Próteses médicas e dentárias personalizadas, peças automotivas e aeroespaciais complexas, moldes e bens de consumo customizados ou de baixo volume, como unidades de reposição para equipamentos fora de linha. São cada vez mais amplas as aplicações da manufatura aditiva, também conhecida como impressão tridimensional (3D), tecnologia desenvolvida nos anos 1980 com o objetivo de produzir protótipos tridimensionais de produtos de uma forma rápida. Dados da consultoria norte-americana Wohlers Associates revelam que entre 2013 e 2017 a receita financeira gerada por meio de manufatura aditiva apresentou um crescimento anual de 25%, totalizando US$ 7,3 bilhões em 2017. Nos próximos anos, avalia a consultoria, o ritmo de expansão desse sistema produtivo, destinado a alguns segmentos de mercado, irá se acelerar ainda mais, devendo proporcionar US$ 20 bilhões em negócios em 2021.
Eduardo Zancul, professor de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), explica que a manufatura aditiva se caracteriza pelo emprego de equipamentos – as chamadas impressoras 3D – capazes de fabricar objetos por meio da adição de material, camada por camada, a partir de um modelo digital tridimensional, usualmente obtido por meio do emprego de um sistema de desenho assistido por computador (CAD, do termo em inglês computer aided design).
O conceito é o oposto da produção por métodos tradicionais, como a usinagem, em que a peça é fabricada a partir da remoção de material, metálico ou não, pela ação de máquinas-ferramentas como tornos e fresadoras. “Há economia de insumos e redução de resíduos, uma vez que a matéria-prima é depositada conforme a necessidade definida no modelo programado”, afirma o pesquisador, destacando que existem hoje várias tecnologias de impressão 3D.
Independentemente da técnica, a produção é automatizada e a supervisão humana é necessária apenas para a provisão de insumos. Entre os principais materiais usados estão plásticos moldados a altas temperaturas (termoplásticos), resinas, pós metálicos e pasta cerâmica. As impressoras têm porte variado, a partir do tamanho de um forno de microondas, e seu preço varia muito. No portfólio da fabricante norte-americana de impressoras Stratasys, uma das líderes globais, a mais barata custa US$ 5 mil (cerca de R$ 18,5 mil) e a mais cara US$ 500 mil (R$ 1,85 milhão), sem os impostos.
Para Jorge Vicente Lopes da Silva, diretor do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, de Campinas (SP), a manufatura aditiva não é nem será um substituto para a produção tradicional na maioria das indústrias, mas uma solução para nichos de mercado. O avanço da tecnologia, segundo ele, é irreversível. “Em cada nova aplicação em que a impressão 3D se mostra competitiva, a migração do usuário é definitiva”, ressalta Silva. “A manufatura aditiva responde hoje por cerca de 0,05% da produção industrial global. Não vai levar muito tempo para chegar a 5%, o que será uma revolução na manufatura mundial”, prevê.
Vantagens do método
Uma das principais vantagens da manufatura por adição de material é que ela dá mais liberdade aos projetistas, que não precisam desenvolver peças conforme as limitações de movimento de máquinas-ferramentas, empregadas nos processos convencionais de usinagem. Além disso, a tecnologia viabiliza a produção de peças com geometria complexa e também ocas, portanto mais leves, e, ainda, a consolidação de componentes em uma peça única.
Nos Estados Unidos, a GE Aviation, do grupo General Electric, empregou a tecnologia para combinar 900 peças de um motor de helicóptero em apenas 14 e, segundo comunicado de imprensa da companhia, as peças impressas ficaram 40% mais leves e 60% mais baratas. A também norte-americana General Motors (GM) usou a impressão 3D para consolidar oito componentes de um suporte de banco de automóvel em uma única peça, 40% mais leve e 20% mais resistente.
Outra característica da manufatura aditiva, segundo Zancul, é que ela viabiliza em muitas situações a produção em baixa escala. O custo unitário de fabricação é quase o mesmo para produzir uma peça ou milhares de unidades. Assim, um desafio para a indústria é determinar o volume de produção que é mais econômico produzir em manufatura aditiva ou por um sistema tradicional, pelo qual a produção em escala dilui os custos e proporciona redução do valor unitário.
Anderson Soares, gerente para o Brasil da Strat-asys, diz que a empresa faz um estudo detalhado do processo produtivo de seus potenciais clientes para garantir que haverá ganho econômico significativo. “Normalmente, produções inferiores a 2 mil peças mensais costumam ser vantajosas em 3D”, diz. “A redução de custos nesse patamar produtivo pode chegar a 60%.” Além da Stratasys, outras grandes fabricantes de impressoras 3D são a britânica Renishaw e as norte-americanas GE Additive e 3D Systems.
Um fator relevante de economia, alega Soares, é que a manufatura aditiva dispensa a produção de ferramentas como estampos e moldes de injeção de plástico e alumínio – itens que não custam menos de R$ 20 mil, mas podem chegar à casa do milhão de reais e que precisam ser trocados conforme desgaste. A técnica também gera agilidade. No sistema tradicional, cada filial de uma companhia precisa ter seu próprio molde de uma nova peça antes que ela possa ser reproduzida. Com a impressão 3D, a matriz encaminha via internet o software com o design aprovado que poderá ser impresso simultânea e imediatamente em várias localidades.
A unidade brasileira da ThyssenKrupp Elevadores emprega impressão 3D para produzir modelos de painéis de botões de elevador e peças de reposição de produtos que já saíram de linha, reduzindo o custo de manutenção e modernização de equipamentos antigos. A companhia também usa a tecnologia para reduzir o tempo para o lançamento de novos produtos. Os desenhos das inovações são enviados por meio de arquivo eletrônico às filiais na América Latina para a impressão local em 3D de moldes das novas peças.
O Instituto de Estudos Avançados (IEAv), unidade de pesquisa do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial da Força Aérea Brasileira (FAB), usa a impressão 3D na produção de um motor aeronáutico hipersônico, conhecido como scramjet (supersonic combustion ramjet), com a finalidade de reduzir custos. São feitas em manufatura aditiva o estágio de compressão, que captura o ar atmosférico para o combustor (peça do motor onde ocorre a combustão), o próprio combustor e a tubeira de aceleração dos produtos da combustão. A previsão é de que o scramjet seja testado em 2020 (ver Pesquisa FAPESP no 275).
O CTI Renato Archer é um dos maiores difusores da impressão 3D no Brasil e também um dos pioneiros no país, com a criação de um laboratório com esse propósito em 1996. No ano seguinte, importou a primeira impressora 3D a entrar em atividade no país. Hoje, tem um Núcleo de Tecnologias Tridimensionais (NT3D) onde são executados três programas de pesquisa, desenvolvimento e aplicação da manufatura aditiva, um voltado para a indústria, outro para medicina e saúde e o terceiro para pesquisa científica.
Mais de mil empresas nacionais de diferentes portes e setores de atividades realizaram seus primeiros desenvolvimentos de protótipos e produtos com base em impressão 3D com o apoio do NT3D. “Em nossos equipamentos imprimimos para a Petrobras estruturas que imitam a rocha do pré-sal para estudar o fluxo do líquido em matéria porosa”, lembra o diretor Lopes da Silva.
Um desenvolvimento atual é um sistema híbrido, que une manufatura aditiva em metal e a usinagem tradicional em um só equipamento. O projeto de pesquisa, apoiado pela FAPESP, é resultado de uma parceria entre CTI Renato Archer, IEAv, Escola de Engenharia de São Carlos da USP (EESC-USP), Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a indústria de equipamentos Romi, de Santa Bárbara d’Oeste, no interior paulista.
Reginaldo Coelho, coordenador do projeto e professor de engenharia de produção da EESC-USP, informa que há atualmente equipamentos no mercado usando dois processos de impressão 3D para metais. Um deles é o Powder Bed Fusion (PBF), que faz a fusão de camadas sequenciais de um leito metálico com uso de feixe de laser, e o outro é o Direct Energy Deposition (DED), que usa simultaneamente laser e pó metálico, injetado em uma poça de metal fundido, sobre a superfície de uma peça. Durante a impressão, o pó metálico é fundido, deposita-se em camadas, resfria-se e solidifica-se, originando a peça metálica. “Como essas peças ainda não têm o acabamento adequado para aplicações de alto desempenho, passam depois por um processo de usinagem”, explica. “O equipamento híbrido, produzido em parceria com a Romi, permitirá unir as vantagens dos dois sistemas, ou seja, a produção de peças com geometrias complexas, dispensando moldes e estampos, mas com acabamento superior, uma característica do processo de usinagem.” Uma primeira versão do equipamento foi lançada pela Romi em 2017, com dois cabeçotes, um de manufatura aditiva e outro de usinagem, operando lado a lado. Agora os pesquisadores trabalham numa segunda geração da máquina, com um cabeçote intercambiável, que fará as duas tarefas.
Bioengenharia
A área da saúde também tem se beneficiado com os avanços da manufatura aditiva. Impressoras 3D são empregadas na produção de biomodelos que auxiliam o planejamento de cirurgias complexas, na confecção de ferramentas e próteses e órteses personalizadas e até na biofabricação de tecidos humanos. “Hoje já é possível produzir tecidos humanos para realizar testes de novos medicamentos e cosméticos”, afirma Lopes da Silva.
Um aspecto fundamental para a impressão 3D na saúde é o desenvolvimento de modelos digitais precisos. O CTI Renato Archer tornou-se referência na tarefa ao criar o InVesalius, o primeiro software de código aberto no mundo que executa a reconstrução de imagens oriundas de aparelhos de tomografia computadorizada ou ressonância magnética, e faz a integração com as impressoras 3D. O InVesalius tem usuários em 155 países.
No Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, um grupo coordenado pelo professor Antonio Carlos Guastaldi utiliza o InVesalius em um projeto de produção em manufatura aditiva de tecidos ósseos. O objetivo é produzir um scaffold (andaime, em inglês) de osso sintético, analisar o impacto da esterilização na peça e sua interação com as células humanas. Os scaffolds são estruturas tridimensionais implantadas no organismo a ser regenerado. Sua principal função é dar suporte mecânico e físico-químico para o desenvolvimento de um novo tecido.
Como explica Guastaldi, o scaffold impresso em 3D, a partir de imagens de tomografia computadorizada e ressonância magnética, usa um polímero bioabsorvível que tem a função de suportar fosfato de cálcio, elemento necessário para a regeneração do tecido ósseo. A técnica de regeneração mais usual hoje prevê o uso de osso autógeno, proveniente da própria pessoa. No entanto, a disponibilidade do material autógeno é pequena. Ele precisa ser retirado da mandíbula ou do ilíaco, exigindo duas cirurgias, uma para colher o material e outra para implantá-lo. “A impressão 3D permite a produção de um scaffold de tamanho preciso, com baixo risco de rejeição pelo organismo, e reduz os procedimentos cirúrgicos para apenas um”, conta.
No Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP), a impressão 3D teve papel fundamental no treinamento da equipe liderada pelo neurocirurgião Hélio Rubens Machado e no planejamento de cada etapa da operação que separou as irmãs siamesas Maria Ysabelle e Maria Ysadora, de 2 anos, unidas pelo crânio. O processo exigiu cinco procedimentos cirúrgicos, realizados entre fevereiro e outubro de 2018. O Departamento de Física da USP de Ribeirão Preto e a startup Gphantom, incubada no Supera Parque de Inovação e Tecnologia, na mesma cidade, desenvolveram por meio de manufatura aditiva modelos tridimensionais com propriedades físicas e morfológicas equivalentes às de tecidos biológicos, permitindo à equipe simular cada uma das etapas, reduzindo riscos no corte e reestruturação craniana. “Foi a primeira vez no Brasil que esse procedimento de separação foi realizado, e nós pudemos simular em detalhes cada etapa cirúrgica”, relata Adilton Carneiro, coordenador do Grupo de Inovação em Instrumentação Médica e Ultrassom do Departamento de Física da USP.
Segundo Carneiro, que também é diretor-presidente da Fundação Instituto Polo Avançado da Saúde (Fipase), gestora do Supera Parque, um molde tradicional da cabeça das irmãs, produzido em torno mecânico, demandaria por volta de 30 dias e envolveria a intermediação de projetista, engenheiro e um operador de torno, com custo na casa de R$ 100 mil. O resultado seria o molde da área externa do crânio. Cada impressão tridimensional, em material polimérico, custou em torno de R$ 120 e levou um dia para ser feita com base na reprodução de imagens precisas, externas e internas do crânio. A simulação de cada etapa da operação permitiu detectar antecipadamente que a pele das meninas precisaria ser expandida para a cobertura craniana pós-cirúrgica, levando a equipe a realizar novo planejamento em relação ao posicionamento e volume de expansores de pele a serem inseridos. As gêmeas, agora separadas, tiveram alta no fim de 2018.
Projetos
1. Estudo, desenvolvimento e aplicação de processo híbrido: Manufatura aditiva (Ma) + high speed machining/grindind (HSM/G) (no 16/11309-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Reginaldo Teixeira Coelho (USP); Investimento R$ 7.285.649,01.
2. Simuladores sintéticos do tecido biológico para treinamento em procedimentos médicos guiados por ultrassom: Amniocentese (no 17/50185-8); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Felipe Wilker Grillo (Gphantom); Investimento R$ 330.513,11.