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Cinema

Pesquisadores resgatam filmes perdidos sobre a ditadura militar no Brasil

Imagens foram produzidas por cineastas profissionais e amadores quando a repressão política e a censura bloqueavam sua circulação

Cenas do curta-metragem Açúcar, água e sal, de 1979

Práticas do Contra-arquivo / YouTube

Um filme realizado por 14 presos políticos durante uma greve de fome no presídio Frei Caneca, no Rio de Janeiro, em agosto de 1979, em plena ditadura militar (1964-1985), ganhou uma segunda chance de exibição no ano passado. Açúcar, água e sal, curta-metragem com 15 minutos de duração, está disponível desde março no canal mantido no YouTube pelo grupo Práticas do Contra-arquivo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Ao rodarem o filme em 1979, os presos tinham como objetivo pressionar o Congresso Nacional a ampliar o alcance da Lei da Anistia, que estava prestes a ser votada. Eles possuíam uma câmera portátil, cuja entrada na prisão fora autorizada para registrar o aniversário do filho de um dos presos num dia de visitas, e filmaram com ela posteriormente depoimentos e cenas da greve de fome. Os negativos foram contrabandeados para fora do presídio. Um amigo dos presos políticos ficou incumbido de filmar manifestações de rua e fazer a montagem final. O título do curta se refere à composição do soro caseiro que alguns presos tomaram para não morrer na greve.

Após 32 dias, o grupo encerrou o protesto sem ver suas reivindicações atendidas. O filme só ficou pronto após a aprovação da Lei da Anistia, tarde demais para que pudesse influir no resultado, e foi exibido uma única vez, em 1999, durante um encontro de ex-militantes da luta armada. Décadas depois, outra motivação levou à sua retomada: o interesse crescente de estudiosos do período pelas imagens produzidas por cineastas profissionais e amadores durante a ditadura militar, quando a repressão política e a censura bloqueavam sua circulação.

“Queremos resgatar imagens que o governo militar não queria que fossem exibidas”, explica a pesquisadora Patrícia Furtado Mendes Machado, professora da PUC-Rio e coordenadora do Práticas do Contra-arquivo. Os negativos originais de Açúcar, água e sal estão depositados no Arquivo Nacional, em estado precário, mas ela obteve uma cópia digitalizada com o ex-guerrilheiro Paulo Roberto Jabur, um dos que empunharam a câmera na prisão em 1979.

O filme reúne imagens raras do cotidiano dos presos políticos numa etapa crítica do processo de abertura que levou ao fim da ditadura e expõe algumas das tensões que marcaram a fase terminal do regime. A Lei da Anistia permitiu que políticos e militantes exilados voltassem ao país e garantiu proteção a agentes do Estado responsáveis por torturas e assassinatos, mas excluiu condenados por assaltos, sequestros e atos terroristas. Os presos que fizeram greve em 1979 cumpriam pena por esses tipos de crime e tiveram que recorrer à Justiça para obter a liberdade.

Cinemateca BrasileiraInês Etienne Romeu (à esq.) com a atriz e diretora Norma Bengell em 1979Cinemateca Brasileira

Com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), o grupo de Machado começou a construir em 2023 um acervo de imagens produzidas longe do controle estatal que possam servir como contraponto ao discurso oficial da ditadura e a outras narrativas estabelecidas sobre o período. É o que a pesquisadora chama de contra-arquivo, termo tomado emprestado de uma rede de pesquisadores do Canadá dedicada à preservação da memória visual de indígenas, negros, mulheres, imigrantes e comunidades LGBT+.

Os pesquisadores do grupo brasileiro adotaram uma metodologia proposta pela historiadora francesa Sylvie Lindeperg, da Universidade Pantheón-Sorbonne, em Paris, e autora de um estudo sobre Noite e neblina (1956), documentário do cineasta francês Alain Resnais (1922-2014) a respeito do Holocausto. “Além de analisar os filmes, investigamos o contexto em que as imagens foram produzidas para entender como elas sobreviveram e foram retomadas ao longo do tempo”, diz Machado, autora do livro Cinema de arquivo: Imagens e memória da ditadura militar (Sagarana, 2024).

A obra é resultado de sua tese de doutorado, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2016. Nela, a pesquisadora examinou, entre outras coisas, os caminhos tortuosos percorridos pelo material filmado pelo cineasta Eduardo Escorel e pelo jornalista e crítico de cinema José Carlos Avellar (1936-2016) durante o cortejo fúnebre do estudante Edson Luís de Lima Souto (1950-1968). O jovem foi assassinado por policiais militares que reprimiam um protesto no Rio de Janeiro em março de 1968, e sua morte causou comoção no país.

Escorel deixou os rolos de filme com um amigo que trabalhava na cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio e só conseguiu reencontrá-los em 2007, junto com as imagens filmadas por Avellar. Em suas pesquisas, Machado descobriu que algumas cenas foram aproveitadas em curtas sobre a tortura no Brasil realizadas pelo cineasta francês Chris Marker (1921-2012) entre 1969 e 1970. Os documentos localizados por ela apontam o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas (Icaic) como provável fonte do material.

“Havia redes internacionais de solidariedade que ajudaram a difundir esses filmes em festivais e circuitos alternativos, na esperança de que alimentassem pressões de outros países contra a ditadura brasileira”, conta a historiadora Carolina Amaral de Aguiar, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), que estudou no doutorado, defendido naquela universidade em 2013, os filmes realizados por Marker em colaboração com os cubanos.

1964, antecedentes / Coleção Proveniência Desconhecida / Arquivo Nacional Militares durante o golpe de 1964 em filme recolhido por Clovis Molinari Junior1964, antecedentes / Coleção Proveniência Desconhecida / Arquivo Nacional 

Outro indício da atuação dessas redes foi encontrado recentemente pelo historiador Marcos Napolitano, da USP, num cinejornal exibido na extinta União Soviética poucos dias depois do golpe de 1964. As imagens, com 6 minutos e sem áudio, hoje estão disponíveis na plataforma russa Net-Film. Algumas se assemelham às veiculadas em cinejornais brasileiros na época, mas outras não. O destaque dado a cenas de confronto entre militares e manifestantes que foram às ruas do centro do Rio de Janeiro protestar contra o golpe chamou a atenção do pesquisador. “Não sabemos quem captou essas imagens nem como chegaram à União Soviética, mas elas dão uma ideia do tipo de resistência que o golpe enfrentou nos seus primeiros momentos, algo que foi minimizado pela narrativa oficial e pelos jornais em 1964”, afirma Napolitano.

No momento, como parte do projeto temático financiado pela FAPESP, o historiador está pesquisando telejornais produzidos pela antiga TV Tupi. Sua meta é analisar a cobertura da emissora nos dias que se seguiram ao golpe. O vasto acervo da Tupi, que faliu e saiu do ar em 1980, foi transferido em 1987 para a Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Ele inclui 150 mil reportagens exibidas entre 1950 e 1974, das quais 77 mil já foram catalogadas, mas apenas uma fração do material foi digitalizada. Segundo o historiador Eduardo Morettin, do Departamento de Cinema da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e coordenador do projeto, o grupo espera acrescentar ao acervo da Cinemateca pelo menos 200 horas de imagens inéditas digitalizadas, equivalentes a 10% do que está disponível hoje. “Esse material pode ajudar a entender como a televisão brasileira construiu a memória desses acontecimentos e interferiu nos debates políticos do período militar”, diz Morettin.

O grupo da PUC-Rio tem investido em várias frentes de pesquisa. Há estudos em andamento sobre filmes realizados por mulheres durante a ditadura, na esteira de um levantamento feito em diversos acervos pela pesquisadora independente Nayla Guerra, que é produtora cultural na Cinemateca Brasileira. A partir de pesquisa de iniciação científica na ECA-USP, entre 2019 e 2021, realizada com apoio da FAPESP, ela localizou registros de 222 curtas-metragens feitos por 121 mulheres no período. O resultado está no livro Entre apagamentos e resistências: Curtas-metragens feitos por diretoras brasileiras (1966-1985), lançado pela editora Alameda no ano passado.

“A existência desses filmes evidencia a presença de mulheres como protagonistas da resistência ao regime”, observa Thais Continentino Blank, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (CPDOC-FGV), no Rio de Janeiro. Em parceria com Machado, a pesquisadora tem estudado a atuação da atriz e cineasta Norma Bengell (1935-2013), que militou por causas feministas e pela defesa de presos políticos durante a ditadura.

Em 1974, Bengell colaborou com a realização de um curta na França sobre a ex-guerrilheira Inês Etienne Romeu (1942-2015), que ficou presa 96 dias num centro clandestino de torturas conhecido como Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), sobreviveu e cumpriu pena em um presídio comum no Rio. Produzido por um coletivo feminista que se chamava As Insubmusas e dirigido pela atriz francesa Delphine Seyrig (1932-1990), o filme foi exibido em festivais como parte de uma campanha pela libertação de Etienne Romeu.

Cinema de arquivo: Imagens e memória da ditadura militar / Sagarana Editora / ReproduçãoCortejo fúnebre do estudante Edson Luís filmado por Eduardo Escorel em 1968Cinema de arquivo: Imagens e memória da ditadura militar / Sagarana Editora / Reprodução

Ela conseguiu sair da prisão em 1979, após a aprovação da Lei da Anistia, e suas primeiras horas de liberdade foram filmadas por Bengell, que só a conheceu pessoalmente nesse dia. Rodado numa câmera Super-8 e com quase 11 minutos de duração, o material estava no acervo pessoal da atriz, adquirido pela Cinemateca Brasileira. Digitalizado em 2022, hoje pode ser visto no Banco de Conteúdos Culturais mantido no site da instituição.

Os estudiosos do período também têm feito descobertas ao revisitar o material produzido por órgãos oficiais. É o caso do historiador Fernando Seliprandy, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Durante estágio de pós-doutorado na ECA-USP, realizado com apoio da FAPESP e concluído em 2023, ele se debruçou sobre dois filmes que encontrou no Arquivo Nacional, produzidos em meio aos festejos dos 150 anos da Independência do Brasil, em 1972.

Um dos filmes foi dirigido pelo jornalista, político e empresário Amaral Netto (1921-1995) com dinheiro de distribuidoras de gás de cozinha. O outro teve financiamento da antiga companhia de cigarros Souza Cruz. “Esses filmes mostram que a propaganda oficial do regime militar contava com o apoio de produtoras privadas e com o patrocínio de grandes empresas para amplificar seu alcance”, afirma Seliprandy.

Segundo os pesquisadores ouvidos pela reportagem, as estantes do Arquivo Nacional abrigam vasto material ainda inexplorado, grande parte ainda a ser catalogada. Entra nessa categoria uma coleção de filmes amadores que começou a ser formada nos anos 1980 pelo funcionário da instituição Clovis Molinari Junior (1953-2019).

Faz parte do acervo um filme de 31 minutos que registra uma série de eventos que antecederam o golpe de 1964, a movimentação de tropas rebeladas contra o presidente João Goulart (1919-1976) e as agitações populares nos dias que se seguiram à sua deposição. “A identidade do doador do material é desconhecida, assim como a dos responsáveis pelas imagens”, informa a historiadora Mariana Lambert Passos Rocha, funcionária do Arquivo Nacional, que analisou o filme em dissertação de mestrado apresentada na FGV do Rio de Janeiro, em 2023. Após examinar inscrições gravadas na película depositada na instituição, ela concluiu que a montagem final foi realizada provavelmente em 1977, quando ainda havia dúvidas sobre o comprometimento dos militares no processo de abertura. “Talvez isso explique por que esse material ficou escondido por tanto tempo”, diz Rocha.

Projetos
1. Audiovisual, história e preservação: O lugar dos cinejornais e das telerreportagens brasileiros na construção da memória (1946-1974) (nº 22/06032-0); Modalidade Projeto de pesquisa temático; Pesquisador responsável Eduardo Victorio Morettin (USP); Investimento R$ 1.383.670,12.
2. Audiovisual e sesquicentenário da Independência (1972): Circulação de imagens da nação na encruzilhada da modernização autoritária (nº 21/07062-8); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Eduardo Victorio Morettin (USP); Bolsista Fernando Seliprandy Fernandes; Investimento R$ 112.757,50.
3. Entre apagamentos e resistências: Curtas-metragens feitos por diretoras brasileiras (1966-1985) (nº 18/22648-6); Modalidade Bolsa de Iniciação Científica; Pesquisador responsável Eduardo Victorio Morettin; Bolsista Nayla Tavares Guerra; Investimento R$ 15.211,46.

Artigos científicos
BLANK, T. C. e MACHADO, P. F. M. Em busca de um método: Entre a estética e a história de imagens domésticas do período da ditadura militar brasileira. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. v. 43, n. 2. 2020.
BLANK, T. C. e MACHADO, P. F. M. Inês e Norma: Caminhos cruzados em imagens, arquivo e militância. Acervo, v. 37, n. 1. 2024.
NAPOLITANO, M. O golpe de Estado (1964) no Brasil visto por um cinejornal soviético. Fotocinema. n. 20. 2020.
SELIPRANDY, F. Circuitos da propaganda oficiosa: Amaral Netto comemora os 150 anos da Independência (1972). Estudos Históricos. v. 37, n. 82. 2024.

Livros
GUERRA, N. Entre apagamentos e resistências: Curtas-metragens feitos por diretoras brasileiras (1966-1985). São Paulo: Alameda, 2024.
MACHADO, P. Cinema de arquivo: Imagens e memória da ditadura militar. Rio de Janeiro: Sagarana, 2024.

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