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Covid-19

Os detetives da pandemia

Profissionais da saúde empregam métodos e instrumentos para seguir as trilhas do novo coronavírus e tentar conter a epidemia

Eoneren / Getty Images

Racionamento de energia, falta de água e, para completar, um combo de três surtos: sarampo, doença diarreica aguda e Covid-19. A situação do Amapá não era das mais simples em novembro, mas foi para lá que seguiu no dia 16 o médico veterinário Wildo Navegantes de Araújo, professor de epidemiologia da Universidade de Brasília (UnB) e consultor da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), o braço da Organização Mundial da Saúde (OMS) para as Américas. “As coisas ganharam complexidade ali”, afirmou Araújo a Pesquisa FAPESP em entrevista por volta das 22h de uma sexta-feira, após seguidas reuniões de trabalho. Ele iria se juntar a outros dois integrantes de um grupo de resposta a emergências em saúde pública da Opas.

Há quase 20 anos atuando em epidemias e em investigações de surtos de doenças infecciosas nos mais diversos cantos do país, Araújo usaria no Norte do Brasil a sua experiência como epidemiologista de campo para contribuir com colegas das secretarias estaduais e municipais de Saúde ao propor recomendações à atual crise múltipla amapaense. Algum tempo atrás, ele colaborou com o diagnóstico e propôs caminhos para enfrentar um surto da doença de Chagas aguda por consumo alimentar no interior do Maranhão, outro de glomerulonefrite, uma complicação renal associada à ingestão de sorvete na pequena cidade mineira de Guaranésia, um terceiro de síndrome cardiopulmonar por hantavírus em Santa Catarina, dentre outros. “É um trabalho que se parece com o de um detetive”, destaca. “Seguimos pistas, entrevistamos pessoas e encaminhamos material para análise laboratorial a fim de propor as respostas mais adequadas àquele evento.”

Araújo, ou Wildo, como é mais conhecido, faz parte de uma elite de epidemiologistas de campo cuja formação está vinculada a um programa de treinamento da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde. Criado em 2000, o programa capacita profissionais para atuar em situações de surtos, epidemias, desastres, catástrofes e outras ameaças à saúde pública nacional ou internacional. Neste ano, havia 19 profissionais nesse processo de formação, conhecido como Programa de Treinamento em Epidemiologia Aplicada aos Serviços do SUS (EpiSUS), que tem dois anos de duração.

A iniciativa, inspirada no Serviço de Inteligência Epidemiológica (EIS) dos Centros de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, integra a rede global de Programas de Treinamento em Epidemiologia e Rede de Intervenções em Saúde Pública (Tephinet), que tem cerca de 70 programas em mais de 100 países. Ao longo de duas décadas, o programa brasileiro formou 139 profissionais, que já haviam ajudado no enfrentamento a cerca de 400 surtos ou emergências de saúde pública.

Embora o governo federal tenha minimizado desde o início a gravidade da pandemia, os egressos do EpiSUS, quando solicitados, têm se engajado na resposta à epidemia nos níveis municipal e estadual. “Existem várias possibilidades de auxílio; depende de quem pede a ajuda. Pode ir da criação de um sistema de informação, de mudanças no componente do diagnóstico laboratorial ou da investigação em si. Basta um convite de um município ou estado para as equipes, imediatamente, começarem a investigação in loco”, diz Araújo, que foi treinando, supervisor técnico e compôs a coordenação do EpiSUS entre 2001 e 2010.

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, o epidemiologista já deu consultoria a nove estados brasileiros. “Nunca vi uma epidemia dar tanto trabalho para ser combatida. Não do ponto de vista técnico, do que fazer. Mas na contenção de danos colaterais causados por falas erradas e pela politização de processos que são técnicos.”

Um dos eixos preconizados pela Opas e OMS para o enfrentamento da pandemia é o rastreamento de contato, uma ferramenta antiga e tradicional da saúde pública e da vigilância epidemiológica usada no combate a doenças infecciosas em geral, entre elas febre amarela, sarampo, dengue e HIV. “Temos no Brasil programas para combater problemas de saúde para os quais é essencial essa atividade”, explica o médico Expedito Luna, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e ex-diretor do Departamento de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde. “São exemplos a tuberculose e a hanseníase, uma doença bacteriana de transmissão lenta e domiciliar. Quando encontramos um evento, que chamamos de caso-índice, é mandatório buscar as pessoas que têm contato íntimo com aquela pessoa. São geralmente indivíduos que moram na mesma casa.”

Equipes locais da atenção primária do SUS, como médicos da família, enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes comunitários da saúde, costumam desempenhar essa atividade, recorrendo a telefonemas e visitas a residências para encontrar, tratar e orientar as pessoas que possivelmente tiveram contato com casos confirmados de doenças infecciosas e, assim, romper as cadeias de transmissão. Casos mais complexos, como os de meningite ou hantavírus, zoonose causada por roedores selvagens, exigem ação coordenada nas esferas estadual e federal.

Especialistas em geral concordam que houve um subdimensionamento da possível magnitude da pandemia de Sars-CoV-2 por parte das autoridades federais e muitas das estaduais no Brasil. Um dos erros apontados foi a opção por cuidar apenas dos casos graves, sem investir na vigilância epidemiológica e na tentativa de bloqueio das cadeias de transmissão. “Perdemos a oportunidade de fazer esse bloqueio, mesmo contando com a rede capilarizada do SUS em todo o país. A própria estrutura de atenção primária ficou marginalizada no início da epidemia”, relata Luna. “Muitas vezes unidades de saúde fecharam as portas por falta de equipamento de proteção individual.”

O cenário brasileiro contrasta com o que se viu na Coreia do Sul. Vizinho à China, o país investiu – e ainda investe – pesado na vigilância epidemiológica e, principalmente, nos testes para confirmação de diagnóstico e no rastreamento de contatos para conter a pandemia. No começo do ano, o Centro para Controle e Prevenção de Doenças da Coreia do Sul ganhou poderes e autonomia para ser a “torre de controle” no combate ao Sars-CoV-2, segundo apontam as autoridades sul-coreanas em um documento de 238 páginas publicado em outubro, explicitando os detalhes da resposta de Seul. Novas leis foram feitas para permitir a formação de parcerias público-privadas na área médica e deixar que as autoridades coletassem dados para rastrear contatos de indivíduos infectados.

O rastreamento de contatos é um ponto central do sistema sul-coreano para reduzir ou cortar o risco de transmissão apresentado por assintomáticos ou por pessoas com sintomas leves de Covid-19. Além dos agentes de saúde e da polícia e de integrantes dos ministérios da Saúde, da Justiça, dos Transportes e da Ciência e Tecnologia, funcionários de administradoras de cartão de crédito e de empresas de telefonia participam dessa empreitada.

Chung Sung-Jun / Getty Images Profissional da saúde realiza exame de Covid-19 em centro de testagem de Seul, na Coreia do SulChung Sung-Jun / Getty Images

As autoridades buscam informações sobre a movimentação de um paciente com teste confirmado por RT-PCR para Sars-CoV-2 referentes a dois dias antes do aparecimento dos sintomas ou da realização do teste, em caso de paciente assintomático, até a data de início do isolamento. Além da entrevista pessoal, são analisados, conforme o caso, o histórico de saúde, os registros de GPS do celular, as movimentações de cartões de crédito e as câmeras de vigilância das vias públicas – tudo para saber por onde a pessoa circulou quando já estava infectada. “Isso permite reduzir o tempo consumido pelas investigações”, informaram as autoridades no documento.

Os contatos de casos confirmados devem ficar 14 dias de quarentena, sem sair de casa nem entrar em contato com outras pessoas. São monitorados duas vezes por dia por agentes do governo, que checam a existência de sintomas como febre, tosse e falta de ar. Todos precisam baixar um aplicativo para a realização do autoisolamento. Caso não tenham condições de ficarem sozinhos em um quarto ou não possuam celular, são convidados a se mudar temporariamente para locais próprios para o isolamento. Quem se recusa a ir ou viola as demais regras precisa usar uma pulseira eletrônica para monitoramento. A multa prevista para o descumprimento das regras é superior a US$ 8,5 mil, com risco de prisão.

Outra ferramenta tecnológica adotada pelos sul-coreanos é o KI-Pass, um sistema no qual os frequentadores de locais considerados de alto risco, como bares, karaokês e academias de ginástica, são obrigados a registrar na entrada o seu QR Code individual baixado pelo celular. A medida facilita o rastreamento de contatos, caso algum frequentador obtenha depois um teste positivo. Segundo as autoridades, as informações do rastreamento – anônimas e deletadas após 14 dias da exposição do último contato por casos confirmados – são compartilhadas com a população.

Professor do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, o médico Eliseu Waldman considera que, mesmo que o governo federal não tivesse abdicado de seu papel de coordenar o enfrentamento da epidemia e ainda que não houvesse um gargalo na capacidade tecnológica dos laboratórios públicos, dificilmente seria possível ver no país uma resposta à pandemia nos moldes da ocorrida nos países da Ásia.

“Os resultados que China e Coreia alcançaram não são reprodutíveis em outras culturas, mesmo que elas tenham a organização e disponham das tecnologias necessárias”, pondera Waldman. “Europeus, latino-americanos e africanos não costumam responder de forma tão homogênea às recomendações ou a ordens do Estado.”

Além disso, mesmo para ser executado de forma localizada, o rastreamento de contatos exigiria recursos nem sempre disponíveis no Brasil e poderia enfrentar dificuldades para ser posto em prática por causa de questões relativas à privacidade dos cidadãos. Mesmo que as autoridades digam que as informações são anônimas e deletadas, em muitos países a ideia de abrir dados de cartão de crédito e celular ou de dar acesso a câmeras de vigilância seria difícil de aceitar.

“Quando os números começam a ficar muito altos e a proporção de casos é enorme, não dá mais para usar essa ferramenta”, ressalta Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da FM-USP. Justamente por falta de recursos, um projeto que previa o rastreamento de contatos de pacientes infectados com Sars-CoV-2 em São Caetano do Sul, feito por meio de uma parceria da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) com o IMT, não pôde ser iniciado. “É preciso baixar os números de infectados até que se consiga voltar a fazer esse tipo de trabalho. E, mesmo assim, exige bastante esforço”, diz Sabino.

Para o médico Expedito Luna, da USP, apesar das dificuldades, não é tarde para iniciar o rastreamento no país. “O Brasil não é homogêneo. O rastreamento poderia começar em cidades do interior, onde há um menor número de casos, e ser expandido gradualmente para os centros maiores. É o que está sendo proposto pela equipe do presidente eleito nos Estados Unidos”, diz.

Uma das investigações mais complexas e delicadas em relação ao Sars-CoV-2, e objeto de grande interesse no mundo todo, está relacionada à origem da pandemia. Somente em novembro, quase um ano depois da confirmação dos primeiros casos de Covid-19, a OMS divulgou detalhes sobre a missão internacional que terá início na cidade chinesa de Wuhan e que deverá contar com o trabalho de campo de detetives de doenças de vários países. “O local em que uma epidemia é detectada primeiramente não reflete necessariamente onde ela começou”, lê-se no documento classificado de “minuta final” da OMS sobre o que chamam de estudo global.

Entre as pistas que os investigadores internacionais deverão seguir estão dezenas de milhares de sequenciamentos do genoma do Sars-CoV-2 disponibilizadas no banco de dados púbico Gisaid, inclusive dos casos reportados inicialmente no mercado de Wuhan, onde o novo coronavírus foi inicialmente detectado.

Entre outras coisas, a OMS e investigadores de todo o planeta querem saber se de fato morcegos passaram o novo vírus para os humanos ou se outro animal funcionou como intermediário. Quando, como e a partir de qual animal o Sars-CoV-2 infectou pela primeira vez os humanos permanece por enquanto um grande mistério.

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