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Entrevista

Nuno Ferrand de Almeida: Tudo começou com uma baleia

Diretor da Galeria da Biodiversidade revela a série de acasos que levaram à criação desse incomum museu de ciência de Portugal

Nuno Ferrand de Almeida, diretor do MHNC-UP, em frente à cortina que mostra a evolução do milho ao longo do tempo

Yuri Vasconcelos

Apaixonado desde criança por museus e livros, o biólogo Nuno Ferrand de Almeida, 59 anos, está à frente de uma das principais instituições museológicas de Portugal, o Museu de História Natural e Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP), no norte do país. Ele foi o responsável pela criação da Galeria da Biodiversidade, uma das três unidades do museu, que está no centro de um acordo para renovação do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), consumido por um incêndio quatro anos atrás (ver reportagem).

“Foi uma série de acasos que me levaram a estar onde hoje estou”, recorda-se Almeida. “Um deles foi meu apreço pela obra da escritora Sophia de Mello Breyner Andresen [1919-2004]. Outro foi o fato de eu ter estudado no palacete que pertenceu à família dela, que abrigou durante décadas o Instituto de Botânica da UP.” O casarão é hoje a sede da Galeria da Biodiversidade, um museu de história natural incomum, concebido a partir da filosofia da museologia total, idealizada pelo físico espanhol Jorge Wagensberg.

Nesta entrevista concedida a Pesquisa FAPESP durante uma visita à Galeria, Almeida detalha os acasos que fizeram dele o diretor do MHNC-UP, explica o conceito filosófico que orientou a montagem do espaço e destaca suas principais atrações. Inaugurada em 2017, a unidade recebe 100 mil visitantes por ano e fica num dos lugares mais agradáveis da cidade, o Jardim Botânico do Porto.

JFFEsqueleto de baleia instalado no hall da Casa Andresen, sede da Galeria da BiodiversidadeJFF

Como surgiu a ideia de criar a Galeria da Biodiversidade?
O ponto de partida foi a baleia que a escritora Sophia Andresen, uma das maiores de Portugal, imaginou montada no imenso hall da residência de sua família, a Casa Andresen, um palacete do fim do século XIX. É o esqueleto dessa a baleia, que ficou abandonado por anos nos corredores da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, que vemos na entrada e no hall principal da Galeria. Ela foi o mote para construirmos alguma coisa nova, que é precisamente o cruzamento entre arte e ciência. Houve um esforço conjunto, multidisciplinar, entre biólogos, arquitetos, paisagistas, artistas, designers e historiadores, para que o resultado fosse uma coleção de algumas dezenas de módulos a que ninguém fica indiferente. Queremos causar nos visitantes um encanto, um deslumbramento e uma emoção que eles dificilmente vão esquecer.

A Galeria parece se irradiar a partir do esqueleto da baleia.
Sim, isso mesmo. Quando iniciamos esse projeto, o desafio era reabrir o Museu de História Natural e da Ciência da universidade, que tinha estado fechado por décadas – a Galeria da Biodiversidade é um de seus três polos. Mas não queríamos que o novo museu fosse a reposição daquilo que ele já tinha sido um dia ou de um modelo conhecido. Decidimos aproveitar o espírito do lugar. Esta era a casa de uma família conhecida por todos em Portugal. Não há quem não conheça a obra literária de Sophia Andresen, seja sua prosa, poesia e, sobretudo, a imensa quantidade de contos infantis. Muitas de suas obras integram o Plano Nacional de Leitura, o que faz com que as crianças portuguesas sejam expostas à sua fantasia e criatividade. Por isso, era preciso criar aqui alguma coisa que tivesse a ver com Sophia. Felizmente, foi possível encontrar uma imagem extraordinária descrita por ela no conto chamado “Saga”, do livro Histórias da terra e do mar [Porto Editora, 1984], que é a baleia suspensa no hall de sua casa. Apresentei essa ideia ao reitor da universidade e ele concordou na hora.

“Tudo na casa era desmedidamente grande desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual, como Hans dizia, se poderia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava, empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências por não haver lugar onde coubesse armado.”
“Saga”, Sophia de Mello Breyner Andresen

Como se deu a entrada do físico espanhol Jorge Wagensberg no projeto?
Quando pensamos em montar a Galeria não tínhamos clareza de qual seria o nosso fio condutor para apresentar essa explicação da vida. Por uma série de acasos e percursos fortuitos, conheci o professor Jorge Wagensberg, da Universidade de Barcelona, que havia criado o CosmoCaixa, considerado em 2006 o melhor museu de ciência do mundo. Percebi que era exatamente aquilo que gostaria de fazer. Entre 2012 e 2017, Wagensberg participou diretamente da criação da Galeria, selecionando e coordenando a equipe de trabalho e propondo e elaborando as suas instalações. Desenvolvemos uma museografia totalmente diferente. Com a museologia total, Wagensberg procura conjugar objetos, fenômenos e metáforas de narrativas que capturem as pessoas pelo grau de emoção que despertam nelas. Isso é completamente diferente do que é um museu de história natural convencional.

MHNC-UPFachada da Galeria da Biodiversidade, localizada no Jardim Botânico do PortoMHNC-UP

Além da baleia, quais as principais atrações da Galeria?
Temos, ao todo, 49 módulos expositivos e instalações, distribuídos por mais de uma dezena de salas. No átrio que rodeia o esqueleto da baleia, fazemos uma introdução à história da vida e apresentamos os principais mecanismos que justificam nossa atitude hoje diante da vida na Terra, que se encontra ameaçada por uma série de razões que têm a ver com a nossa presença e a forma como vivemos. Na entrada do átrio, por meio de uma obra, que recebeu o nome de Vitrine hipercúbica de compreensão súbita, mostramos aos visitantes os quatro elementos fundamentais para conseguirmos viver melhor, que são a beleza, a ética, a atividade econômica e a ciência. Da conjugação desses quatro fatores é que deve ser pensada, moldada e transmitida nossa atitude hoje em face dos recursos naturais, da natureza e do planeta.

O que se quer transmitir com a imponente cortina feita de espigas de milho?
O milho tal qual o conhecemos é uma invenção humana. Seu ancestral selvagem surgiu há 5 mil anos nos planaltos do México. Ao longo dos séculos, foi possível transformá-lo em uma das plantas mais importantes do ponto de vista econômico para a humanidade. Com esse painel, explicamos como o homem se apropria da biodiversidade e a transforma. Para isso, três passos são fundamentais. O primeiro é a domesticação, ou seja, o processo de transformação de uma planta selvagem em uma planta doméstica. Depois é o seu melhoramento, tornando-a mais adequada para a exploração agrícola. O terceiro passo, que se deve ao avanço da biologia, é a modificação genética dessa mesma planta. Ao desvendar o genoma dos organismos vivos, conseguimos editá-lo e determinar modificações importantes para seu cultivo e produtividade. Podemos ter milhos resistentes a pragas, mais bem adaptados a certos tipos de solo ou com novas características de sabor. Isso é fundamental se queremos ter uma agricultura mais rentável e produtiva – já que precisamos alimentar quase 8 bilhões de pessoas no planeta – e, ao mesmo tempo, mais amigável e que provoque menos danos ao nosso ambiente natural.

A última instalação é um painel com fotos de pessoas de diferentes cores e etnias. Como ela se encaixa na narrativa de um museu de história natural?
A ideia foi finalizar o percurso falando de nossa espécie e de suas características fundamentais. O painel é fruto de um projeto da artista brasileira Angelica Daas, que vive em Madri, chamado Humanae. Ela faz fotografias de milhares de cidadãos anônimos pelo mundo e depois mede a quantidade de melanina na ponta do nariz. Em seguida, faz um paralelo entre a pigmentação encontrada e a cor de uma tinta comum da escala Pantone, dessas usadas para pintar as paredes de casa. Nessa instalação criada para a Galeria podemos ver toda a diversidade de pigmentação da pele da espécie humana.

Yuri VasconcelosPainel com fotos de pessoas de diversas raças, cores e etnias feito pela artista brasileira Angelica DaasYuri Vasconcelos

Que mensagem se busca passar com o painel?
Essa obra leva-nos a refletir por que a espécie humana é tão diversa do ponto de vista de sua pigmentação. Hoje conhecemos os mecanismos moleculares que estão na base dessa diversidade, mecanismos esses que refletem basicamente processos de seleção natural. Ou seja, a diversidade de pigmentação humana é resultado de um processo de adaptação de nossa espécie aos diferentes climas do planeta, o que ocorreu na medida em que fomos nos espalhando por todo o globo. A variabilidade de pigmentação da nossa cor da pele, portanto, é simplesmente um processo de adaptação – e não permite nenhum tipo de categorização da nossa espécie em grupos, raças ou o que quer que seja. Não é disso que se trata.

O painel pode ser visto como um libelo antirracista?
Exatamente. Ele externa a grande facilidade com que nós mudamos a nossa pigmentação em resposta às condições do ambiente. Há uma coincidência entre o que nós sabemos do ponto de vista científico e a maneira como podemos mostrar esse conhecimento por meio da arte. Isso é extraordinário.

Quando os demais polos do MHNC-UP serão inaugurados?
O polo central já está parcialmente aberto. Fica em um edifício histórico da universidade, onde também se encontra a reitoria e, por muito tempo, funcionou a Faculdade de Ciências. Esse prédio, um dos mais marcantes do centro histórico do Porto, é patrimônio mundial da humanidade, segundo a Unesco. Nele iremos expor nosso acervo mineralógico, zoológico, botânico e antropológico por meio de mostras temáticas de longa duração e exibições temporárias. O terceiro polo é a Estação de Biologia Marítima, que será montada em frente ao mar, junto ao Aquário Público. Esse edifício encontra-se abandonado à espera de obras, já aprovadas pela universidade. Seguindo a mesma filosofia de arte e ciência que caracteriza a Galeria, o espaço será dedicado aos oceanos. Além de explicar a origem da vida, vamos destacar a importância de olhar para os oceanos de uma maneira diferente.

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