Recém-formado pela Faculdade de Medicina, que mais tarde se integraria à Universidade de São Paulo (FM-USP), Antônio Prudente de Meireles de Morais (1906-1965) embarcou em 1928 para uma especialização em cirurgia plástica na Alemanha. Seu propósito era aprender novas técnicas para correção de marcas deixadas por tumores de pele com o cirurgião Franz Keysser (1885-1942), pioneiro na eletrocirurgia – o uso de bisturi elétrico para remover tumores considerados inoperáveis e cauterizar a região, evitando infecções. Nessa época, na Europa, outras descobertas científicas, como a radioatividade e o raio X, abriram novas perspectivas para o tratamento de algumas formas do ainda misterioso câncer.

INCAAnúncio de tratamento de raios X, com aparelho trazido da Europa, final do século XIXINCA
Prudente voltou três anos depois, trazendo um bisturi elétrico e novas ideias para aprimorar o atendimento a pessoas com câncer no Brasil. Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, já contava, desde 1922, com o Instituto do Radium, primeiro centro médico do país a usar radioterapia no tratamento do câncer, construído com o apoio do governo do estado (ver Pesquisa FAPESP nº 230). No Rio de Janeiro, o médico Mário Kröeff (1891-1983) havia criado em 1937 o Centro de Cancerologia do Serviço de Assistência Hospitalar do Distrito Federal, que mais tarde se tornaria o Instituto Nacional de Câncer (Inca). Em São Paulo, como em outros estados, a mesma equipe do Serviço Sanitário que lidava com hanseníase e doenças venéreas tratava também de pessoas com câncer, então visto como contagioso.
Nas três décadas seguintes, Prudente pôs em campo uma estratégia que se mostrou original, por ter permitido a construção de um hospital financiado diretamente pela população, por meio de uma ampla campanha de arrecadação de recursos, e que foi o primeiro no país a integrar assistência, pesquisa, ensino e educação popular sobre o câncer. Até então, os hospitais eram ligados ao governo ou a instituições religiosas ou a colônias de imigrantes.
A meta de Prudente alinhava-se com o pensamento dos paulistas na época. Em um artigo publicado em dezembro de 2024 na revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos, os historiadores Elder Al Kondari Messora e André Mota, da FM-USP, evidenciaram a singularidade da proposta paulista de combate ao câncer, marcada pela defesa de maior autonomia em relação à federação. Era a mesma motivação do Movimento Constitucionalista de 1932, o conflito armado liderado pelo estado de São Paulo contra a centralização política promovida pelo governo provisório de Getúlio Vargas (1930-1934). “A perspectiva de implantar novas estratégias de combate ao câncer, como a arquitetura e a literatura do início do século XX, expressava o desejo de um estado independente, com voz própria”, comenta Messora, que defendeu em abril o doutorado sobre a história do câncer em São Paulo, sob a orientação de Mota.
Logo após voltar a São Paulo, Prudente assumiu o cargo de professor assistente na FM-USP e, para conseguir apoio popular para suas ideias e levar seus planos adiante, começou a escrever em publicações voltadas para um público amplo. “A partir da década de 1920, o câncer começou a ganhar espaço nos jornais, nos anuários estatísticos e demográficos”, observa Messora.

Hospital A.C.CamargoCarmen e Antônio Prudente em 1938Hospital A.C.Camargo
Em 31 de outubro de 1933, O Estado de S. Paulo publicou o primeiro de uma série de cinco artigos – republicados dois anos depois no livro O câncer precisa ser combatido – por meio dos quais Prudente chamava a atenção para a doença, até então discutida apenas entre médicos. Ele defendia o diagnóstico e tratamento nos estágios iniciais e clamava por campanhas educativas que informassem a população sobre os riscos de contrair câncer, como o tabagismo.
A seu ver, caberia ao governo central apenas coordenar as iniciativas estaduais e consolidar o controle estatístico, enquanto o poder público paulista seria responsável por manter a infraestrutura de atendimento. Os serviços de saúde, ele defendia, precisavam estar organizados para garantir o diagnóstico precoce, o acesso a tratamentos de acordo com as técnicas mais adequadas a cada caso, o desenvolvimento da pesquisa científica e o registro sistemático da doença. Para Prudente, essa engrenagem deveria ser supervisionada por uma inspetoria central, inspirada no modelo já existente para o controle da lepra.
Após alguns esforços frustrados de ganhar adesão pública à sua proposta, Prudente decidiu que o melhor caminho para gerar ações efetivas seria criar o que na época se chamava liga contra o câncer. Em 1935, fundou a Associação Paulista de Combate ao Câncer (APCC), dirigida por seu antigo professor da FM-USP, Antônio Cândido de Camargo (1864-1947). Formar associações era uma forma relativamente comum de promover campanhas educativas e arrecadar recursos, por meio da filantropia, compensando a incapacidade do poder público para lidar com esse problema. Em 1936, o médico baiano Aristides Maltez (1882-1943) criou a Liga Bahiana contra o Câncer, conseguiu doações com a elite de Salvador, complementada com recursos do governo do estado, e começou a construir um hospital batizado com seu nome, inaugurado em 1952 e ainda hoje uma das referências nessa área na Bahia.

Marc Ferrez / Acervo Instituto Moreira Salles / TEIXEIRA, L. A. et al. O câncer no Brasil. 2012Santa Casa da Misericórdia, um dos primeiros locais a atender pessoas com câncer no Rio de Janeiro, cerca de 1895Marc Ferrez / Acervo Instituto Moreira Salles / TEIXEIRA, L. A. et al. O câncer no Brasil. 2012
Segundo Messora, o que diferenciou a APCC das outras ligas foi a intensa participação popular e a capacidade de mobilização da jornalista gaúcha Carmen Annes Dias (1911-2001), que transformou também a vida de Antônio Prudente. Eles se conheceram em 1938 a bordo de um navio que levava uma comitiva de médicos brasileiros à Alemanha. Ela era secretária de seu pai, Heitor Annes Dias (1884-1943), médico pessoal de Vargas (1882-1954). Casaram-se em dezembro do mesmo ano, no Rio de Janeiro.
Disposta a ajudar o marido a criar um hospital voltado ao diagnóstico e tratamento do câncer em São Paulo, Carmen lançou em 1940 as primeiras ações para arrecadar doações, por meio de festivais culturais e da participação de senhoras da alta sociedade paulistana. Em 1946, fundou a Rede Feminina de Combate ao Câncer, que, em apenas três meses, arrecadou 7,5 milhões de cruzeiros, quase 20 mil vezes o salário mínimo da época.

Fundo MÁrio Kröeff / COC/Fiocruz / Inca / TEIXEIRA, L. A. et al. O câncer no Brasil. 2012Aparelho de eletrocirurgia desenvolvido na Alemanha e aprimorado no BrasilFundo MÁrio Kröeff / COC/Fiocruz / Inca / TEIXEIRA, L. A. et al. O câncer no Brasil. 2012
Capital federal, o Rio andou mais rápido, criando em 1941 o Serviço Nacional do Câncer (SNC), que colocaria a doença na agenda de saúde pública nacional. “A criação do SNC resultou de uma ação política muito forte, porque a incidência de câncer no Brasil era muito pequena nessa época”, destaca o historiador Luiz Antônio Teixeira, da Casa Oswaldo Cruz (COC) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um dos coordenadores do livro O câncer no Brasil: Passado e presente (Outras Letras, 2012). Kröeff, em vista de sua atuação nessa área, foi nomeado o primeiro diretor do SNC, cargo que Prudente também ocuparia duas vezes ao longo de sua carreira.
Em São Paulo, Prudente buscava parcerias para implementar suas ideias. Seu primeiro espaço de atuação foi o chamado hospital japonês, criado em 1920 na Vila Mariana pelo governo do Japão para prestar assistência médica a imigrantes que enfrentavam dificuldades com a língua e que foi apropriado pelo governo brasileiro em 1939, após o rompimento das relações diplomáticas dos dois países por causa da Segunda Guerra Mundial. No então renomeado Hospital Santa Cruz, em 1946, o médico paulista implantou uma clínica de tumores, provavelmente a primeira na capital paulista.
Nas campanhas lideradas por Carmen, qualquer pessoa poderia doar o quanto quisesse. Humberto Torloni (1924-2017) era estudante de medicina quando percorreu fábricas e tecelagens do bairro do Brás, onde dava aula, à noite, e explicava que quem doasse o valor correspondente a um dia de trabalho, se tivesse câncer, seria tratado de graça quando o hospital estivesse pronto. “Também usei a rede escolar, conversava com as professoras, a diretora e as crianças”, ele contou em entrevista concedida em 2014 (ver Pesquisa FAPESP nº 216). “Esse trabalho me custou três segundas épocas, porque tinha de estudar, trabalhar à noite e ainda recolher dinheiro.” Com o que arrecadou, Torloni conseguiu uma das vagas oferecidas aos residentes.

Fundo MÁrio Kröeff / TEIXEIRA, L. A. et al. O câncer no Brasil. 2012Sala de cirurgia do Serviço Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, na década de 1950Fundo MÁrio Kröeff / TEIXEIRA, L. A. et al. O câncer no Brasil. 2012
Com projeto do arquiteto Rino Levi (1901-1965), um dos expoentes da arquitetura nacional na época, a construção do Hospital Antônio Cândido Camargo, que logo se tornaria conhecido como A.C.Camargo, começou em 1948 em um terreno doado pelo governo do estado no bairro da Liberdade. Em abril de 1953, entrou em funcionamento, com um corpo clínico de 92 especialistas, incluindo médicos, cirurgiões, radioterapeutas e laboratoristas.
O sonho da autonomia do poder público, porém, não se sustentou por muito tempo. Messora, em um artigo publicado em dezembro de 2021 na Revista Brasileira de História da Ciência, conta que Prudente logo teve dificuldades para cobrir as despesas e, em novembro de 1956, conseguiu uma doação de Cr$ 28 milhões do governo federal para manter o atendimento gratuito a indigentes. Dois anos depois, ele teve de fechar um terço dos leitos destinados a pacientes não pagantes, já que os repasses do governo eram irregulares. “Mais tarde ele precisou recorrer à ajuda do presidente Juscelino Kubitschek [1902-1976], que perdoou as dívidas públicas do hospital”, conta Messora. Em novembro de 1961, o hospital se tornou uma instituição de ensino complementar da USP.
“No início, a principal forma de tratar o câncer eram as cirurgias, geralmente amplas, por falta de outras formas efetivas de tratamento”, conta o cirurgião Ademar Lopes, 79 anos. Ele chegou ao hospital em 1974, logo depois de se formar na Faculdade Federal de Medicina do Triângulo Mineiro, em Uberaba, Minas Gerais, e foi convidado a continuar.

Hospital A.C.CamargoRino Levi (primeiro da esquerda para a direita) e Prudente (terceiro) ao lado de dois homens não identificados, diante das obras do Hospital A.C.CamargoHospital A.C.Camargo
Lopes não conheceu Antônio Prudente, que morreu em 1965, aos 59 anos, no Rio de Janeiro, em decorrência de complicações relacionadas ao diabetes, mas conviveu com Carmen. “Ela chamava a nós, residentes, de ‘os meninos’”, recorda-se. Ele via que, quando faltava dinheiro, ela procurava empresários e outros possíveis doadores, para manter o hospital funcionando.
Rebatizado em 2013 como A.C.Camargo Cancer Center, o hospital tornou-se um dos principais centros de atendimento, ensino e pesquisa no país. Em 2025, seus especialistas começaram a trabalhar com equipes de hospitais públicos no treinamento remoto de médicos para acelerar o diagnóstico de câncer no país.
“O passo primordial do combate ao câncer ainda é o diagnóstico precoce e o início imediato da forma mais adequada de tratamento”, reforça Lopes. As preocupações de Prudente, Kröeff e outros médicos de quase um século atrás continuam vivas.
A reportagem acima foi publicada com o título “O sonho da autonomia” na edição impressa nº 356, de outubro de 2025.
Artigos científicos
MESSORA, E. A. K. et al. “Plano Prudente”: Um projeto paulista de combate ao câncer para o Brasil, 1934-1954. História, Ciência, Saúde – Manguinhos. v. 31, e2024060. dez. 2024.
MESSORA, E. A. K. et al. As disputas e controvérsias na cancerologia paulista na primeira metade do século XX: O Instituto Paulista de Pesquisa sobre o Câncer. Revista Brasileira de História da Ciência. v. 14, n. 2. 8 dez. 2021.
TOMAZELLI, J. G. e SILVA, G. A. Rastreamento do câncer de mama no Brasil: Uma avaliação da oferta e utilização da rede assistencial do Sistema Único de Saúde no período 2010-2012. Epidemiologia e Serviços de Saúde. v. 26, p. 713-24. out.-dez. 2017.
Livros
TEIXEIRA, L. A. et al. O câncer no Brasil: Passado e presente. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2012.
TEIXEIRA, L. A. e FONSECA, C. O. De doença desconhecida a problema de saúde pública: O Inca e o controle do câncer no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 2007.
