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PSIQUIATRIA

Novas perspectivas sobre a origem e o tratamento do TDAH

Estudos identificam genes envolvidos no Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e reforçam possibilidade de medicar crianças pequenas

Quase sempre quando encontra amigos, o geneticista Diego Luiz Rovaris, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), se vê impelido a falar de sua especialidade, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), que inclui sintomas como dificuldade de permanecer sentado, de escutar os outros e de seguir instruções. Rovaris é coautor de um estudo internacional publicado em janeiro na revista Nature Genetics que identificou 76 genes potencialmente relacionados ao transtorno, com atividade aumentada durante o amadurecimento do cérebro, em uma amostra de 224 mil europeus.

“Esses genes afetam principalmente o desenvolvimento cerebral no início da vida”, explica o psiquiatra Luís Rohde, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um dos autores do estudo. Sem o amadurecimento adequado do córtex pré-frontal, o paciente com TDAH não consegue inibir estímulos externos, como barulho ou luzes, ou internos, como pensamentos que tiram a atenção de determinada atividade. Essa facilidade em se distrair só é alterada quando entra em ação o sistema que controla a sensação de recompensa, comandado pela liberação do neurotransmissor dopamina.

Quando crianças com TDAH jogam videogame ou adultos estão concentrados em algo prazeroso, por exemplo, partes do cérebro mandam ao córtex pré-frontal uma grande quantidade de dopamina, também conhecido como neurotransmissor do prazer, o que ajuda a aumentar o foco. “Quando não há prazer elevado, a pessoa com TDAH não tem essa motivação a mais para as tarefas do dia a dia”, explica Rohde.

Os pesquisadores identificaram uma associação entre alterações desses genes – variantes ou polimorfismos genéticos – e o desenvolvimento do TDAH, mas ainda não foi possível desvendar como eles afetam o processo e como poderiam desencadear sintomas específicos. “Cada gene é o começo de uma via que pode contribuir para o TDAH e precisa ser estudada”, ressalta Rohde. O estudo indica que, quantas mais variantes genéticas de risco o paciente tiver, mais acentuado será o quadro.

Nos próximos anos, com amostras cada vez maiores, deve ser possível refinar o conhecimento dos genes e entender como as proteínas que eles produzem afetam o desenvolvimento do cérebro. A expectativa dos pesquisadores é de que isso ajude na elaboração de medicamentos com ação direcionada, atuando em vias metabólicas específicas do transtorno. O metilfenidato (vendido como Ritalina e Concerta), medicamento mais usado no tratamento do TDAH, é um estimulante do sistema nervoso central e age em regiões do cérebro que estão pouco ativas, como o córtex pré-frontal, melhorando a atenção e inibindo o comportamento impulsivo. Ao mesmo tempo, conforme aumenta o número de genes identificados no quadro do desenvolvimento do transtorno, eles serão cada vez mais úteis para indicar os riscos de adquirir a condição, permitindo o tratamento precoce.

O psiquiatra Paulo Mattos, pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), que não participou do estudo, afirma que os resultados do estudo da Nature Genetics trazem informações relevantes sobre a genética da doença. Mas ressalta que estudos de ampla escala, por envolverem um grande número de voluntários, empregam inventários de rastreio bastante abreviados para diagnosticar sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade. Com isso, conseguem categorizar bastante bem os voluntários, mas há uma margem de erro maior em relação aos diagnósticos clínicos, que exigem horas de entrevista.

TDAH em crianças pequenas
Rohde afirma que os primeiros sinais do TDAH, como atrasos de motricidade, alterações de sono e baixo controle inibitório, podem se manifestar já nos primeiros três anos de vida, mas em crianças muito pequenas não dá para saber se o quadro vai evoluir para o transtorno. Embora o diagnóstico seja possível a partir dos 3 anos, as diretrizes médicas indiquem o uso do metilfenidato apenas a partir dos 7 anos.

Para lidar com esse problema, um ensaio clínico, com a participação de outros pesquisadores, do Brasil e dos Estados Unidos, publicado em outubro do ano passado na revista The Lancet Child and Adolescent Health, testou a eficácia e a segurança do metilfenidato em crianças de 3 a 5 anos de idade, comparando com a terapia comportamental aplicada aos pais, considerada mais eficiente nessa faixa etária do que terapia na própria criança.

“O medicamento foi mais eficaz do que a terapia comportamental dos pais, que propõe formas de lidar com os sintomas dos filhos”, observa o psiquiatra Guilherme Polanczyk, da USP, autor do artigo da Lancet, que reuniu 153 crianças com idades entre 3 e 5 anos. Segundo ele, é o primeiro estudo brasileiro que compara o efeito da terapia e da medicação nessa faixa etária.

Não há um tratamento que elimine completamente os sintomas do transtorno, que afeta cerca de 4% da população mundial, de acordo com Polanczyk, mas em alguns casos os sinais que aparecem na infância são revertidos na fase adulta. A terapia cognitivo-comportamental é considerada um tratamento complementar.

Diagnóstico cuidadoso
Todos os psiquiatras entrevistados disseram que, na prática, já usam o metilfenidato em crianças pequenas nos casos mais graves, apoiados por estudos realizados nos Estados Unidos, onde a academia de pediatria indica o remédio desde o início da década de 2010. “Se as conclusões do estudo da Lancet forem corroboradas e as diretrizes médicas no Brasil modificadas, será mais fácil para os médicos recomendar a medicação para crianças em idade pré-escolar”, explica Mattos.

“Além de avaliar a segurança e a eficácia do medicamento, como fez Polanczyk, é importante fazer estudos que acompanhem as crianças por um longo período, até a idade adulta”, ressalta a psiquiatra Sheila Caetano, responsável pelo Ambulatório de Desenvolvimento Integral da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo Caetano, só assim é possível ter mais segurança dos benefícios do remédio e avaliar eventuais efeitos colaterais, como a diminuição de estatura apontada por alguns estudos.

Para Mattos, o ponto forte do ensaio clínico de Polanczyk e equipe foi a precisão do diagnóstico, feito por meio de entrevistas detalhadas com psiquiatras e levando em conta relatos de pais e professores. Esse cuidado é especialmente importante com crianças pré-escolares, normalmente mais agitadas do que as mais velhas.

“É preciso tomar cuidado para não fazer um diagnóstico equivocado, interpretando comportamentos da infância como transtorno”, acrescenta Rohde. É normal, por exemplo, que as crianças em fase pré-escolar confrontem os pais e tenham atitudes impulsivas. “O diagnóstico só deve ser feito quando os sintomas atrapalham muito a vida da criança e seu desempenho escolar”, explica.

Para fazer um diagnóstico mais preciso, o neurologista Erasmo Barbante Casella, da USP, costuma prolongar a observação. “Acompanho as crianças pequenas por um ano, e as maiores por seis meses”, aproximadamente, diz ele. Nesse tempo, o médico pode avaliar se o quadro é de transtorno ou se a criança está reagindo a situações do momento, como problemas na escola ou a separação dos pais.

Quanto mais, melhor
O artigo da Nature Genetics sugere que a origem do transtorno está em genes que, quando carregam variações específicas, podem atuar em vias moleculares centrais no desenvolvimento do cérebro. Um dos 76 genes identificados é o FOXP2, que afeta a maturação das sinapses e está relacionado com a linguagem. “Todas as variantes genéticas destacadas no estudo estão associadas ao rendimento escolar, que é mais baixo em 80% delas”, ressalta Diego Rovaris.

Segundo o geneticista, o total de genes relacionados ao TDAH, considerado o transtorno psiquiátrico com maior influência genética, ainda é desconhecido, mas estudos indicam que a prevalência de TDAH aumenta de três a quatro vezes nas pessoas que têm ao menos um parente de primeiro grau com TDAH (pai ou mãe, por exemplo). O estudo revelou que grande parte dos genes identificados ‒ entre 84% e 98% ‒ está também envolvida em outros diagnósticos psiquiátricos, como esquizofrenia, depressão e autismo.

A geneticista Maria Rita Passos-Bueno, da USP, faz a ressalva de que a amostra europeia estudada pode não refletir completamente a população brasileira. “O conjunto de variantes genéticas associadas ao transtorno pode ter variação geográfica populacional”, explica ela.

Rovaris está aproveitando a popularidade do tema, bastante abordado por psiquiatras e influencers nas redes sociais, para atrair voluntários para as próximas fases da pesquisa. “No Brasil, nossa amostra terá mais de 10 mil indivíduos, a ser somada ao conjunto que já ultrapassa 1 milhão de pessoas, reunido pela colaboração internacional”, comemora. Mas estima que será necessária uma amostra cinco vezes maior para identificar todos os genes envolvidos.

No futuro, a contagem de variantes genéticas de risco ‒ chamada de escore de risco poligênico ‒ poderá ajudar os clínicos no diagnóstico precoce. “Ele não vai substituir o diagnóstico clínico, mas pode facilitar”, prevê Passos-Bueno. Algumas pessoas já usam os testes genéticos vendidos diretamente ao consumidor com esse fim, mas a geneticista faz um alerta: “São ainda imprecisos para a prática clínica”.

Artigos científicos
SUGAYA, L. G. Efficacy and safety of methylphenidate and behavioural parent training for children aged 3–5 years with attention-deficit hyperactivity disorder: A randomised, double-blind, placebo-controlled, and sham behavioural parent training-controlled trial. The Lancet Child and Adolescent Health. v. 6 n.12, p. 845-56. out. 2022.
DEMONTIS, D. Genome-wide analyses of ADHD identify 27 risk loci, refine the genetic architecture and implicate several cognitive domains. Nature Genetics. v. 55, p.198-208. 26 jan. 2023.

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