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Covid-19

Os percalços dos medicamentos contra o coronavírus

Agências sanitárias suspendem o uso de fármacos que perderam eficácia contra as variantes em circulação do Sars-CoV-2

Fábrica da AstraZeneca na Suécia dedicada à produção de novos remédios, como o anticorpo monoclonal Evusheld, que chegou a ser prescrito como uma forma de prevenção à infecção por Sars-CoV-2 para pessoas com o sistema imunológico debilitado, mas que teve esse tipo de indicação profilática suspensa neste ano

Jonathan Nackstrand/AFP via Getty Images

Depois de três anos e quatro meses, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou, em 5 de maio, o fim do estado de emergência internacional em decorrência da pandemia. Nesse período, a Covid-19 infectou 765 milhões de pessoas e, segundo dados oficiais, provocou 7 milhões de mortes, mais de 700 mil só no Brasil (estimativas extraoficiais apontam até 20 milhões de óbitos em razão da doença). As vacinas foram, e ainda são, fundamentais para controlar a pandemia. Já a busca por medicamentos capazes de debelar o novo coronavírus e tratar a Covid-19 tem sido repleta de percalços e insucessos, alguns deles recentes.

Em 7 de março, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pelo controle de medicamentos no Brasil, derrubou temporariamente a autorização para o uso emergencial do Evusheld. Composto por dois anticorpos monoclonais, o tixagevimabe e o cilgavimabe, o fármaco era indicado como profilaxia pré-exposição ao Sars-CoV-2 para adolescentes e adultos com o sistema imunológico debilitado. Anticorpos monoclonais são versões sintéticas de anticorpos de origem humana. Eles aderem a regiões específicas da superfície do vírus e o impedem de entrar nas células e se multiplicar.

A decisão de suspender o uso do Evusheld no Brasil para essa finalidade ocorreu pouco depois de a Food and Drug Administration (FDA), agência norte-americana similar à Anvisa, tomar a mesma atitude no fim de janeiro. A justificativa em ambos os casos é que o medicamento, produzido pela farmacêutica AstraZeneca, apresentava perda de eficácia contra as variantes do novo coronavírus então em circulação, em especial a XBB.1.5, considerada à época pela OMS a mais transmissível já identificada. A XBB.1.5 começou a circular no Brasil em dezembro de 2022 e, antes disso, nos Estados Unidos, onde era responsável por quase 90% dos casos de Covid-19 no início de 2023. Até o momento, não existem outros medicamentos indicados para prevenir a infecção.

Outro anticorpo monoclonal liberado pela Anvisa, o sotrovimabe, produzido pela GlaxoSmithKline (GSK) e comercializado em alguns países com o nome de Xevudy, tem aplicação diferente e corre o risco de perder utilidade contra o novo coronavírus. Ele é recomendado para o tratamento de casos leves e moderados de Covid-19 em adolescentes e adultos com características que favoreçam a evolução para as formas graves da doença. Seu uso contra a infecção pelo novo coronavírus foi suspenso nos Estados Unidos em abril de 2022, mas ele continua a ser adotado em países como o Reino Unido e o Brasil, apesar de mostrar uma perda da capacidade de neutralização das variantes mais recentes. “O sotrovimabe segue autorizado. Sua administração é exclusiva para pacientes que não necessitam de oxigênio suplementar”, informou a Anvisa em comunicado enviado a Pesquisa FAPESP.

Tanto o Evusheld quanto o sotrovimabe atuam em uma região específica da proteína da espícula, que permite ao vírus invadir as células. Chamada de domínio de ligação ao receptor (RDB), essa região se encontra em constante evolução. Por essa razão, a expectativa do infectologista Álvaro Furtado, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), é que o sotrovimabe deixe de funcionar contra o vírus em breve. “Esses medicamentos foram testados em um momento da pandemia muito diferente do atual, com variantes mais antigas e pessoas com status vacinal mais defasado. Não temos expectativa de que novos anticorpos monoclonais contra o coronavírus sejam aprovados no Brasil”, afirma Furtado.

O cenário também não é favorável para outra classe de medicamentos, os antivirais. Eles atuam de modo distinto dos anticorpos. Enquanto esses tentam impedir a entrada do vírus nas células, os antivirais buscam evitar que, uma vez dentro delas, o Sars-CoV-2 se multiplique. Ao menos três antivirais contra o novo coronavírus estão disponíveis no Brasil: o remdesivir, da biofarmacêutica Gilead Sciences, vendido com o nome de Veklury; a combinação de nirmatrelvir e ritonavir, da Pfizer, comercialmente chamado de Paxlovid; e o molnupiravir, da Merck Sharp & Dome (MSD), que tem o nome fantasia de Lagevrio. Eles são medicamentos caros e nem sempre disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, devem ser prescritos para períodos muito específicos da infecção – em geral, nos primeiros cinco dias a partir do início dos sintomas – e, se usados de modo pouco criterioso, podem levar ao surgimento de variedades do vírus resistentes ao tratamento.

MSD | GileadDois antivirais disponíveis contra a Covid-19: o molnupiravir (cápsulas vermelhas) e o remdesivir (Veklury)MSD | Gilead

O remdesivir, por exemplo, só está disponível em hospitais particulares e deve ser empregado nos casos leves e moderados de pneumonia, nos quais é necessária a administração de oxigênio, mas sem ventilação artificial (intubação). Encontrados em farmácias por preços que variam de R$ 1,5 mil a quase R$ 5 mil cada caixa, que cobre todo o período de tratamento, o molnupiravir e a combinação de nirmatrelvir e ritonavir (Paxlovid) reduzem, respectivamente, em 30% e em 88% o risco de desfechos graves (hospitalização e morte), segundo estudo publicado em agosto de 2022 na revista Antimicrobial Agents and Chemotherapy. De acordo com Furtado, da USP, o Paxlovid pode ser indicado para pessoas com sintomas leves e moderados de Covid-19, mas com risco de progressão para um quadro severo. Para casos graves, com comprometimento extenso do pulmão, o Veklury pode oferecer alguma efetividade, embora os corticoides ainda sejam a opção mais barata e eficaz para tratar o quadro inflamatório.

Alguns dos antivirais, como o remdesivir e o molnupiravir, também podem levar ao surgimento de variedades do vírus resistentes a essas medicações. Eles causam alterações no material genético do Sars-CoV-2 que impedem a replicação viral. “É possível, no entanto, que algumas mutações não letais para o vírus ocorram e favoreçam a sua replicação”, conta a farmacêutica e microbiologista Jordana dos Reis, chefe do Laboratório de Virologia Básica e Aplicada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Um sinal de alerta sobre esse efeito foi dado recentemente por um estudo disponibilizado no medRxiv, plataforma de preprints, artigos ainda não revisados por outros pesquisadores da área. No trabalho, Theo Sanderson, do Instituto Francis Crick, no Reino Unido, e colaboradores analisaram bancos de dados internacionais em que são depositadas sequências genéticas do Sars-CoV-2 e verificaram um aumento da circulação de exemplares do vírus com uma assinatura específica das mutações induzidas pelo molnupiravir após a introdução do medicamento em certos países. Esse dado sugere que versões resistentes ao molnupiravir e capazes de se multiplicar possam ter surgido em algumas pessoas tratadas com o antiviral e estar sendo transmitidas para outros indivíduos.

Uma esperança é que se identifiquem compostos mais eficazes e com menos efeitos colaterais a partir dos antivirais já aprovados. “Um derivado do Paxlovid ou molnupiravir seria bem-vindo, principalmente em um cenário com mais pessoas vacinadas”, observa Luciano de Azevedo, médico intensivista e pesquisador do Hospital Israelita Albert Einstein e integrante da Coalizão Covid-19 Brasil, que conduziu estudos de medicamentos contra a doença no país. Ele explica, no entanto, que o ritmo de evolução do vírus torna a tarefa difícil.

Um antiviral apontado como promissor é o ensitrelvir, fabricado pela  farmacêutica japonesa Shionogi com o nome comercial de Xocova, por ora liberado para uso emergencial apenas no Japão. Dados de um ensaio clínico de fase 3 (para avaliar a eficácia) realizado no Japão, Vietnã e na Coreia do Sul foram apresentados em uma conferência internacional no fim de fevereiro. Eles sugerem que o composto reduz o tempo de recuperação de pacientes com casos leves a moderados e, entre os tratados, diminui em 45% a proporção dos que desenvolveram a chamada Covid longa, em comparação com os integrantes do grupo que recebeu placebo.

Além dos antivirais, Jordana Reis, da UFMG, aposta nos anti-inflamatórios para auxiliar no tratamento dos quadros graves da doença. “Os antivirais disponíveis costumam falhar na resposta a esses quadros porque, nesse estágio, o pico de atividade viral mais intensa já passou e o que predomina é a inflamação com lesão tecidual”, explica. Com colaboradores da Universidade de New South Wales, na Austrália, ela testa uma combinação administrada por nebulização nasal de dois compostos que dissolvem o muco – a bromelina e a n-acetil-cisteína –, patenteada com o nome de BromAc. Segundo resultados publicados em 2022 na revista científica Biomedicine and Pharmacotherapy, a combinação se mostrou eficaz em testes de laboratório para dissolver a spike, liquefazer o muco e reduzir a resposta inflamatória aguda grave. Atualmente, a formulação está sendo avaliada em seres humanos.

Artigos científicos
ATMAR, R. L. e FINCH, N. New perspectives on antimicrobial agents: Molnupiravir and nirmatrelvir/ritonavir for treatment of Covid-19. Antimicrobial Agents and Chemotherapy. 16 ago. 2022.
SANDERSON, T. et al. Identification of a molnupiravir-associated mutational signature in Sars-CoV-2 sequencing databases. medRxiv. 27 jan. 2023.
COELHO-DOS- REIS, J. G. A. et al. Ex-vivo mucolytic and anti-inflammatory activity of BromAc in tracheal aspirates from Covid-19. Biomedicine & Pharmacotherapy. abr. 2022.

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