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Cultura

O poeta múltiplo

Ferreira Gullar faz verso e prosa com a mesma competência

Gullar: "Poderia virar pintor, qualquer coisa assim, mas virei poeta"

LÉO RAMOSGullar: “Poderia virar pintor, qualquer coisa assim, mas virei poeta”LÉO RAMOS

Ele é conhecido pela pluralidade: fez, e faz, teatro, televisão, pintura, crítica de arte e, é claro, poesia. Mas o próprio Ferreira Gullar gosta mesmo de se reconhecer em sua dualidade: “Sou um poeta que estabelece uma conversação constante com seu alter ego: José Ribamar Ferreira, nascido em São Luís do Maranhão em 1930. Sempre que o seu estado existencial está propício para fazer nascer um poema, José Ribamar se transforma em Ferreira Gullar. Se esse está frio, se não é capaz de escrever poesia, ele deixa que seu lugar seja ocupado pelo homem comum, José Ribamar. Quando este último percebe que a temperatura sobe e que é tempo de escrever, é ele que dá lugar ao poeta: eis que nasce, com freqüência, Ferreira Gullar”, explica ele, considerado um de nossos maiores poetas.

Essa alternância de personas começou com um fato prosaico: aos 18 anos, Gullar leu no jornal de São Luís um poema assinado com seu nome verdadeiro, Ribamar Ferreira (em verdade, a poesia era de um tal Ribamar Pereira). Mas a visão não agradou ao jovem e ele trocou o nome, usando como inspiração Goulart, da mãe. Não foi sua única decisão drástica. Mais jovem, ao se apaixonar pela vizinha, Tereza, e não ser correspondido, trancou-se em casa para ler o que podia e escrever poemas. Não parou por aí. Na escola, em 1945, escreveu uma redação em que ironizava que, no Dia do Trabalho, não se trabalhava e ganhou um 9,5, por causa de dois erros de português. Outra decisão ousada que o levou a só estudar gramática por dois anos e, depois, a publicar o seu primeiro poema, O trabalho, de inspiração parnasiana. O fascínio pelo verso antiquado continuou até 1949, quando editou seu primeiro livro, Um pouco acima do chão. Era o “rei dos poetas” maranhense, mas um crítico do Rio, ao ler o que escrevera, desancou o jovem pelo seu passadismo.

O choque o levou a procurar a modernidade. Teve bons guias e leituras: Mário de Andrade, Murilo Mendes e Drummond. Mudou-se para o Rio em busca de novos horizontes e encontrou amigos fundamentais, entre eles o crítico de arte Mário Pedrosa seu mestre nas artes plásticas, e Oswald de Andrade, seu tutor de vanguarda. Virou poeta profissional. “Eu descobri a poesia talvez por não ter o que fazer da vida. Eu rejeitava as ocupações normais das pessoas. Poderia virar pintor, qualquer coisa assim, mas virei poeta”, conta. E o parnasiano se rendeu ao novo. A partir de um galo presente num anúncio de sal de frutas, escreveu o poema O galo, que vence o concurso do Jornal de Letras, com um júri que incluía Manuel Bandeira. Em 1954 publica A luta corporal, com um projeto visual ousado que quase o obrigou a fazer jus ao título do livro em briga com os gráficos da revista O Cruzeiro, onde o texto foi impresso. Em São Paulo, os concretistas nascentes, os irmãos Campos e Décio Pignatari, adoraram a coragem do jovem e o chamaram para integrar seu grupo. Gullar participa da Primeira Exposição de Arte Concreta no Masp, mas em pouco tempo se cansa do “cerebralismo teórico” dos paulistas e rompe com o grupo, criando a sua vanguarda, o movimento neoconcreto, em parceria com Amílcar de Castro, Lygia Clark e Lygia Pape. Em 1959 escreve o Manifesto neoconcreto.

Em 1961, durante o governo de Jânio Quadros, dirigiu a Fundação Cultural de Brasília e, no ano seguinte, passou a integrar e fundar o Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE, ao lado de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha. Começa o seu namoro dilemático com a arte social. De início, se irrita com a “necessidade” de fazer “poesia política”, como pregado pelo Partidão, o Partido Comunista. A resposta que se deu foi: “A poesia tem que mudar alguma coisa. A única razão de ela existir é mudar algo, nem que seja a mim mesmo”. Era o meio-termo ideal de um artista sincero. A leitura de Marx, num livro escrito para desestimular padres a aderir ao comunismo, o encantou. “Quando li Marx, vi uma coisa concreta, densa, real. Não era aquele negócio lá das idéias. Eu virei marxista por causa da concretude e pelo elogio do trabalho.”

O poeta em casa: sem tempo para polêmicas, Gullar prefere apenas criar

LÉO RAMOSO poeta em casa: sem tempo para polêmicas, Gullar prefere apenas criarLÉO RAMOS

No sintomático dia 1º de abril de 1964 filia-se ao Partido Comunista. Mais tarde, para se opor, como moderado, ao grupo radical de Carlos Marighela, decide se candidatar a um cargo de direção, apenas para defender suas idéias. Vence. E perde. Pois com a chegada do AI-5 Gullar, que pouco tinha de dirigente comunista, passa a ser uma presa valiosa para a ditadura. Assim, vê-se obrigado a se exilar. Vai para Moscou, aprende marxismo na faculdade e, depois de idas e vindas, acaba em Buenos Aires. Lá, só, isolado num apartamento, vendo os amigos sendo presos pelos militares argentinos, decide escrever Poema sujo (que acaba de completar 30 anos), com o espírito de estar pondo no papel a sua obra derradeira. Daí o peso de resgate de toda uma vida e de sua desilusão com a injustiça social do Brasil. Segundo Gullar, o poema era sujo porque não tinha reserva moral, porque rompia com valores estéticos (inclusive os seus) e porque falava da miséria de seu país natal. Com mais de 70 páginas, a poesia chegou ao Brasil contrabandeada em uma fita cassete trazida por Vinicius de Moraes. Quando foi lançada em livro, em 1976, por Ênio Silveira, o autor, exilado, não estava presente.

Depois de sete anos na Argentina, volta ao Brasil, onde é preso e torturado. Livre, passou a escrever para o jornal O Pasquim, com o pseudônimo maroto de Frederico Marques (homenagem a Engels e Marx). Aos poucos, vai ocupando seu lugar na cena cultural nacional, como crítico, dramaturgo e poeta. Chega mesmo a trabalhar na Rede Globo, escrevendo séries especiais e uma novela, Araponga, com Dias Gomes. Em 1990 perde o filho mais novo. No Dia de Finados do ano seguinte vai ao cemitério, pega um pedaço de papel e escreve: “Eu te amo, meu filho”. A morte não deixará mais de participar de sua poesia. “A poesia me ajudou a enfrentar problemas, me ajudou a viver. Sem ela não sei o que seria de mim. A poesia nos dá a capacidade de nos indignarmos e, ao mesmo tempo, mantermos a nossa dignidade humana”, explica.

Quando o poeta descansa, surge o crítico preciso de arte, capaz de provocar frisson ao decretar a morte das vanguardas em Argumentação contra a morte da arte, uma assertiva interpretada erradamente por muitos. “Não acho que a vanguarda, desde o seu início até hoje, seja charlatanismo. O processo que deu origem à vanguarda, o questionamento das linguagens artísticas existentes, gerou uma experiência nova na arte. Só que, exatamente porque produziu o que produziu, esgotou-se”, analisa Gullar. Não gosta de perder tempo em polêmicas e prefere usá-lo para criar. De quando em quando, volta, tranqüilo, a ser o cidadão José Ribamar Ferreira.

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