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Resenha

Percurso da maconha no Brasil

História da maconha no Brasil | Jean Marcel Carvalho França | Três Estrelas,152 páginas | R$ 29,90

Resenhas_Maconhaeduardo cesarJean Marcel Carvalho França nos traz no livro História da maconha no Brasil um interessante relato do percurso das concepções sobre a Cannabis sativa em nosso meio, da época colonial aos tempos atuais. Percorre cinco capítulos em um discurso simples e direto, agradável e fluente, instigando-nos a refletir sobre esse tema de extrema relevância na contemporaneidade.

Uma das maiores contribuições desse tipo de obra é permitir um distanciamento crítico de um problema complexo, agregando elementos históricos e socioantropológicos, outros saberes, que ampliam assim a compreensão de um fenômeno que se configura interdisciplinar para além de uma medicalização ou psicologização excessivas da questão.

Partindo de elementos históricos, a obra abarca tanto o comércio do cânhamo quanto o seu uso como substância inebriante desde a Antiguidade, guiando-nos nas sucessivas mudanças de status da maconha ao longo do tempo.

Diante da malsucedida tentativa de plantação e comércio do cânhamo para produção de tecidos, velas e cordas no Brasil colonial, difunde-se o uso recreacional da droga, trazida pelos marinheiros portugueses e escravos africanos.

Uma vez que os produtos do cânhamo concorriam fortemente com a indústria de derivados químicos e celulose emergente, os Estados Unidos tinham uma razão econômica para desencadear uma verdadeira cruzada contra a maconha desde no início do século XX. O viés étnico fundamentava essa batalha norte-americana ao associar o consumo de maconha a comportamentos antissociais de negros e imigrantes hispânicos.

Até meados do século XX esse uso esteve igualmente no Brasil identificado sobretudo com negros, classes desfavorecidas e grupos marginais. A partir do movimento de contracultura da década de 1960, a maconha sofre um processo de “democratização” em todo o Ocidente, passando a ser consumida cada vez mais por jovens das classes privilegiadas, estudantes, intelectuais, artistas e profissionais liberais.

A partir dos anos 1970, baseando-se no discurso utópico da Guerra às Drogas deflagrada nos Estados Unidos, somado ao ideário preconceituoso do “vício dos pretos” ainda presente em nossa consciência coletiva brasileira, fundamentaram-se políticas públicas higienistas e totalitárias, que invadiram a área jurídica e a científica. Os sintomas são diversos na área jurídica: legislação ambígua, internações compulsórias, “justiça terapêutica”, hiperencarceramento progressivo baseado em critérios étnicos para diferenciar usuário e traficante; e, na área científica, internações involuntárias, abstinência forçada, uso de evidências questionáveis para fundamentar práticas afrontosas aos direitos humanos, além da obstaculização de pesquisas para investigar o potencial terapêutico de substâncias ilícitas.

O autor nos lembra o quanto ainda persiste a visão reducionista e preconceituosa com relação a essa questão, balizando medidas repressivas e coercitivas para dar conta do problema a despeito da falta de evidências de sua eficácia.

A partir dos anos 1990, constatada a falência da Guerra às Drogas, diversos países passaram a adotar posturas pragmáticas com relação às substancias ilícitas, como as estratégias de redução de danos ou descriminalizando seu uso e, mais recentemente, defendendo a regulação do comércio de maconha.

Jean Marcel conclui ressaltando o quanto o discurso proibicionista pode ser considerado marcadamente moral e pouco pragmático, tendendo, portanto, a tornar-se progressivamente mais obsoleto, estranho e excepcional.

Antes de finalizar, destaca a ponderação de Fernando Henrique Cardoso como membro da Comissão Global sobre Drogas: “Pensar em um mundo livre de drogas é uma coisa utópica, não houve até hoje na história. Agora, é possível reduzir o dano que a droga causa às pessoas e à própria sociedade”. Emerge assim a necessidade de agir diante do caos gerado pelo proibicionismo. Dessa forma, documentários como Quebrando o tabu (2011), de Fernando Grostein Andrade, e Cortina de fumaça (2010), de Rodrigo Mac Niven, podem ser vistos como testemunhos de uma transformação na nossa consciência coletiva, refletindo uma mudança de paradigma que, embora tardia, se faz necessária para tratarmos de um tema tão delicado de forma aprofundada.

Dartiu Xavier da Silveira é médico e professor livre-docente do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo.

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