Imprimir PDF Republicar

Obituário

Newton da Costa criou sistemas revolucionários no campo da lógica

Pesquisador ganhou reconhecimento internacional ao propor modelos teóricos que permitem trabalhar com a contradição

Costa fotografado em 2016, em uma praça de Florianópolis

Caio Cezar/Folhapress

Considerado um dos mais originais pensadores brasileiros, o lógico curitibano Newton da Costa morreu no dia 16 de abril, aos 94 anos, por complicações decorrentes de uma queda que sofreu em sua casa, em Florianópolis (SC). Engenheiro civil e matemático de formação, ele obteve reconhecimento mundial pela criação da lógica paraconsistente, que permite trabalhar com opiniões, situações e teorias contraditórias. “Meu problema central sempre foi pensar sistematicamente o que é o conhecimento”, afirmou em entrevista a Pesquisa FAPESP em 2008.

“Newton foi um revolucionário: ele estabeleceu uma nova área de pesquisa na lógica”, afirma o filósofo Luiz Henrique Lopes dos Santos, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Na lógica clássica, como explica Santos, há o princípio de que, quando se aceita uma contradição, se pode então admitir qualquer coisa, e, portanto, a lógica deixa de funcionar, é trivializada. “É como se, uma vez que uma regra é violada, o jogo de xadrez virasse uma partida sem regra. Ou seja, acabou o jogo, as regras explodem”, prossegue Santos. “Newton propôs aceitar a contradição sem invalidar todo o sistema, preservando apenas certas regras da lógica clássica.”

No final dos anos 1950, começou a desenvolver a lógica paraconsistente, ainda com o nome de “sistemas inconsistentes e não triviais”. De tão heterodoxo, o trabalho foi tachado de excêntrico no Brasil. Com a ajuda do matemático brasileiro Artibano Micali (1931-2011), a ideia chegou à Academia de Ciências da França, mas quase não foi publicada devido à alegação de que a palavra “inconsistent” não existia em francês. Foi só quando o matemático Marcel Guillaume, da Universidade de Clermont-Ferrand, encontrou o vocábulo em um texto do matemático, físico e filósofo Henri Poincaré (1854-1912) é que a nota recebeu o sinal verde. “Seu reconhecimento surgiu primeiro no exterior”, diz Itala D’Ottaviano, ex-orientanda de Costa e professora de lógica e fundamentos da matemática na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Por sugestão de um amigo, o filósofo Francisco Miró Quesada, ex-ministro da Educação do Peru, rebatizou a teoria como “paraconsistente”. Como o prefixo “para”, em grego, significa “ao lado”, Costa quis reforçar que não estava negando a lógica clássica e sim acrescentando algo a ela. O novo nome foi oficialmente apresentado por Quesada, no 3º Simpósio Latino-americano de Lógica Matemática (SLALM), realizado em 1976 na Unicamp.

O sistema criado por Costa convergiu com um movimento iniciado nos primórdios do século XX: a lógica intuicionista e a lógica discursiva do polonês Stanislaw Jaskowski (1906-1965). A lógica paraconsistente passou a ser desenvolvida em linhas distintas em países como Polônia, Austrália e Rússia, e ser aplicada para informações conflituosas em várias áreas do conhecimento, da robótica a sistemas de diagnóstico médico ou de transporte, passando pela psicanálise.

Quase-verdade
Em 1967, Costa transferiu-se de Curitiba para São Paulo, onde ministrava aulas no Instituto de Matemática e Estatística da USP e na Unicamp. Foi professor titular de ambas as universidades até se aposentar em 1984. Em meados daquela mesma década, se tornou professor da FFLCH-USP e passou a ensinar filosofia da ciência.

Com o matemático chileno Rolando Chuaqui Kettlun (1935-1994), desenvolveu nos anos 1980 a noção de quase-verdade, explicada em livros como O conhecimento científico (Paulus, 2018). “Considero esse conceito o segundo mais importante de tudo o que ele fez”, ressalta Edelcio Gonçalves de Souza, ex-orientando de Costa e professor do Departamento de Filosofia da USP. “Ele costumava explicá-lo por meio do seguinte exemplo: a mecânica clássica é uma teoria falsa, porque depois dela veio a teoria da relatividade. Mas, para construir um prédio, usa-se a mecânica clássica, pois ela ‘funciona’. A mecânica clássica é, assim, uma ciência quase verdadeira.”

Nos anos 2000, ao lado do físico Francisco Antonio Dória, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Costa passou a abordar problemas ligados a essa área do conhecimento, estendendo a eles as provas de indecibilidade e incompletude dos teoremas matemáticos de Kurt Gödel (1906-1978). “Newton provou que não existe uma maneira de prever se um sistema entrará ou não em estado de caos, ou seja, mostrou que o caos é indecidível”, diz Souza, da USP. “Ele fazia perguntas de lógica aos fenômenos da física, aquelas que os físicos não costumavam fazer.”

Para ficar mais próximo das netas, Costa mudou-se para Florianópolis (SC) em 2003 e tornou-se professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde lecionou até 2022. “Ele costumava dizer que seu objetivo como educador era ‘jogar a serpente no paraíso dos estudantes’, chacoalhar as ideias”, comenta Jonas Arenhart, seu colega no Departamento de Filosofia da UFSC.

Ao seu redor, formaram-se três grandes núcleos para se pensar a lógica: um na Unicamp, outro no Departamento de Filosofia da USP e o terceiro na UFSC, na última fase da carreira. “Hoje existem vários grupos de lógica no Brasil que foram influenciados por essas três iniciativas”, afirma D’Ottaviano, da Unicamp.

Como professor visitante ou pesquisador, Costa passou por instituições no Chile, Austrália, Estados Unidos, México, Itália, França, dentre outros países. Em 1989, foi admitido como membro do Instituto Internacional de Filosofia, sediado em Paris. Além disso, integrava a Academia Internacional de Filosofia das Ciências e a Associação Internacional Americana para o Avanço da Ciência. Mais tarde, em 1998, recebeu a medalha de mérito científico Nicolau Copérnico, concedida pela Universidade de Torun, na Polônia, e o título de professor emérito da Unicamp.

Ele batiza também o prêmio da Sociedade Brasileira de Lógica, idealizado em 2015 por Jean-Yves Béziau, da UFRJ. O filósofo e matemático franco-suíço se mudou para o país para ser orientado pelo lógico brasileiro no doutorado que defendeu em 1996, na USP. No ano passado, a Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea, Racionalidade e Informação, patrocinada pela FAPESP e promovida pelo Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp, homenageou Costa. O evento coordenado por D´Ottaviano reuniu ao longo de 14 dias cerca de 170 pessoas, entre estudantes e docentes do Brasil e do exterior. Foi uma de suas últimas aparições públicas.

Newton da Costa deixa a mulher, Neusa, com quem esteve casado por quase sete décadas, os filhos Newton Jr., Marcelo e Sylvia Lúcia, além de duas netas.

Republicar