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Carreiras

Saúde conectada

Formação em telemedicina requer conhecimentos que vão além do uso da internet

Ana Matsusaki

A telemedicina tem ganhado cada vez mais relevância na área da saúde. Ao lado de outras tecnologias como inteligência artificial, sistemas vestíveis e impressão em 3D, é considerada por pesquisadores do mundo todo como uma das grandes transformações da medicina, com amplo potencial de desenvolvimento nas próximas décadas. “A tendência é que médicos e pacientes se acostumem com o atendimento remoto digital, que ainda é visto com certo receio por aqui”, afirma Chao Lung Wen, chefe da disciplina de telemedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).

A formação de médicos que atuam nessa área adquiriu caráter de urgência após a publicação, em março, de portaria do Ministério da Saúde que regulamenta o uso da telemedicina para a realização de consultas entre médicos e pacientes. A medida deve permanecer em vigor enquanto durar o período de combate à pandemia de Covid-19.

Utilizada para a execução de práticas médicas a distância, a telemedicina tornou-se possível com a disseminação do uso de dispositivos eletrônicos ligados à internet. Sua prática, porém, requer conhecimentos que vão além da utilização da videochamada para a realização de atendimentos.“No vídeo de atendimento, o médico pode, além de fazer a investigação semiológica, efetuar exame físico de observação, avaliar aspectos comportamentais do paciente, padrões de respiração, movimentação, postura ou eventuais lesões”, afirma Wen.

Além de estar familiarizado com as tecnologias de comunicação e plataformas para  atendimento a distância, o médico precisa de conhecimentos que envolvam aspectos éticos específicos a esse tipo de consulta como a guarda de dados digitais, o registro em prontuário médico e envio de ficha síntese aos pacientes, bem como as perspectivas da telemedicina nas diversas regiões do país, além de infraestrutura tecnológica. Somam-se a isso os conhecimentos que o profissional já dispõe para a anamnese, entrevista em que o médico consegue identificar as necessidades do paciente e, com isso, formular o diagnóstico. “Os médicos podem pedir inclusive para que os pacientes mostrem regiões do corpo para observação de lesões ou de seu estado geral, da mesma maneira como acontece na consulta presencial”, completa Wen.

As disciplinas que tratam da telemedicina são ofertadas na graduação, pós-graduação, residência médica e em cursos de extensão. No entanto, são poucas as faculdades em que elas integram o currículo obrigatório. No caso da FM-USP, por exemplo, a disciplina é classificada como eletiva, ou seja, parte do aluno o interesse em obter conhecimentos nessa área. “Isso acontece porque grande parcela da nossa rede ainda está bastante focada no atendimento presencial”, avalia Raymundo Soares de Azevedo Neto, do Laboratório de Telemedicina do Departamento de Patologia da faculdade.

No Brasil, a tecnologia da informação começou a surgir nos currículos das faculdades de medicina em 1986. Na FM-USP, a já extinta disciplina de informática médica tinha por objetivo iniciar os estudantes no uso de computadores e softwares. “Como os alunos hoje têm bastante familiaridade com esses equipamentos, resolvemos ampliar o tema com a inserção da disciplina de telemedicina”, explica Azevedo Neto.

Ao se configurar como um ato médico, ou seja, havendo para o profissional a mesma responsabilidade de uma consulta convencional, o uso da telemedicina só se tornou possível devido a protocolos e ensaios clínicos que comprovaram sua eficácia e equivalência com o atendimento presencial. “Isso significa que são necessários testes toda vez que surge um novo procedimento de telemedicina. Assim como acontece com as novas medicações, é preciso testá-lo e compará-lo à luz das evidências”, conta Azevedo Neto. A telemedicina também possibilita a troca de informações entre médicos iniciantes e os mais experientes. A interação entre distintas gerações de profissionais viabiliza a avaliação conjunta de casos complexos e a formação de consenso sobre diagnósticos.

Algo parecido ocorre na Rede Universitária de Telemedicina (Rute). Criada em 2006 pelo então Ministério da Ciência e Tecnologia, tem por objetivo apoiar o aprimoramento de projetos em telemedicina e oferecer infraestrutura, equipamentos de informática e comunicação para grupos de pesquisa em universidades de todas as regiões do país, além de disseminar as atividades de pesquisa e desenvolvimento entre as 139 instituições participantes. Os grupos que integram a rede se comunicam por videoconferência para debater casos, transmitir aulas e realizar avaliações a distância sobre as várias especialidades médicas, atingindo estudantes em diversos estágios de formação profissional. “Essa troca de informações tem um importante papel na formação de profissionais, especialmente aqueles que estão em regiões remotas do país”, afirma Azevedo Neto.

A telemedicina e suas modalidades
Teleconsulta
A relação se dá entre paciente e médico, em atendimento similar ao presencial
Teleorientação
Nesta modalidade de atendimento, o médico dá orientações ao paciente, por vídeo ou telefone
Telemonitoramento
Aqui o médico monitora as condições de pacientes com doenças crônicas, como diabetes
Teletriagem
Ao analisar os sintomas, o médico direciona o paciente para um especialista ou serviço presencial
Teleinterconsulta
Médicos trocam informações entre si, a respeito de determinado caso ou procedimento

Modalidades
As primeiras ações de telemedicina tiveram início na década de 1960, com a necessidade de garantir, a distância, atendimento a militares em locais remotos ou a astronautas que participavam das missões espaciais promovidas por Estados Unidos e pela então União Soviética. “Na época era bem caro, mas hoje ficou mais acessível com a popularização da internet de alta velocidade, dos computadores e smartphones”, afirma Wen. No contexto da atual pandemia, o método de teleconsulta contribui para a redução do fluxo de pessoas em hospitais, evitando aglomerações e o risco de contágio.

A telemedicina engloba atividades como teleorientação, que permite aos médicos informar sobre cuidados e prevenção de doenças, orientar outros profissionais da saúde, ou encaminhar pacientes para especialistas; telemonitoramento, utilizado para acompanhamento de pacientes em situação crônica e que o médico já conhece; e teleinterconsulta, que possibilita a troca de informações e opiniões entre médicos para a formação de consenso sobre diagnósticos e tratamentos.

Realizada a partir de plataformas específicas que asseguram a confidencialidade do atendimento, a teleconsulta propicia inclusive a emissão de documentos médicos oficiais, como receitas de medicamentos, atestados e pedidos de exames, que são validados eletronicamente por meio de assinatura digital e podem ser impressos. Para evitar o uso inadequado, cada documento vem acompanhado de um protocolo que é reconhecido em sistemas on-line de farmácias e laboratórios.

A realização de uma teleconsulta começa com o cadastramento do paciente e se desenvolve em uma série de etapas que incluem a aceitação dos termos de consentimento para uso da ferramenta tecnológica, teleavaliação investigativa, preenchimento de prontuário médico e envio de relatório com resumo do atendimento aos pacientes. “São esses passos que fazem com que a teleconsulta seja mais do que apenas uma simples videochamada”, completa.

Como ocorre nas consultas presenciais, mesmo facilitando o contato entre pacientes e profissionais da saúde, a telemedicina pode trazer prejuízos para ambas as partes, caso não seja realizada adequadamente. Dentre os riscos mais comuns para os pacientes estão
a exposição de dados confidenciais e a interação com falsos médicos ou profissionais com registro suspenso. Para os médicos, o risco principal envolve o uso mal-intencionado do expediente, por parte de falsos pacientes, que podem aproveitar o método para iniciar demandas jurídicas contra profissionais da saúde.

Regulação
Apesar de ser amplamente utilizado em países como Portugal, Alemanha e Estados Unidos, por aqui o uso da teleconsulta ainda é visto com receio por parte da classe médica. “Há uma ideia equivocada de que a teleconsulta irá substituir todos os atendimentos presenciais”, afirma Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. O telemonitoramento da insuficiência cardíaca, por exemplo, tornou-se um importante recurso para evitar a reinternação de pacientes que sofrem de problemas do coração. “É preciso que os médicos enxerguem essas tecnologias como aliadas do exercício da medicina”, completa.

A primeira resolução sobre telemedicina foi publicada em 2002 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Em 2018, o órgão divulgou uma resolução mais avançada, reconhecendo a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos desde que houvesse cadastramento prévio das instituições prestadoras do serviço e dos profissionais envolvidos, registros de data, horário de início e término da consulta e produção de relatórios contendo informações clínicas relevantes em cada atendimento, preenchimento de prontuário médico, dentre outras exigências.

A teleconsulta, ainda assim, só estaria permitida após a realização de consulta presencial, não podendo configurar como primeiro contato entre médico e paciente. A medida, que foi considerada um avanço no setor, foi revogada pelo CFM após críticas geradas pelos diversos órgãos regionais, que alegaram ter feito um debate prévio insuficiente.

Com a pandemia da Covid-19, o conselho encaminhou ofício ao Ministério da Saúde reconhecendo atividades de telemedicina no país, decisão que resultou na publicação, em 20 de março, da portaria nº 467, regulamentando seu uso no enfrentamento da emergência de saúde pública. Ao mesmo tempo foi aprovado um projeto de lei de telemedicina que resultou na Lei Federal nº 13.989, com a intenção de reduzir a circulação de pessoas nos hospitais e centros de saúde e diminuir a exposição ao vírus Sars-CoV-2.

Mesmo antes da regulação, os serviços de teleatendimento já vinham sendo utilizados por médicos e outros profissionais da saúde, como enfermeiros, obstetras, nutricionistas, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e psicólogos. No hospital Albert Einstein, em São Paulo, por exemplo, a telemedicina é praticada desde 2012. Por meio da teleinterconsulta – aquela que é realizada entre profissionais da saúde –, os médicos do hospital passaram a interagir com profissionais da rede pública de saúde, a partir do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS). “Desde o início, percebemos que os médicos mais jovens que discutiam casos conosco acabavam mudando a conduta em 70% das vezes”, afirma Eduardo Cordioli, gerente médico do Departamento de Telemedicina
do hospital.

As teleconsultas propriamente ditas tiveram início, no Einstein, em 2016. Com plataforma exclusiva que pode ser acessada por médicos e pacientes por meio de aplicativo e página na internet, os atendimentos são criptografados e permitem a emissão de atestados, receitas e pedidos de exame certificados digitalmente.“Nós entendemos que o profissional tem autonomia para decidir qual o tipo de atendimento mais adequado em cada caso, pois o médico é responsável por todas as consultas, sejam elas presenciais ou remotas”, diz Cordioli. O corpo clínico específico para teleconsulta é composto por 200 profissionais que podem atuar nas dependências do hospital ou em sistema de home office.

Também por intermédio do Proadi-SUS, o Einstein está trabalhando na criação de uma plataforma específica para atendimento remoto de pacientes do sistema público de saúde. A parceria, iniciada em março deste ano com a Secretaria de Atenção Primária à Saúde (Saps), pretende dar continuidade ao acompanhamento de pacientes com hipertensão e diabetes, por exemplo, cabendo aos municípios a decisão sobre a forma de agendamento das consultas.

A previsão é de que sejam capacitados 20 mil médicos no uso da teleconsulta. “Além de ser uma importante ferramenta para democratizar os serviços de saúde, a telemedicina diminui os custos de atendimento, tornando menos árdua a jornada do paciente”, completa Cordioli.

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