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Pesquisa na quarentena

“Passei duas semanas trabalhando em campo sem saber da pandemia de Covid-19”

Eduardo Góes Neves, arqueólogo do MAE-USP, conta como soube da pandemia no Brasil e como conseguiu voltar para casa após trabalho em campo

Góes Neves trabalhando em sítio arqueológico na Reserva Biológica do Guaporé, em Rondônia

Rafael Veríssimo

Embarquei para Porto Velho, em Rondônia, no dia 29 de fevereiro, um sábado, logo após o Carnaval. De lá, segui de ônibus e, depois, de barco para a região do médio rio Guaporé, na fronteira com a Bolívia, para trabalhar em um sítio arqueológico na Reserva Biológica do Guaporé, localizada próxima à Terra Indígena Rio Branco. O Brasil à época tinha apenas um caso de Covid-19 registrado. As coisas pareciam tranquilas e a doença, uma realidade distante.

Minha equipe havia alugado um barco para chegar até o sítio que estávamos escavando, um sambaqui fluvial na forma de uma colina artificial que vira uma ilha na época chuvosa. Em geral, trabalhamos nesse sítio na época de seca porque é mais fácil para escavar, mas o acesso ao local demora mais. É preciso navegar por quase duas horas de barco e depois andar mais 40 minutos. Só de deslocamento, gastamos, em média, quatro horas por dia para ir e voltar do local das escavações. É mais fácil chegar na época chuvosa, quando os rios enchem, porque fazemos todo o percurso de barco. Por isso, para ganhar tempo, decidimos escavar aquele sítio agora, durante as cheias.

Moramos quase um mês no barco, que era grande. Uma parte da equipe já estava lá quando cheguei. Ao todo, éramos umas 20 pessoas, entre elas vários pesquisadores do Reino Unido. Outros cinco indígenas da etnia Tupari e dois quilombolas da comunidade de Santo Antonio do Guaporé também trabalharam conosco nas escavações. Ninguém sabia que o novo coronavírus havia se tornado um problema mundial.

Fiquei em campo até 15 de março, sem acesso a telefone celular ou à internet. Trabalhávamos de dia na ilha e dormíamos no barco à noite, sem contato com o exterior e sem saber o que estava acontecendo. A equipe dividia quase tudo, talheres, canetas, garrafas de água; dormíamos em redes próximas uma das outras. Depois desse período de trabalho, voltamos de barco para uma pousada chamada Porto Nova Vida. Só lá consegui acessar a internet para falar com a minha família. Foi quando soube que o mundo estava parado e que a pandemia havia chegado com tudo no Brasil, sobretudo em São Paulo. Todos estavam isolados em casa. Foi um susto grande. Fiquei preocupado em ter me contaminado em São Paulo antes de viajar e ter levado a doença para os indígenas e quilombolas com quem trabalhamos. Felizmente, até onde sei, está tudo bem e ninguém se contaminou.

Havíamos coletado mais ou menos 500 quilos de amostras de materiais arqueológicos: cerâmicas, ossos, objetos de pedra lascada etc. Esse sítio é muito interessante porque tem um cemitério indígena, que, segundo as datas que obtivemos, foi construído há mais ou menos 4 mil anos. Temos pouquíssimos casos aqui no Brasil—e na Amazônia menos ainda—de sepultamentos humanos antigos assim. Os casos mais conhecidos envolvem sítios no litoral ou em abrigos sob rochas, como no caso de Lagoa Santa, em Minas Gerais.

Exumamos quatro sepultamentos nessa etapa do trabalho de campo, sendo que em etapas anteriores já havíamos exumado outros dois. Retiramos esses remanescentes humanos com muito cuidado e depois os embalamos. Escavamos aproximadamente 14 metros quadrados de área desse sambaqui fluvial. Coletamos remanescentes fósseis de animais, alguns artefatos, amostras de restos de plantas, de sementes e de solo para analises geoquímicas. Queremos saber como as populações que viviam no sudoeste da Amazônia faziam o manejo dos recursos naturais, das plantas e dos animais, já que essa região foi um dos poucos centros independentes de domesticação de plantas no mundo.

A ideia era despachar esse material por terra até Porto Velho e, de lá, para São Paulo. Mas, com a escalada da pandemia de Covid-19, ficou praticamente impossível fazer isso. Tivemos de ir de caminhão até Cacoal, a cidade mais próxima com um aeroporto. Foram oito horas de viagem carregando essas amostras. Chegando lá, procuramos uma transportadora para levar o material de caminhão para São Paulo. Foi uma correria.

Feito isso, peguei um voo de Cacoal para Mato Grosso. No aeroporto de Cuiabá, reparei que algumas pessoas já estavam usando máscaras. A situação parecia ter se agravado bastante desde o dia que fui para as escavações no meio do mato. A realidade bateu mesmo quando aterrissei no aeroporto de Guarulhos. Foi assustador ver todo aquele espaço vazio. Cheguei em São Paulo no dia 17 de março, uma terça-feira. O material só chegou na quinta-feira da semana seguinte, de caminhão. Estava isolado em casa, mas tive de ir ao MAE [Museu de Arqueologia e Etnologia] para descarregar as amostras. 

O material agora está guardado, e o museu e os laboratórios estão fechados. Desde então, estou em casa. No começo foi difícil engatar um ritmo de trabalho. Tenho dois filhos mais velhos que moram na Alemanha, que vieram para o Brasil passar as férias. Quando voltei do campo, eles estavam aqui com as namoradas, umas sete pessoas juntas fazendo quarentena. Depois as coisas foram se acalmando e eu comecei a estabelecer uma rotina de trabalho. Estou trabalhando mais na redação de artigos—os trabalhos que mandamos para revisão dos pareceristas estão voltando mais rápido.

Também tenho me comunicado pela internet com meus orientandos de doutorado. Tenho 10, no total. Quase todos foram para suas cidades de origem, no Brasil e no exterior. Tenho uma orientanda da Itália que voltou para casa em dezembro para passar o Natal com a família e não retornou mais a São Paulo por conta da pandemia. Tínhamos várias etapas de campo marcadas para os próximos meses, e muitos estudantes usariam essas pesquisas para coletar materiais para suas teses. Vamos pedir prorrogação dos prazos para depósito dos trabalhos.

Nosso grupo ainda tem muito material para trabalhar. O que me preocupa agora é o apagão nos laboratórios. Estamos adiantando alguns artigos, mas vai chegar uma hora em que vamos ter de acessar as amostras que coletamos para poder produzir mais dados. A arqueologia depende do trabalho em campo, da coleta de amostras e, principalmente, da análise desse material. Temos dados e artigos para divulgar pelos próximos dois anos, mas depois teremos, necessariamente, de acessar o que coletamos. Espero que tudo isso passe até lá.

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