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Arquivologia

Nos bastidores da ciência

Com status de documento, cadernos registram os primeiros esboços de uma pesquisa e podem servir de fonte para outros estudos

Observações de campo e de laboratório integram o caderno produzido na década de 1940 pelo cientista paraense Leonidas Deane

Acervo Casa de Oswaldo Cruz / Divulgação

“É como se espiássemos por cima de seu ombro enquanto ele projeta e executa experimentos que vão do trivial ao profundo.” Assim escreveu Gerald Geison (1943-2001), professor de história da ciência da Universidade Princeton no livro A ciência particular de Louis Pasteur (Contraponto/Fiocruz, 2002), obra em que analisa mais de uma centena de cadernos de laboratório e outros manuscritos produzidos por Louis Pasteur (1822-1895) e seus colaboradores ao longo de quatro décadas de pesquisa. A pedido do próprio cientista francês, os registros permaneceram ocultos durante quase um século – só vieram a público em 1971, quando foram doados por sua família à Biblioteca Nacional de Paris. “É interessante observar como essa documentação, sobretudo os cadernos, pode ajudar a rever a mitologia em torno de Pasteur ao revelar não um gênio ou herói, mas um personagem muito mais complexo, com dúvidas, contradições e descaminhos”, aponta o historiador Paulo Elian, diretor da Casa de Oswaldo Cruz (COC), instituto de pesquisa histórica, preservação do patrimônio e memória da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro.

Suporte utilizado pelos cientistas para registrar os dados, os detalhes e as etapas de seus experimentos, o caderno de laboratório inspira há quase duas décadas as pesquisas de Elian. O historiador se aproximou do assunto durante o mestrado concluído em 2003, no Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Nele, investigou os padrões de constituição e procedimentos de organização de arquivos pessoais de cientistas a partir da trajetória do sanitarista Rostan Soares (1914-1996), pesquisador da Fiocruz por quase cinco décadas. “É um arquivo vasto, que está depositado na Casa de Oswaldo Cruz, e contém dezenas de cadernos”, conta Elian. “Embora pouco investigados no Brasil, os cadernos de laboratório podem ser fontes preciosas para o historiador da ciência, por exemplo. Daí a importância de preservar esse material.” Outro aspecto importante é que tais cadernos podem ajudar a esclarecer eventuais questionamentos relativos a boas práticas científicas, como dúvidas quanto à fabricação de dados e originalidade da pesquisa.

Desde 2016 Elian vem desenvolvendo, em 15 dos 72 laboratórios do Instituto Oswaldo Cruz, a pesquisa “As ciências biomédicas e a trajetória do IOC: Uma análise dos arquivos institucionais e pessoais”. “A ideia do estudo é tentar entender a relação dos nossos cientistas com seus documentos, cujo grau de envolvimento varia muito. Alguns deles têm muito mais interesse histórico e documental do que outros pela questão”, observa. Um dos trabalhos é o vídeo Cadernos de Laboratório, concebido em 2019 pelo historiador e dirigido por Cristiana Grumbach. Na produção, historiadores, arquivistas e cientistas refletem sobre a importância desse documento, que não apenas registra os primeiros esboços de uma pesquisa como também pode servir de fonte para outros estudos, inclusive voltados à memória.

Em meio ao vasto universo de documentos levantados, chamaram a atenção de Elian as diferentes designações dos cadernos de laboratório. Há “caderno de protocolo”, “caderno de pesquisas clínicas”, “caderno de amostras”, entre outras denominações. “A função é quase sempre a mesma. O que essa variação de nomenclatura denota é que não há um padrão absoluto de gestão dos cadernos”, constata. A arquivista Maria Celina Soares de Mello e Silva, do arquivo histórico do Museu Imperial, em Petrópolis (RJ), vai além. “Faltam diretrizes e uma política nacional de preservação da memória da ciência e tecnologia no país”, afirma. Por 34 anos Silva trabalhou no Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), no Rio de Janeiro, que abriga mais de 50 acervos pessoais de pesquisadores com especialidades ligadas sobretudo à área de exatas, como astronomia, química e matemática. “Muitos dos acervos pessoais de cientistas que chegavam até nós continham documentos institucionais, que não deveriam estar na casa do pesquisador”, exemplifica. “Em geral, quando isso acontece, é porque na instituição à qual o cientista estava ligado não havia preocupação com a guarda e preservação daquele documento.”

Acervo Casa de Oswaldo Cruz / Divulgação Caderno de laboratório utilizado por Carlos Chagas para anotações sobre experiências de inoculação do Trypanosoma cruzi em cobaiasAcervo Casa de Oswaldo Cruz / Divulgação

Foi a partir de constatações dessa ordem que Silva coordenou no Mast, entre 2003 e 2006, um estudo sobre a produção e preservação de registros de ciência e tecnologia na cidade do Rio. Em um ano e meio foram visitados 102 laboratórios de sete institutos ligados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, como o Instituto de Engenharia Nuclear e o Instituto de Matemática Pura e Aplicada. A investigação se desdobrou em tese de doutorado defendida por Silva em 2007, na FFLCH-USP. “Como não havia uma política institucional para preservar a documentação gerada nos laboratórios, nas instituições pesquisadas essa função ficava a cargo do cientista, que, em geral, não tem expertise e tempo para cuidar disso. O resultado é que muita coisa se perdia”, recorda. “Em relação aos cadernos de laboratório, evidenciou-se que alguns pesquisadores não sabiam distinguir se era um item institucional ou algo pessoal, que podia ser levado para casa.”

Jackson Cioni Bittencourt, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB-USP) e presidente da Agência USP de Gestão de Informação Acadêmica, não tem dúvidas. “Lugar de caderno de laboratório é no laboratório”, defende. Em 2017, quando o docente esteve à frente do ICB, foi criado o Escritório de Boas Práticas Científicas daquela unidade, que passou a adotar um padrão para o caderno de laboratório de seus pesquisadores. O modelo foi inspirado em um caderno utilizado por Bittencourt em pesquisa de pós-doutorado no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França.

Desde então, os cadernos numerados e catalogados entregues a cada pesquisador permanecem no laboratório por cinco anos para depois ganharem endereço definitivo na biblioteca da instituição. Na primeira página uma série de regras orienta os estudiosos acerca de seu uso. Estão destacadas lá a obrigatoriedade de indicar, com data e assinatura, qualquer alteração em seu conteúdo e a impossibilidade de ser levado para casa. “É um documento que pertence à USP, uma vez que a pesquisa se desenvolve dentro da universidade”, diz Bittencourt. “A medida reforça a questão da propriedade intelectual, além de aumentar a segurança dos dados e do próprio autor, caso haja algum questionamento relativo à pesquisa. Além disso, o caderno pode servir de fonte para quem está investigando algo parecido dentro do ICB.”

Não é de hoje que os cientistas tomam nota de seus experimentos. “É difícil determinar quando essa prática surgiu, mas Leonardo da Vinci [1452-1519] e Galileu Galilei [1564-1642] já tinham seus cadernos de anotação”, conta o historiador Gildo Magalhães do Santos Filho, diretor do Centro de Interunidades de História da Ciência da USP. “Entretanto, como protocolo de pesquisa, os cadernos surgiram com o aparecimento dos primeiros laboratórios, no século XVIII.” Professora de história da ciência da USP, Márcia Regina Barros da Silva chama a atenção para as expedições científicas europeias realizadas na América, África e Ásia a partir do século XVIII. “Nessas viagens exploratórias havia o filósofo natural, só chamado de cientista nos primórdios do século XIX, que fazia anotações por meio de textos e desenhos”, diz Silva, coordenadora do laboratório de História, Tecnologia e Sociedade da FFLCH-USP, para completar: “É interessante observar que a ideia de anotação vai sofrendo mutações ao longo da história, à medida que a ciência se modifica”. Como exemplo, ela cita o caso do químico e físico britânico Robert Boyle (1627-1691), que não descreveu os materiais que compunham a vedação de sua máquina de vácuo. “Era um detalhe que ele não achou necessário na época, mas hoje você precisa identificar todos os passos da prática”, diz.

Acervo Casa de Oswaldo Cruz / Divulgação O sanitarista Oswaldo Cruz ao microscópio orienta o filho Bento e o cientista Carlos Burle de Figueiredo em um dos laboratórios do Castelo de Manguinhos, em 1910Acervo Casa de Oswaldo Cruz / Divulgação

Os cadernos não são exclusividade de cientistas das áreas de ciências exatas e da vida. Pesquisadores das humanidades também lançam mão de algo parecido, os cadernos de campo. “Para nós, antropólogos, o caderno de campo é a primeira ferramenta de análise, é onde escrevemos não apenas as impressões pessoais, como em um diário íntimo, mas principalmente as observações in loco, como o cenário e os atores envolvidos na pesquisa”, esclarece José Guilherme Cantor Magnani, coordenador do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP. “É uma ferramenta antiga, mas ainda atual. E aqui no laboratório, mesmo em tempos de smartphones, utilizamos cadernos de papel, daqueles que cabem no bolso da calça”, conta.

“Hoje há colegas que registram o trabalho de campo em aplicativos ou gravam áudios no celular, por exemplo, mas muita gente ainda prefere o caderno de papel, que funciona em qualquer lugar e não precisa de bateria”, relata a antropóloga Luísa Valentini. No início de 2020, a pesquisadora defendeu, na FFLCH-USP, tese sobre a documentação de pesquisa dos etnólogos Lux Vidal (ver Pesquisa FAPESP nº 251), Pedro Agostinho e Rafael Menezes Bastos. Desde o final dos anos 1960 os três desenvolvem trabalhos de campo entre povos indígenas do país. “Na antropologia, o que não muda ao longo do tempo, a meu ver, é que os cadernos de campo são instrumentos muito pessoais, que nem sempre são compartilhados.” A esse respeito, Magnani conta o caso da publicação póstuma do caderno de campo de Bronislaw Malinowski (1884-1942), em 1967, por iniciativa da mulher do antropólogo. “Escrito originalmente em polonês, língua materna do antropólogo, cobre parte de seu período de trabalho de campo junto aos mailu e aos trobriandeses, na Melanésia. Redigido na forma de diário íntimo, consiste basicamente no registro de seus estados de ânimo, preocupações com a saúde, impressões e expressões sobre os nativos e as condições do trabalho – a solidão, as leituras, os encontros – e também sobre o mau cheiro, o barulho, as tentações. Produziu o maior frisson no meio, provocando indignadas reações de ex-alunos e muitas dúvidas quanto à oportunidade e validade da iniciativa.”

Os cadernos de pesquisa não são exclusividade das áreas de ciências exatas e da vida. Pesquisadores das humanidades utilizam os cadernos de campo

Segundo Valentini, para garantir a privacidade das informações, alguns pesquisadores chegam a escrever em idiomas pouco conhecidos. Além disso, a caligrafia também pode contribuir para reforçar seu caráter privativo. Segundo o historiador Everaldo Pereira Frade, do Arquivo de História da Ciência do Mast, alguns cadernos depositados na instituição apresentam trechos ilegíveis. É o caso das cadernetas do ornitólogo Helmut Sick (1910-1991), alemão naturalizado brasileiro, considerado o patrono desse ramo científico no país. Ou então do mineralogista austríaco radicado no Brasil Eugen Hussak (1856-1911), que trabalhou na Comissão de Exploração do Planalto Central e no Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil. “Em geral, são informações anotadas em meio às expedições, em situações nem sempre favoráveis”, pontua Frade. “Mas em alguns casos a grafia indecifrável é uma forma intencional de ocultar os dados. A escrita se torna incompreensível sobretudo quando se adotam idiomas e dialetos estrangeiros.”

A geógrafa Larissa Alves de Lira, professora visitante do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais, deparou-se com um desafio dessa ordem durante pesquisa sobre Pierre Monbeig (1908-1987). Parte do acervo do geógrafo francês, um dos responsáveis pelo estabelecimento da disciplina no Brasil, está depositada no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) e inclui duas cadernetas de viagem ao Nordeste do país na década de 1940. Elas foram utilizadas pela pesquisadora como fontes da tese, defendida em 2017 na FFLCH-USP. “Fiz tabelas para entender as variações que as letras ganhavam e assim tentar traduzir as notas, mas ainda restaram muitas partes ilegíveis”, conta Lira.

Acervo Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins / Divulgação Caderneta registra dados coletados pelo mineralogista austríaco naturalizado brasileiro Eugen Hussak, durante pesquisas no estado de São Paulo, em fins do século XIXAcervo Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins / Divulgação

Monbeig era amigo do intelectual paulista Caio Prado Jr. (1907-1990), cujo arquivo também está depositado no IEB. Durante quase 20 anos o historiador Paulo Teixeira Iumatti, que foi professor do IEB e hoje leciona na Universidade Sorbonne Nouvelle, na França, debruça-se sobre esse acervo. Entre os cadernos de anotações de Prado Júnior, utilizados nos anos 1930 e 1940, um deles, em especial, destacou-se aos olhos do especialista: é aquele que reúne os relatos “Viagem a Ouro Preto” (1940) e “Viagem a Diamantina” (1941). “Acompanhados de levantamento fotográfico, esses dois longos manuscritos que ocupam 84 páginas de um de seus cadernos de anotação documentam a fase de elaboração de Formação do Brasil contemporâneo, de 1942”, afirma Iumatti, autor de História, dialética e diálogo com as ciências: A gênese de Formação do Brasil contemporâneo (1933-1942), de Caio Prado Jr. (Intermeios, 2018). “Há quem defenda que, ao analisar a obra de um autor, os pesquisadores devem se deter naquilo que foi publicado. Mas, na minha opinião, a leitura de manuscritos de forma geral pode trazer novos significados à produção. Os cadernos de Caio Prado Jr., por exemplo, são um canteiro de experiências, trazem uma série de formulações em curso, espelham uma evolução intelectual justamente por revelarem as hesitações do autor.”

Depois de transcenderem o suporte de papel, hoje os cadernos de laboratório também podem ser encontrados em formato digital. A próxima etapa aponta para os cadernos abertos. Em sua perspectiva mais radical, o pesquisador disponibiliza na rede e em tempo real a íntegra dos dados brutos de estudo em andamento, para que as informações possam ser acessadas, analisadas, interpretadas e reutilizadas por todos os interessados. Segundo a cientista da informação Anne Clinio, o termo open notebook science foi proposto em 2006 pelo químico Jean-Claude Bradley (1967-2014), da Universidade Drexel, nos Estados Unidos. “Bradley defendia uma ciência mais ágil e eficiente, baseada na abertura dos cadernos de laboratório na medida em que neles estão registrados os procedimentos, etapas, insumos, protocolos, erros e acertos que caracterizam a produção de conhecimento”, diz a pesquisadora independente. “De acordo com esse ponto de vista, é no caderno de laboratório, e não no artigo científico, que reside a real possibilidade de escrutínio, validação, correção, refutação, colaboração e aprendizagem. Para Bradley, só é capaz de contribuir para a ciência quem documenta bem seus experimentos e os compartilha abertamente.”

A prática está alinhada aos preceitos da Ciência Aberta, movimento internacional que vem crescendo no mundo inteiro graças à disponibilização, por meio digital, dos produtos e resultados de projetos científicos. Se a existência de bibliotecas, herbários ou museus são exemplos clássicos de ciência aberta, a definição no mundo digital envolve o acesso livre à informação e à construção colaborativa do conhecimento no ambiente virtual. A forma principal de disseminação dessa proposta é a disponibilização, em repositórios digitais públicos, de artigos, dados, métodos e softwares relativos à determinada pesquisa científica. “Colaborar e compartilhar são palavras-chave da ciência aberta, que, entre outras coisas, busca democratizar o conhecimento e acelerar descobertas”, diz Claudia Bauzer Medeiros, do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas e integrante da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa em eScience e Data Science. “Dessa forma, os dados do caderno de laboratório de um cientista podem complementar o trabalho de outro pesquisador, por exemplo.” Na avaliação de Medeiros, cada vez mais o compartilhamento precisa ser visto como compromisso ético, sendo associado a boas práticas em pesquisa, sobretudo em casos de estudos que recebem financiamento público. Isso não significa, no entanto, que todos os dados da pesquisa devem ser compartilhados. “Há restrições no âmbito da ética, confidencialidade, segurança ou propriedade intelectual”, conclui.

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