Os anos seguintes à proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822, foram marcados por agitações políticas e intensas negociações sobre a criação da nação brasileira e a definição de um perfil de Estado nacional. Era preciso investir na formação de uma elite intelectual capaz de gerir a pátria recém-emancipada, instituindo-lhe uma identidade própria, em oposição à portuguesa. Mais do que novas leis, o país precisava de uma consciência jurídica, que deveria emanar de cursos estabelecidos em território nacional. Foram esses e outros argumentos que deram o tom das discussões políticas que culminaram na criação das primeiras faculdades de direito do Brasil, em São Paulo e Recife, em agosto de 1827.
As articulações políticas que contribuíram para a criação dessas instituições tiveram início durante os debates travados na primeira Assembleia Nacional Constituinte do Brasil. Convocada em maio de 1823, a Assembleia representou um passo fundamental no processo de consolidação da independência política e econômica do país. Cabia aos deputados a tarefa de estruturar as bases políticas e institucionais do Brasil e, assim, inaugurar juridicamente o regime constitucional.
A proposta de criação de um curso de direito foi apresentada na sessão de 14 de junho de 1823 pelo advogado José Feliciano Fernandes Pinheiro, o visconde de São Leopoldo (1774-1847). Tratava-se de um pedido de brasileiros matriculados na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde estudava a maioria dos que pretendiam seguir nas profissões jurídicas, inclusive os próprios parlamentares. O projeto apresentado por Fernandes Pinheiro foi encaminhado para debate na Assembleia, e logo iniciaram as divergências sobre a localização dos cursos jurídicos. Os debates transcorreram de forma apaixonada. “Os parlamentares advogavam em favor de suas províncias de origem, já que desses cursos sairia a futura elite política do país”, comenta a advogada e historiadora Bistra Stefanova Apostolova, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Bistra estudou a criação das primeiras academias de direito no Brasil em seu doutorado, analisando os discursos dos parlamentares registrados em anais da Assembleia Constituinte de 1823 e da Assembleia Geral, instituída em 1826. Segundo ela, durante as discussões, muitos parlamentares saíram em defesa do Rio de Janeiro, onde estava a capital, inclusive Pedro I, primeiro imperador do Brasil (1822-1931). Outros defendiam que o curso fosse aberto em São Paulo. “Próximo ao porto de Santos, tem baratos víveres, clima saudável e moderado, é muito abastecida de gêneros de primeira necessidade e os habitantes das províncias do Sul e do interior de Minas podem ali dirigir os seus jovens filhos com comodidade”, destacou o deputado baiano Luís José de Carvalho e Melo (1764-1826) na sessão de 19 de agosto 1823.
O projeto foi sancionado pela Assembleia Constituinte em 4 de novembro de 1823. Determinava a criação de duas faculdades de direito, uma em São Paulo e outra em Olinda, Pernambuco. O texto, no entanto, não foi convertido em lei, assim como muitos outros projetos debatidos e aprovados pelos deputados constituintes. À medida que os trabalhos avançavam, os parlamentares ganhavam força política diante do poder Executivo. Sentindo-se ameaçado, na madrugada de 12 de novembro, em um episódio que ficou conhecido como “Noite da agonia”, Pedro I fez a balança pender para o seu lado, resolvendo momentaneamente as disputas entre os poderes. Com o apoio do Exército, cercou o Paço da Câmara e ordenou que o brigadeiro José Manuel de Morais entregasse ao presidente do Senado o decreto dissolvendo a Assembleia Constituinte.
A questão das escolas de direito só foi retomada em maio de 1826, na Assembleia Geral Legislativa. “A memória do projeto de criação das faculdades de direito mantinha-se viva entre as elites políticas”, comenta Bistra. Foi o deputado mineiro Lúcio Soares Teixeira de Gouveia (1792-1838) quem propôs a retomada do assunto com base no projeto de lei já aprovado pela primeira Constituinte.
O texto foi discutido e recebeu várias emendas. Por fim, em 1827, decidiu-se mais uma vez por São Paulo e Olinda.“A criação de escolas de direito nas regiões Sul e Norte, como se dizia na época, pretendia integrar as diferentes regiões do país, fortalecendo a unidade territorial”, explica a advogada e historiadora Ana Paula Araújo de Holanda, da Universidade de Fortaleza, Ceará, que estudou as articulações políticas que contribuíram para a criação dos primeiros cursos de direito do Brasil. O projeto aprovado na Assembleia Geral, no entanto, não rompeu totalmente com a tradição jurídica portuguesa. Houve alguns desencontros entre as intenções dos parlamentares e a prática, segundo Bistra. Adotam-se provisoriamente os Estatutos da Universidade de Coimbra.
A chamada Academia de Direito de São Paulo foi instalada em um convento franciscano do século XVII na região da cidade hoje conhecida como Largo São Francisco – somente em 1936 a faculdade foi transferida para o prédio atual, ao lado do mosteiro, de arquitetura neocolonial, projetado pelo arquiteto português Ricardo Severo da Fonseca e Costa (1869-1940). Dois anos antes, a faculdade havia sido uma das unidades fundadoras da Universidade de São Paulo (USP). Por determinação de Pedro I, foi nomeado como seu primeiro diretor o tenente-general José Arouche de Toledo Rendon (1827-1833), doutor em leis e armas. As matrículas para a primeira turma foram abertas em março de 1828, com 33 estudantes, entre os quais José Antonio Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente (1803-1878), um dos principais líderes do movimento abolicionista que levou à libertação dos escravos em 1888.
Já o curso de Olinda foi instalado em um salão no mosteiro de São Bento, sob direção do político e jurista Pedro de Araújo Lima (1793-1870), e transferido para Recife em 1854 – desde 1946 está incorporado à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em seu discurso inaugural, o desembargador Lourenço José Ribeiro, diretor interino do curso, destacou a importância social do curso jurídico para o progresso do país e da província em que fora instalado, as facilidades que traria àqueles que desejassem seguir nas profissões jurídicas, sem mais haver a necessidade de se deslocarem para a Europa. As aulas começaram em junho de 1828. Ao todo, 41 estudantes haviam sido admitidos.
Ambas as faculdades, além de serem os únicos centros de formação jurídica do país, tornaram-se importantes polos inspiradores das artes literárias e poéticas, contribuindo para a construção da identidade nacional. As instituições também foram importantes para os principais momentos cívicos, literários e políticos que se seguiram ao longo das décadas no país, como os que levaram à proclamação da República, em 1889, à Abolição, um ano antes, e às Diretas Já, em 1983.
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