décadas de 1940 e 1950, é o estruturalismo cepalino, com a teoria da deterioração dos termos de troca, cujos pais são o argentino Raúl Prebisch (1901-1986) e o brasileiro Celso Furtado (1920-2004). A segunda é a teoria da inflação inercial, desenvolvida na década de 1980 por economistas como André Lara Resende, Francisco Lopes e Persio Arida, que formariam o núcleo do que viria a ser o Plano Real, implantado em 1994. Embora tivessem como ponto de partida as questões concretas do Brasil, essas doutrinas se aplicam a situações que não se limitam ao país.

Excluídos esses dois casos, explica Saes, “o pensamento econômico que se desenvolveu aqui foi quase sempre uma resposta a questões práticas, enfrentadas por pessoas que estavam na academia, no mercado ou no governo”. “É assim que emergem os temas da industrialização, do balanço de pagamentos, da pobreza e desigualdade, da estrutura de um país agrário-exportador. Esses problemas são confrontados com modelos de interpretação trazidos de economias industrializadas, com estruturas econômicas bastante distintas”, completa.

Como as condições em que se administraram as finanças brasileiras, bem como os setores produtivos do país, nunca corresponderam perfeitamente ao que preconizavam as teorias desenvolvidas nos países centrais, houve sempre uma necessidade de “tropicalizar” ideias e princípios econômicos, aponta Salomão. Ainda no século XIX, uma das primeiras “vítimas da tropicalização” foi o padrão-ouro, sistema em que esteve fundado o valor relativo das moedas do mundo ao longo do século XIX e parte do século XX. Por esse sistema, a quantidade de moeda em circulação deveria corresponder ao ouro que o país mantinha em suas reservas, segundo uma taxa previamente fixada. “O padrão-ouro era uma realidade impossível para um país com balanço de pagamentos extremamente deficitário. Era praticamente uma regra a não ser cumprida. Estipulou-se a taxa de câmbio em 1846, mas sempre constituiu uma exceção”, informa Salomão.

Referindo-se a Eugênio Gudin Filho (1886-1986), Cruz e Silva afirma que sua experiência como ministro “serviu para mostrar a ele que forças externas ao livro-texto são às vezes grandes demais para serem ignoradas”. Pressionado pelas circunstâncias do governo de Café Filho (1899-1970), que assumiu após o suicídio de Vargas, o pensador que defendia vigorosamente o livre mercado teve de aceitar medidas de intervenção do Estado na economia. “No livro-texto, o sistema econômico aparece como uma ilha separada de tudo o mais que acontece na sociedade. A partir do momento em que alguém assume o papel de formulador de políticas, deve lidar com as interações sociais, que transcendem o sistema econômico. Aí a questão passa a ser: qual é o limite que ele aceita? Onde traça a fronteira do que não vai mais fazer parte?”, questiona Cruz e Silva. No caso de Gudin, pressões contra sua política anti-inflacionária levaram-no a pedir demissão.

Ruy Barbosa, primeiro ministro da Fazenda do Brasil republicano, foi um “intelectual liberal” e um “político heterodoxo”, escreve Salomão. Suas ideias sobre produção e comércio eram fortemente baseadas na economia política clássica, sobretudo no filósofo e economista britânico Adam Smith (1723-1790), um dos pais do liberalismo econômico. Barbosa tinha grande admiração pela Inglaterra e defendia que o poderio do país se fundava, em grande medida, em suas práticas liberais. Entretanto, ao assumir o cargo, “sua política foi de intervenção, defesa da produção nacional, política monetária expansionista”, pontua Salomão. “Ele dizia que um governo revolucionário não pode ser parcimonioso e conservador.” Para Barbosa, o Império havia sido responsável pela consolidação política do país e caberia à República sua transformação econômica.

Zé Vicente

Algo semelhante ocorreu com o jurista Horácio Lafer (1900-1965), ministro durante o último governo Vargas (1951-1954). Conforme Saes, na tradição da historiografia econômica brasileira, Lafer é visto como um “fiel da balança” no governo, ou seja, alguém que “puxaria” as políticas de um regime caracterizado pela intervenção estatal na direção do liberalismo. O professor da FEA-USP é contrário a essa interpretação. Lafer foi formado na geração de pensadores que orbitavam a esfera de influência de Roberto Simonsen (1889-1948), “uma geração ligada à industrialização, que vê seu crescimento pela via do Estado, com um claro projeto de Brasil”, contrapõe o historiador.

Antes de assumir o ministério, Lafer foi deputado classista, compactuando com ideias que seriam sistematizadas na Carta de Teresópolis, elaborada ao término do Congresso das Classes Produtoras, em 1945, realizado naquela cidade serrana do Rio de Janeiro. A carta defendia que o Estado combatesse diretamente a pobreza, promovesse a educação e incentivasse a industrialização. “De fato, Horácio Lafer fez uma política de saneamento das contas públicas e sempre defendeu o equilíbrio fiscal, desde os anos 1930. Ele dizia: ‘Não podemos perder para a inflação’”, afirma Saes. Na prática, portanto, as medidas que tomou pendiam mais para o lado liberal. “Mas essa filosofia tinha como horizonte criar mecanismos para viabilizar o crescimento e a indústria, alinhado com o projeto varguista”, contrapõe Saes.

O desenvolvimento das instituições e políticas econômicas ocorreu paralelamente à instalação e expansão dos cursos de economia no Brasil. As primeiras cadeiras dedicadas ao tema surgiram na década de 1830, nas duas primeiras faculdades de direito do país, de São Paulo e Olinda (PE), e, pouco depois, nas escolas de engenharia, começando no Rio de Janeiro. Eram disciplinas ministradas nos anos finais da graduação, a partir de textos canônicos, como os dos economistas britânicos David Ricardo (1772-1823) e John Stuart Mill (1806-1873), conta Salomão, da UFPR. Faculdades de economia só foram criadas a partir da década de 1940. As primeiras foram a Faculdade Nacional de Ciências Econômicas, no Rio, na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e na Universidade de São Paulo (USP).

Até então, comenta Cruz e Silva, os economistas e, por extensão, os ministros da Fazenda assumiam o cargo egressos de escolas de direito ou de engenharia. Barbosa e Furtado, que assumiu o Ministério do Planejamento de João Goulart, são exemplos de ministros com formação jurídica e um pensamento mais humanístico. Graduados em engenharia, Gudin e Simonsen, por outro lado, “trouxeram um modo de pensar matemático e exato, típico de sua área de formação”, observa o historiador. “Na série histórica de ministros da Fazenda, há uma linha divisória clara na década de 1960”, assinala Saes. A partir de então, passariam a prevalecer ministros com formação de economista, começando por Delfim Netto, que integrou a terceira turma graduada na FEA-USP.

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