Nos últimos meses, o psiquiatra gaúcho Flávio Kapczinski está empenhado em dois grandes projetos. Um é consolidar, em parceria com colaboradores, um sistema que classifica os graus de evolução do transtorno bipolar. Marcado pela alternância de episódios de depressão com os de mania ou hipomania, essa doença mental afeta 3% da população. Não tratado, o transtorno costuma se agravar até atingir o ponto de reduzir a capacidade de lidar com tarefas simples, como organizar as atividades do dia.
Após mais de 10 anos de discussão, uma força-tarefa internacional de especialistas reunida na Conferência Anual da Sociedade Internacional de Transtorno Bipolar de 2024, realizada na Islândia, chegou a um modelo consensual que organiza a progressão da doença, levando em conta o número de episódios, a ocorrência de comorbidades e o prejuízo funcional.
“Ele deve ajudar os médicos a escolher o tratamento mais adequado para cada caso”, afirma Kapczinski, que é pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor emérito da Universidade McMaster, no Canadá.
O segundo grande projeto que Kapczinski tem pela frente é coordenar, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o primeiro estudo que deve determinar, em uma amostra representativa da população brasileira, a prevalência (frequência de casos) das doenças mentais mais graves.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista que Kapczinski concedeu a Pesquisa FAPESP no final de outubro por plataforma de videoconferência.
Em outubro, o senhor participou na Islândia de uma força-tarefa internacional para definir os estágios de evolução do transtorno bipolar. A que consenso se chegou?
Propus a criação dessa força-tarefa há 10 anos. Estamos na terceira rodada de trabalhos. Na primeira, o grupo, formado por autoridades internacionais no tema, chegou ao consenso de que o transtorno bipolar pode ter um curso progressivo de agravamento caso não seja tratado. A doença foi descrita faz mais de 100 anos pelo psiquiatra alemão Emil Kraepelin [1856-1926] e, já na época, ele percebeu que alguns casos evoluíam em gravidade. Esses pacientes adoeciam repetidas vezes e voltavam a ser internados. Em certos casos, chegavam a perder a autonomia. Mas as observações eram limitadas, porque ele lidava com pacientes internados em sua clínica.
Essa percepção ficou esquecida?
Há uns 25 anos, quando comecei a trabalhar com transtorno bipolar, não se tinha mais essa visão. Acreditava-se que a esquizofrenia produzia grande perda funcional a partir da juventude e que o transtorno bipolar ocorria em episódios, sem perdas funcionais. Ou seja, quando o episódio era tratado ou contornado, a pessoa regredia ao nível de base, sem prejuízos. Isso começou a ser questionado com os primeiros case registries [estudos de acompanhamento da população de países inteiros], feitos nos países escandinavos. Nesses estudos, os pesquisadores notaram que, a cada internação, aumentava a probabilidade de o paciente com transtorno bipolar voltar a ser internado e, no longo prazo, desenvolver prejuízos funcionais e episódios mais graves.
Como esses dados influenciaram a área?
Os dados populacionais da Dinamarca embasaram o modelo teórico de evolução da doença que eu e colaboradores propusemos em 2010. Esse modelo classifica a evolução em quatro graus. Chamamos a fase mais inicial de latente. É quando a pessoa ainda não manifesta sinais da doença, mas apresenta risco aumentado de desenvolvê-la. Esse risco pode se apresentar na forma de oscilações de humor ou de depressão na adolescência. Ele é maior quando há casos de transtorno bipolar entre parentes de primeiro grau e é potencializado pelo consumo de drogas, em especial a cocaína. No estágio 1, a doença se mostra pura, sem comorbidades, com o quadro de depressão se alternando com o de mania [estado de muita energia, euforia, impulsividade] ou hipomania [uma mania de menor intensidade]. No 2, ela aparece acompanhada de outro problema, como transtorno do pânico ou dependência de álcool, o que torna o tratamento mais complicado. No estágio 3, os pacientes têm prejuízo funcional, e, no 4, não conseguem manter uma vida autônoma.
O modelo foi aceito pelos pares?
Outros grupos viram a doença de forma um pouco diferente. O grupo da psiquiatra infantil Anne Duffy, da Queen’s University, no Canadá, achou que o mais importante é olhar para as fases iniciais da vida. Para eles, problemas de sono, ansiedade e déficit de atenção na infância já representam as manifestações iniciais da doença quando a criança tem pais ou irmãos com transtorno bipolar. De resto, o modelo segue mais ou menos o que propusemos para os adultos. Para Michael Berk, da Universidade Deakin, na Austrália, o mais importante era o número de episódios que a pessoa havia vivido. O estágio mais inicial desse modelo é o da propensão. A pessoa que tem mais risco de desenvolver o problema, mas não experimentou nenhum episódio. No estágio 1, aparecem sinais de depressão, ansiedade, alterações no sono. No 2, surge o primeiro episódio de mania ou hipomania. A partir do segundo evento de mania ou hipomania, a doença se torna diferente e passa a se repetir. Mais adiante, fica crônica. Uma diferença em relação ao que propusemos é que o nosso sistema leva em conta a funcionalidade da pessoa, a capacidade de realizar as atividades do dia a dia.
O atraso no diagnóstico do transtorno bipolar é prejudicial e resulta em mais episódios, o que causa impacto no cérebro
As três propostas existiam em paralelo?
Sim. Na primeira reunião da força-tarefa, chegou-se a um consenso mais rudimentar: havia um estágio inicial, menos complicado e sem comorbidades, no qual a pessoa funciona bem, e um tardio, com comorbidades e prejuízo funcional, mais difícil de tratar. Isso era insuficiente, mas não conseguíamos progredir. Criamos, então, uma nomenclatura universal. Definimos o que era episódio; recorrência; neuroprogressão [agravamento à medida que ocorrem os episódios]; fatores de risco etc. Mas a proposta de um modelo único de estadiamento [classificação dos estágios de progressão da doença] ficou estagnada. Recentemente, passamos a liderança da força-tarefa para Ralph Kupka, da Universidade Médica de Amsterdã, nos Países Baixos. Ele e Afra van der Markt, da mesma instituição, criaram um sistema engenhoso, que leva em conta o número de episódios, a ocorrência de comorbidades e o prejuízo funcional. Esse modelo acomoda uma ampla gama de quadros e venceu o debate na Islândia. Ele está agora sendo consolidado e escrito. Deve ser publicado em meados de 2025, para que estudos avaliem a sua capacidade de predizer a resposta ao tratamento.
Como um modelo de estadiamento pode ajudar a tratar melhor a doença?
Ele deve ajudar os médicos a escolher o tratamento mais adequado para cada caso. Um exemplo: uma pessoa que tem pais ou irmãos com transtorno bipolar e já apresentou um quadro de depressão tem alto risco de converter para doença bipolar se receber tratamentos para resolver só a depressão. O médico terá de levar essa informação em conta ao escolher o medicamento. Alguns antidepressivos podem desencadear a chamada virada maníaca [passagem da fase de depressão para a de mania].
Após um episódio de mania, não tem mais volta?
Depois do primeiro episódio de mania ou hipomania, o que era depressão passa a ser outra doença. Não volta a ser só depressão. As informações do estadiamento podem nos ajudar a tratar melhor essas pessoas desde a fase inicial. Também devem permitir enfatizar que, primeiro, é preciso cuidar das comorbidades, quando elas existem. Uma pessoa com transtorno bipolar e síndrome do pânico ou abuso de substâncias, o mais comum é o de álcool, responde mal ao tratamento se, antes, não forem tratados o pânico ou o abuso de álcool. Com as comorbidades controladas, o tratamento tende a ser mais eficaz. O estadiamento também permite separar os indivíduos por grau de complexidade.
Por que essa separação é importante?
Para usar de modo mais eficiente os recursos do sistema público de saúde. Não é desejável que um paciente com transtorno bipolar identificado, que responde bem ao tratamento, seja atendido em um centro de alta complexidade. Esses casos podem ser tratados no posto de saúde, com apoio de um Caps [Centros de Atenção Psicossocial], onde estão os especialistas. Os casos mais complexos têm de ser cuidados pelos Caps, em contato com um centro de referência de grau terciário, em geral um hospital universitário, onde podem ser realizadas internações.
Já é possível saber como está a aceitação?
O modelo não é aceito de forma fácil. Nós, proponentes, identificamos vantagens. Quem é contrário diz que a base de dados não é suficiente e, por isso, pode gerar confusão. Os críticos falam que o sistema de estadiamento poderia estigmatizar as pessoas e não seria útil, porque, na clínica, eles não veem a progressão ocorrer. O grupo a favor fez uma réplica, afirmando que o que se observa nos consultórios é diferente do que se vê na população de um país. As evidências são de que o que propomos será visto ao se acompanhar um número grande de casos por um tempo longo. Para nós, é importante que as pessoas entendam que o transtorno bipolar, se não tratado, é uma doença progressiva, assim como outras doenças mentais. É preciso olhar de forma abrangente para o prejuízo que a doença não tratada causa na vida das pessoas, inclusive para que elas saibam em que estágio se encontram e o que podem fazer para retroceder no estadiamento ou impedir sua progressão. Os críticos dizem que dar o diagnóstico e informar o estágio pode gerar estigma. Nós acreditamos que, quanto menos se fala sobre o assunto e quanto menos informação se dá, maior é o estigma.
Quando o transtorno geralmente se manifesta?
Ele ocorre mais comumente entre os 18 e os 35 anos. É uma doença de adultos jovens. Entretanto, quando a gente olha em detalhe, percebe que as pessoas que a manifestaram aos 18, 25 ou 30 anos frequentemente já tinham problemas de sono ou de déficit de atenção na infância, de comportamento impulsivo ou uso inapropriado de álcool e drogas na adolescência. Muitos já apresentavam sintomas que permitiam fechar o diagnóstico de depressão, mas não o de bipolaridade. Essas pessoas tratam a depressão por anos até que uma análise mais detalhada revela sintomas de hipomania. O atraso no diagnóstico do transtorno bipolar é prejudicial e resulta em mais episódios. E um número maior de episódios causa impacto no cérebro.
Afetam o restante do organismo também?
De certo modo, sim. O indivíduo deixa de dormir bem e passa a ter uma má saúde cardiovascular e metabólica. Essas pessoas também têm muita dificuldade de aderir a dietas e a uma rotina de exercícios. Frequentemente se tornam sedentárias e têm um padrão dietético desfavorável. Indivíduos com o transtorno bipolar não tratado morrem 10 anos mais cedo do que as pessoas não bipolares.
O transtorno mental leva a um padrão de comportamento que afeta a fisiologia?
Há um debate sobre isso. O conhecimento científico que se acumulou na área indica que é uma doença que afeta os ritmos biológicos, a estabilidade da dieta, do sono, do autocuidado e propicia o abuso de substâncias. Tudo isso parece levar a uma aceleração do envelhecimento, com mortes precoces.
Os medicamentos disponíveis para tratar a doença bipolar funcionam bem?
Cada caso precisa de um tratamento diferente. A doença bipolar é crônica, para a vida toda, assim como a hipertensão. Vários dos medicamentos usados para tratar diferentes fases do transtorno bipolar têm eficácia muito boa. Mas os tratamentos também podem produzir agravos. Alguns aumentam o apetite e podem levar ao ganho de peso e a problemas metabólicos.
Dez por cento das pessoas que têm um familiar de primeiro grau bipolar também desenvolvem a doença
O senhor falou que a eficácia é boa. Qual a proporção de casos que resolvem?
É difícil chegar a um número geral. A doença tem a fase da mania, que é a mais grave e a mais fácil de tratar. A depressão pode ser tratada de modo eficaz com vários medicamentos. Não há uma medida do sucesso do tratamento das duas fases.
Qual o peso do componente genético?
A herdabilidade é de 80%, a mais alta entre as doenças mentais. Traduzindo a herdabilidade em uma linguagem comum, temos que 10% das pessoas que têm um familiar de primeiro grau afetado também desenvolvem a doença. Na população geral, isso ocorre com 3%. Das pessoas com pai e mãe bipolares, 70% também têm a doença. Ainda assim, uma proporção importante não desenvolve o transtorno. Isso mostra que a influência genética não é determinística. Ela aumenta a probabilidade. A causa mais importante é a hereditária. Vários genes estão associados ao aumento do risco de desenvolver transtorno bipolar, cada um com um efeito pequeno.
Há problemas que potencializam o risco?
Traumas na infância, particularmente o abuso sexual, aumentam a probabilidade de desenvolver o problema. O uso de cocaína amplia o risco. O de maconha também, mas de forma menos pronunciada.
Quando uma pessoa que suspeita ter transtorno bipolar deve procurar ajuda médica?
Quando o grau de sofrimento for suficientemente alto para prejudicar relações familiares ou o desempenho no trabalho. Ou ainda tão intenso a ponto de levar o indivíduo a deixar de trabalhar, a usar álcool e drogas para amenizar o sofrimento ou a pensar em suicídio.
Como é o acesso ao diagnóstico e ao tratamento disso no Brasil?
Ter acesso a bons cuidados de saúde mental é difícil no mundo desenvolvido e ainda mais difícil em nações emergentes, como a nossa. Segundo dados da OMS [Organização Mundial da Saúde], nos países emergentes, de cada quatro pessoas com problemas com doença mental grave, só uma obterá tratamento.
O que é mais desafiador: identificar a doença ou encontrar o tratamento adequado?
Na verdade, lidar com o aumento da energia, da criatividade. Socialmente, o aumento da performance é desejável. A sociedade premia pessoas com alta capacidade de trabalho, de liderança e de pensar soluções criativas. Nas fases difíceis, de depressão, a pessoa sofre e não produz. Ninguém quer isso. Agora, é difícil convencer as pessoas que estão com hipomania de que essas características, que ela e a sociedade consideram boas, são sintomas de uma doença que precisa ser tratada. Hoje sabemos que grandes criadores – pintores, por exemplo – com doença bipolar eram mais produtivos quando estavam com o humor estável, tinham um relacionamento estável, emprego estável.
A superprodutividade da euforia é só aparente?
Na euforia franca, ou seja, no episódio maníaco, não há produtividade. A pessoa se descola da realidade. Tem comportamentos extremos, briga, se mete em confusões, perde o emprego. Mas, nas fases em que ela está apenas acelerada, dizemos hipertímica, flertando com a hipomania, ela pode ter um grande destaque. Essas pessoas desenvolvem um comportamento carismático e comunicativo. Têm raciocínio rápido e grande habilidade de lidar com problemas. Isso confere vantagens e cria um dilema, porque não se quer perder essas qualidades. O tratamento não elimina essas habilidades, mas evita que a pessoa caia nos extremos, que são destrutivos. Quando percebe isso, ela se engaja no tratamento.
Qual a frequência do transtorno bipolar?
No mundo, o transtorno bipolar do tipo 1 [com mania e depressão] afeta 1% das pessoas. O tipo 2 [com hipomania e depressão] atinge 2%. Então, a estimativa global é de 3%. No Brasil, ainda não temos uma estatística nacional. A maior parte dos dados brasileiros é baseada em informações fornecidas por serviços de saúde. Esses números são subestimados porque não incluem informação sobre as populações sem acesso a esses serviços. Por isso, estamos começando, em colaboração com a equipe de Raquel De Boni, da Fiocruz, um estudo para determinar, de modo pioneiro, a prevalência no Brasil das doenças mentais: ansiedade, depressão unipolar, transtorno bipolar, esquizofrenia, dependência química, transtornos do espectro autista e transtorno de estresse pós-traumático. Devemos ir a campo em 2025.
Quantas pessoas serão ouvidas?
Quase 23 mil, com idades entre 18 e 75 anos, em todo o território nacional. Será uma amostra probabilística representativa da população. O estudo tem duas partes. Em uma delas, 7,8 mil adultos responderão a um questionário de rastreamento para transtornos mentais. Depois, 20% deles serão entrevistados por vídeo por um especialista que dará o diagnóstico. Na outra parte, 15 mil alunos, professores e técnicos de 50 universidades públicas passarão pelo rastreamento. Desses, 20% farão a entrevista de diagnóstico. Um ano depois, todos os que passarem pela entrevista de diagnóstico serão convidados a repeti-la. Assim, queremos ver a incidência desses problemas [o número de casos novos que surgem por ano]. Será a primeira vez que teremos, de forma probabilística, a porcentagem da população afetada por essas doenças mentais.
A entrevista acima foi publicada com o título “Flávio Kapczinski: Entre extremos” na edição impressa n° 347, de janeiro de 2025.
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