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Ficção

O Navegador

Era encarregado da navegação de bordo da aeronave estratosférica. Olhava as estrelas pelo mirante de vidro no fundo da nave e mantinha o aparelho em sua rota estrita, que não podia se afastar nem um grau, na verdade nem um 0,012, da rota que a técnica da navegação espacial determinara. Pois uma vez, vez aparentemente como outra qualquer, estava o nosso navegador examinando as estrelas, numa noite estrelada como todas, pois naquela altura não há noite não estrelada, quando estourou o tampão do mirante e ele foi sugado pra fora da nave. No momento em que o resto da tripulação percebeu o acidente, houve pânico (logo controlado, eram todos profissionais experimentados a evitar pânico) a bordo. Não comunicaram nada aos passageiros-teste, trataram de descer no primeiro ponto possível. Mas nosso herói, dos muitos mártires da técnica da aeronáutica de todos os tempos, o primeiro dos tempos da astronáutica, jamais foi esquecido. Não digo que “não foi esquecido” no sentido habitual em que se fala isso, não. Não há nada de “patriótico”, “grandioso”, “eterna gratidão dos homens”, no inolvidável em que se tornou nosso homem.

Aconteceu apenas o seguinte: ao ser sugado do aparelho nosso navegador não caiu. O avião estava fora da órbita gravitacional de qualquer planeta. Ou melhor, subiu um pouco, algumas dezenas de quilômetros. Mas parou aí. E veio-lhe uma calma inexplicável, enquanto espiava a nave que sumia. Devido a indeterminada lei de atração-inerte ele ainda foi arrastado, em órbita, um certo tempo. Logo, porém, caiu num espaço vazio, sem qualquer movimento. Tentou se mover, não teve como. O mundo, ao seu redor, imenso. A visão, em torno, ampla como jamais supusera ser possível. Ficou olhando, agora aterrorizado. Verificou o relógio, os ponteiros tinham parado. Tentou mover o mecanismo: a força magnética o tinha detido. Estava perdido, eternamente (?), no tempo e no espaço.

O desespero, estranhamente, não durou muito. Horas depois sentiu total tranqüilidade. Parecia que não era com ele. Ficou só constatando, verificando, se assombrando. E, na impossibilidade de qualquer outra coisa, esperando. Que podia fazer? Nem subir, nem descer. Vagamente, pensou na possibilidade de, não se mexendo do local em que estava, e nem podia, vir a ser apanhado por um outro aparelho, noutra ocasião, noutra viagem.

E lá está. Quando os estratosféricos passam por ele, ainda o saúdam. Sabem, pelo brilho de seus olhos, que ele percebe tudo. Porém os braços ele não pode mover nem prum adeus. E mesmo o brilho dos olhos vai diminuindo aos poucos, à proporção que a inanição domina o nosso herói. Que, todos já sabem, vai morrer é de fome.

Não há técnica que possa salvá-lo. Já tentaram a sucção ao contrário, mas ele caiu numa área em que o vácuo e o magnetismo se anulam. A primeira sucção tentada afastou-o mais dez quilômetros da rota normal das naves. Escadas não são praticáveis naquela altura, porque lhes falta apoio. “Dêem-me um ponto de apoio e eu moverei o mundo” aqui não tem sentido. Não há onde apoiar e não há mundo, no sentido arquimédico. Certo dia, bem claro, quando uma pequena nave de observação passava por ali, nosso herói moveu um braço e conseguiu perguntar as horas, por gestos. Viram-no lá longe, diminuto, acertando o relógio minúsculo. Mas foi seu único gesto relatado. Os técnicos cá de baixo tentaram, diante do fenômeno de movimentação acontecido normalmente, estabelecer uma equação capaz de reproduzir o fenômeno e assim salvar nosso homem. Mas não chegaram a uma conclusão, muito embora as reuniões, discussões, experiências, continuem sem parar. E nosso herói definha.

Mas não está morto. As naves, neste ano e meio que já transcorreu desde o fatídico acidente, trazem relatos: nosso amigo seca, se mumifica, mas muito lentamente. Não parece especialmente triste, nem desesperado. Definha apenas, na proporção de um milésimo do que definharia na terra sem se alimentar. O frio parece não afetá-lo. Uma vez foi surpreendido com um sorriso nos lábios. As cores das roupas que usava ficaram mais brilhantes e mais belas com o passar do tempo. E durante o solstício de verão a posição do herói foi mudando, até ficar na posição de um nascituro. Parecia que ele ia renascer do cosmo.

Enquanto isso, ele, nosso homem, é mais útil do que nunca. Os dados apurados pelo que acontece com ele têm sido analisados pela ciência aeronáutica e, acredita-se, resultarão na impossibilidade de acidentes semelhantes no futuro.

Fazem-se cálculos, e naturalmente apostas, sobre a duração da vida do homem. A indústria de tecidos lançou nova moda, baseada nas fabulosas cores da roupa do navegador. O tecido tem o nome óbvio – Navegador. Em Paris já não se usa outra coisa. Numa viagem especial, patrocinada pelas Emissoras Conjugadas, a família do navegador (mãe, sogra, mulher e dois filhos) foi levada a visitá-lo, a avistá-lo. O resultado foi lamentável, pois o estado de histeria que se produziu no mundo todo, que acompanhava a narração, trouxe críticas violentas de toda parte.

A família tem sobrevivido com donativos particulares, porque não conseguiu receber o seguro de vida que lhe deve a companhia de aviação, pois, em verdade, o navegador não morreu, nem há mesmo certeza se está mal de saúde. O advogado da família tentou dá-lo como desaparecido, pra que a esposa pudesse receber o seguro dentro de cinco anos, mas nem isso a companhia de seguros aceitou – na verdade não há homem menos desaparecido do que o navegador: o mundo inteiro sabe onde ele se encontra, com absoluta precisão, até em números e graus, latitude e longitude. Afinal os comandantes das aeronaves que deviam passar por aquela rota estratosférica começaram, de vontade própria, e mesmo contra o regulamento, a se desviarem ligeiramente, para não se aproximar do navegador perdido. É que este, agora já bem mais magro e mais brilhante, deu para fitar os aparelhos com olhar de amargurada censura.

E, pouco a pouco, foi sendo inteiramente abandonado em meio às estrelas. Mas as últimas notícias repentinamente entusiasmaram o mundo. Todas as rádios de alta freqüência começaram a receber um novo bib-bip, bib-bip astral. Houve imediatamente a suspeita do lançamento de um novo Sputnik. A Rússia e os Estados Unidos se mantiveram em silêncio, sem nenhuma declaração oficial. Mas, dias depois, o governo suíço, numa entrevista mundial de Imprensa, declarou que a Associação de Relojoeiros Suíços, depois de longas e sigilosas tentativas, tinha, afinal, estabelecido ligação com o navegador. Dos dados auferidos tinham conseguido o feito notável que agora anunciavam ao mundo: “A Suíça era o primeiro país que conseguia colocar em órbita um homem vivo!”

Lenta, mas seguramente, o nosso navegador gira, agora, no sentido contrário da rotação da Terra.

O Cruzeiro, 19.07.58 (O Sputnik tinha sido lançado em 1957)

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