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Resenhas

O pensamento como atitude

Temas de filosofia | Gerd Bornheim (organização de Gaspar Paz) | Edusp | 304 páginas | R$ 56,00

Resenha_01_290Eduardo CesarA coletânea de textos de Gerd Bornheim, Temas de filosofia, é uma iniciativa oportuna e pertinente por vários motivos. Além da razão ligada à importância do autor e sua relevância no panorama filosófico nacional, o livro oferece a possibilidade de um contato privilegiado com a pluralidade de interesses que motivaram a atividade do filósofo durante sua trajetória intelectual, sob muitos aspectos excepcional. Dentre as virtudes que o leitor notará ao percorrer os textos, destaca-se a confluência da diversidade de assuntos com a unidade de estilo, que certamente contribuiu para conferir ao intelectual gaúcho uma posição que pode ser considerada ímpar.

Bornheim praticou desde muitos anos um gênero de pensamento filosófico que só recentemente a ortodoxia acadêmica começa a aceitar. Trata-se de pensar filosoficamente para além dos parâmetros técnicos da lógica convencional do método analítico e, desse modo, libertar-se das amarras absurdas que podem fazer da filosofia uma “especialidade” ao sabor da ilusão de uma “cientificidade”. Esta espécie de servidão voluntária a uma pretensa tecnologia do pensamento foi, desde sempre, uma das mais veementes recusas do autor. Nesse sentido, os comentários biográficos de Gaspar Paz, organizador do volume, permitem compreender a originalidade de um perfil investigativo que, desde muito cedo, já reivindicava a liberdade que o autor via como necessária para romper com os nichos e os rótulos e desenvolver uma reflexão marcada pela unidade múltipla que se constitui como fidelidade às figuras do pensamento: história, sociedade, política, artes e, sobretudo, um apego obstinado à condição concreta da realidade humana.

É necessário ressaltar as dificuldades inerentes a esta opção pela “universalidade concreta”: pois é claro que não se trata de abandonar os cânones em prol de um sobrevoo distanciado da diversidade existencial e cultural. Pelo contrário, a desenvoltura necessária para pensar livremente só se adquire pela disciplina rígida no trato com a articulação histórica e temática dos séculos de pensamento. O que vemos em Bornheim é o máximo rigor incorporado ao mais alto grau de liberdade e de inventividade. Nos textos em que analisa autores ou temas historicamente determinados, sempre encontramos, mesclado à fidelidade hermenêutica, algo de inovador e ainda não percebido, que enriquece a descrição do assunto. Reciprocamente, quando o autor se dedica a reflexões gerais sobre grandes temas articuladores do pensamento ocidental, percebemos o lastro de erudição que pontua com competência as interpretações de longo fôlego.

Uma via de compreensão dessa atitude seria talvez entender que se trata de uma inspiração profundamente enraizada no propósito de acompanhar a criação, seja intelectual ou poética – a intuição que Bergson via por trás dos sistemas de ideias, assim como a simpatia presente na percepção literária e artística da realidade em seus traços mais profundos. E aqui tocamos em um aspecto essencial do que assinalamos como a atitude de Bornheim: muito mais do que método e análise, uma empatia com o que há de misterioso na unidade diversificada do ato de pensar, na motivação profunda da expressão nos artistas plásticos, nos romancistas, nos dramaturgos, nos poetas e nos filósofos.

Aquilo a que o filósofo se expõe quando abre sua alma (e não apenas adestra seu intelecto) não é um objeto platônico de contemplação. Gaspar Paz teve o cuidado de nos mostrar, por via da seleção dos textos, que a finalidade do pensamento é tornar-se sensível à realidade vivida e sofrida dos seres humanos. Quando o tempo e a ocasião criarem as condições para uma compreensão da totalidade singular do pensamento de Gerd Bornheim, provavelmente se constatará que a racionalidade dialética, que ele soube compreender profundamente, só se torna uma autêntica disposição do pensar (e não um mero instrumento conceitual) quando pode abordar o processo de construção da existência, pelo qual o ser humano se faz e se cria por meio de sua liberdade, nos múltiplos modos de invenção, todos contemplados no pensamento de Bornheim: ciência, arte, filosofia. A sequência dos textos neste livro enseja o percurso histórico e temático das grandes questões que permanecem abertas à invenção e criação de um pensamento sempre aberto ao inesperado.

Franklin Leopoldo e Silva é professor titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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