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Resenhas

Reflexões sobre a revolução de Cádis

A experiência constitucional de Cádis: Espanha, Portugal e Brasil | Márcia Berbel e Cecília Helena de Salles Oliveira (orgs.) | Alameda | 310 páginas | R$ 55

Eduardo Cesar

A coletânea A experiência constitucional de Cádis: Espanha, Portugal e Brasil discute os dilemas que marcaram o processo de construção da ordem política liberal nas primeiras décadas do século XIX, articulando temas e problemas fundamentais da historiografia oitocentista contemporânea, entre eles: cidadania e escravismo; império, nação e soberania; constitucionalismo e sistema político.

Fruto de um colóquio internacional – realizado no Departamento de História da USP em 2010, com auxílio da FAPESP, do Programa de Pós-Graduação em História Econômica e da Cátedra Jaime Cortesão –, o livro revela facetas ainda pouco exploradas do constitucionalismo inaugurado pela revolução de Cádis, não apenas na sua versão peninsular e brasileira, como também hispano-americana.

Um dos méritos do livro é justamente propiciar uma reflexão sobre as especificidades das experiências constitucionais nos diferentes domínios imperiais ibéricos; como também, e sobretudo, aproximar e distinguir os modelos constitucionais coetâneos propostos em Cádis, Porto e Lisboa.

Os estudos discutem o impacto e os desdobramentos provocados pela ruptura do status quo e deflagrados pela revolução de Cádis (1810) empreendendo comparações na curta e na longa duração. Um dos aspectos mais relevantes diz respeito às formas de apropriação local do constitucionalismo gaditano na conjuntura crítica que marcou o processo de desagregação dos impérios ibéricos, desde a expansão napoleônica até os congressos de Viena (1814) e Verona (1822).

Conforme Manuel Chust Calero, a historiografia espanhola pouco destacava o peso dos deputados americanos nos debates constitucionais: “a singularidade fundamental desta revolução liberal hispânica está em integrar os territórios americanos como parte do Estado-nação espanhol”.

Josep Fradera, Ana Cristina Nogueira da Silva e Ana Rosa Cloclet da Silva apresentam os debates peninsulares e americanos em torno da inclusão/exclusão étnico-racial dos ameríndios, afrodescendentes e mestiços nas sociedades hispano-americanas, no império português e na província de Minas Gerais. A crise geral do Antigo Regime e o reformismo ilustrado suscitaram uma nova dinâmica de estratificação social que, paradoxalmente, implicava a necessidade de aprofundar as hierarquias sociais e o sistema de castas (no caso específico das sociedades hispano-americanas).

Nesse âmbito, podemos situar um dos aspectos cruciais que explicam a singularidade do constitucionalismo português e brasileiro perante as demais experiências constitucionais. A Carta constitucional espanhola excluiu as castas indígenas e os libertos afrodescendentes do direito à cidadania. No caso luso-brasileiro, a incorporação dos libertos ao corpo político eleitoral (ao menos como votantes no primeiro turno) ampliava a legitimidade do novo sistema político; vindo a constituir uma das formas estruturais de preservação do tráfico negreiro e do escravismo ao longo do século XIX (cf. Márcia Berbel/R. Marquese/Tamis Parron).

Ivana Fraquet, Márcia Berbel, Lúcia Bastos Pereira das Neves e Cecília de Salles Oliveira desvendam as linguagens políticas assumidas pela retórica constitucionalista nos diferentes contextos políticos imperial, americano e provincial. A Carta de 1824, segundo Salles de Oliveira, representa um distanciamento em relação a outras constituições contemporâneas formuladas na Europa, devendo ser aproximada com experiências na América do Norte, na Cisplatina e em Buenos Aires.

Andréa Slemian aborda o esforço para institucionalização do governo constitucional e as dificuldades para construir a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Diversos artigos aprofundam a complexidade que envolveu a desarticulação do sistema legal corporativo (onde prevalecia a pluralidade de foros e autonomias jurisdicionais).

Conforme observa José Reinaldo Lima Lopes, a formação dos Estados nacionais implicou um longo período de experimentação política e refinamento do ordenamento legal. O constitucionalismo americano é tributário da sólida cultura jurídica europeia, mas as variantes no Novo Mundo expressam impasses impostos pela necessidade de restringir e, ao mesmo tempo, integrar os livres pobres no jogo político nacional. O livro nos permite perceber toda a complexidade do momento constitucional antes, durante e após 1822.

Íris Kantor é professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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