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Obituário

Na teoria e na prática

Entusiasta da pesquisa empírica, Leôncio Martins Rodrigues foi um dos pioneiros das ciências sociais no Brasil

O cientista político em 2005, por ocasião da entrevista concedida a Pesquisa FAPESP

Miguel Boyayan

Sindicalismo, relações de trabalho na indústria, partidos e representação política no Brasil figuram como os principais temas de pesquisa do cientista social Leôncio Martins Rodrigues, morto na segunda-feira (3/5), aos 87 anos, em São Paulo. Graças à profícua carreira acadêmica iniciada na década de 1960 na Universidade de São Paulo (USP), recebeu os prêmios Florestan Fernandes, da Sociedade Brasileira de Sociologia, em 2009, e o de Excelência Acadêmica Antônio Flávio Pierucci, da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs), em 2015. “Ele foi duplamente pioneiro no Brasil”, afirma André Botelho, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Anpocs. “Primeiro, ao estudar a partir dos anos 1960 os sindicatos, cujos trabalhos ajudaram a consolidar a área da sociologia do trabalho no país. E mais tarde, na década de 1980, ao se debruçar sobre partidos políticos, em um momento de estruturação dessa área, que hoje é uma das mais importantes da ciência política no Brasil.”

Rodrigues nasceu em 1934, na cidade de São Paulo, onde concluiu o curso de ciências sociais na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. Em entrevista concedida em 2008 ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getulio Vargas (CPDOC-FGV), contou que o furor da militância trotskista na juventude o afastou da escola e, por essa razão, só conseguiu ingressar na graduação aos 25 anos de idade. Ainda segundo esse depoimento, a sugestão para estudar ciências sociais veio da antropóloga Ruth Cardoso (1930-2008), sua professora de história no Colégio Estadual Fernão Dias Paes. Mais tarde, os dois trabalhariam juntos no Centro de Estudos da Mão de Obra da Secretaria do Trabalho, órgão do governo paulista. “Nós estávamos conversando e ela me disse: ‘Por que você não faz ciências sociais?’. Eu nem conhecia direito aquilo. Quando ela me falou o que era ciências sociais, eu falei: ‘É isso que eu quero’”, recordou, em seu depoimento.

A partir daí não abandonou mais o ofício. Após obter o bacharelado e a licenciatura pela USP, em 1962, tornou-se pela mesma instituição mestre em sociologia com a dissertação “Manifestações e funções do conflito industrial em São Paulo” (1964), orientado pelo sociólogo Octavio Ianni (1926-2004), e posteriormente doutor, com a tese “Atitudes operárias na indústria automobilística” (1967), sob orientação do sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995). Os trabalhos se transformaram, respectivamente, nos livros Conflito industrial e sindicalismo no Brasil (Difusão Europeia do Livro, 1966) e Industrialização e atitudes operárias (Editora Brasiliense, 1970).

Na USP, foi professor de sociologia e ciência política. “Ele era muito receptivo, generoso e tinha grande proximidade com os alunos, o que incluía sair com a gente para tomar cerveja”, lembra o sociólogo Sérgio Miceli, professor da FFLCH-USP, que foi orientado por Leôncio no mestrado e no doutorado. “Além disso, era um grande anfitrião. Nos anos da ditadura militar, quando vivíamos em um clima opressivo por causa da perseguição política, a casa dele, no bairro de Pinheiros, era ponto de encontro de intelectuais. Leôncio inclusive ajudou muita gente naquele momento. Quando o professor Régis de Castro Andrade [1938-2002], por exemplo, foi preso pela repressão, ele prestou assistência à família do amigo.”

No mesmo período, Rodrigues teve papel fundamental na articulação e fundação de dois espaços de pesquisa acadêmica. O primeiro foi o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), criado em 1969 com Fernando Henrique Cardoso, Cândido Procópio Ferreira de Camargo (1922-1987), Paul Singer (1932-2018), José Arthur Giannotti, Elza Berquó e outros. O segundo foi o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), em 1976. Também participou do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (Cesit), criado por Florestan Fernandes e Cardoso na USP. Com o tempo deixou de lado as convicções de esquerda e abraçou o liberalismo. “Ele sempre respeitou pontos de vista diferentes dos dele”, diz o sociólogo Glauco Arbix, professor da FFLCH-USP, cujo doutorado foi desenvolvido sob orientação de Rodrigues. “Mas era exigente e cobrava que as ideias tivessem musculatura, fossem embasadas em argumentos sólidos.”

Rodrigues também contribuiu de maneira decisiva para a organização e o fortalecimento da área de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP. Na Diretoria Científica da Fundação, foi ele o primeiro a ocupar o cargo de coordenador adjunto para a área, em 1989. “Em uma época em que a cultura da avaliação por pares ainda era incipiente nas Ciências Humanas e Humanidades, a atuação de Leôncio foi decisiva para consolidá-la segundo os padrões mais exigentes de rigor metodológico e pluralismo doutrinário”, lembra Luiz Henrique Lopes dos Santos, então membro da Coordenação da Área de Ciências Humanas e Sociais da Diretoria Científica, sob a liderança de Rodrigues.

Na década de 1990 foi indicado por Cardoso, então presidente da República, ao Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na mesma época escreveu o livro Destino do sindicalismo (Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 1999), sobre o futuro dos sindicatos e das relações de trabalho. “No livro, defendeu que a capacidade de influência política dos sindicatos estava se esgotando por diferentes razões, como a globalização econômica e a aprovação de políticas antissindicais em diferentes continentes. Foi criticado porque o movimento sindical brasileiro ainda era uma força muito expressiva e pouco depois, em 2002, Luís Inácio Lula da Silva, ex-operário e ex-líder sindical, seria alçado à Presidência da República, mas seu diagnóstico se revelou correto”, observa o sociólogo Ruy Braga, professor da FFLCH-USP.

Após se aposentar na USP, em 1985 foi contratado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde ficou até 2003. “Ele veio para cá com outros colegas de renome para montar o doutorado em ciências sociais, que não existia na época. Sempre gostou de sala de aula”, relata a cientista política Rachel Meneguello, do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Naquele momento sua atenção também estava voltada para a temática dos partidos e da representação política no Brasil.

São dessa safra livros como Quem é quem na Constituinte (Editora OESP-Maltese, 1987). Financiada pelo Jornal da Tarde, do Grupo Estado, na obra ele traça o perfil ideológico e sociocultural dos parlamentares que escreveriam a Constituição Federal de 1988, após 21 anos de ditadura militar (1964-1985). Como mais de 52% deles se declararam de esquerda ou centro-esquerda, Martins Rodrigues cunhou a expressão “direita envergonhada”. “Era uma forma daqueles deputados se afastarem da ditatura naquele momento de redemocratização”, explica Meneguello.  Em seus últimos livros, Mudanças na classe política brasileira (Publifolha, 2006) e Pobres e ricos na luta pelo poder ‒Novas elites na política brasileira (Topbooks, 2014), analisou o perfil dos integrantes da Câmara dos Deputados eleitos nas legislaturas de 1998, 2002 e depois em 2010. Segundo ele, a instituição havia se tornado mais popular. “Mas não necessariamente melhor”, pontua Meneguello, para concluir: “Leôncio foi um grande defensor da pesquisa empírica e criou marcos de análise para muitas gerações de pesquisadores”.

Integrante da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e agraciado com a Ordem Nacional do Mérito Científico, em 2001, Leôncio Martins Rodrigues deixa a companheira, a cientista política Maria Tereza Sadek, e os filhos Luciana e Daniel, de seu casamento com a psicóloga Arakcy Martins Rodrigues (1936-2000).

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